29.10.08

Sobre "O caçador" e a Fome

O texto que publiquei no tópico anterior é o conto de abertura de um dos principais destaques deste ano na área da ficção científica no Brasil. A coletânea Fome é o segundo livro do publicitário paulistano Tibor Moricz e está programado para ser lançado no início de novembro pela Tarja Editorial, que vem a ser a editora que mais tem investido na produção nacional deste nobre gênero da literatura fantástica. Eu, que já havia resenhado e entrevistado Tibor anteriormente para o site Overmundo e para meu outro blog, tive a honra de ser convidado por ele para assinar o prefácio da obra. Abaixo reproduzo com a devida autorização do escritor e de seus editores a introdução escrita para um livro que, provavelmente, entrará com justiça para as listas dos melhores e mais ousados exemplos do que se pode esperar da FC produzida em nosso país.


Nas páginas seguintes, você terá a oportunidade de testemunhar a morte de, pelo menos, dois mitos. Um deles é a tradição bem-comportada da Ficção Científica brasileira, uma vez que o bom-mocismo desse gênero da literatura nacional raramente encontrou quem o desafiasse ao longo dos anos. Já nas linhas iniciais do primeiro dos quinze contos, Tibor Moricz trucida tal padrão estabelecido ao ir muito além do que fez, por exemplo, lá no início da década de noventa, o pioneiro e decano André Carneiro em sua singular utopia sexual Amorquia.

O paulistano descendente de húngaros (mais especificamente, sobrinho-neto de um dos maiores escritores e dramaturgos daquele país, Zsigmond Móricz) criou nesta coletânea uma distopia nada ambígua. Se em seu romance de estréia, Síndrome de Cérbero, ele fez uso de um tema clássico da FC mundial – a viagem no tempo – para analisar a angustiada relação de um filho com o pai ausente, aqui o autor volta a trabalhar com um cenário bastante conhecido, o do futuro pós-apocalíptico, mas com resultados bem mais cruentos.

Em Fome, o Caos e o Abismo de Nietzsche abusam, torturam e canibalizam um segundo mito, o do Bom Selvagem de Rousseau. A civilização acabou, os governos não existem mais, as relações familiares e as religiões ou se extinguiram ou surgem apenas como caricaturas farsescas. O que move os poucos sobreviventes é a urgência em atender àquela necessidade física que dá nome à obra. A fome, em suas diferentes e variadas manifestações, é a protagonista onipresente.

“Não eram tempos para analogias”. Dessa maneira se define o mundo descrito a seguir, em um dos primeiros contos. Mais à frente, em outro texto, retoma-se o assunto. “Um tempo onde a comida não existia. Um tempo onde a água pura não existia. Onde a sobrevivência suplantava tudo. Mas um tempo, sobretudo, onde todos, sejam caça ou caçador, sabiam que a vida é uma
questão de sonho e decepção”. É nesse tempo e nesse lugar que você está entrando agora, no espaço da Entropia. Não é bem o caso de dar as boas vindas, mas a verdade é que você está prestes a conhecer a distópica entropia de Tibor Moricz.

Vire a página por vontade própria.

O caçador

O cotidiano em um mundo faminto por Tibor Moricz

Ajeitei a mira. Foquei o alvo e depois de um breve suspiro puxei o gatilho. A cabeça explodiu num emaranhado de massa encefálica, sangue, ossos e cabelos. O corpo cambaleou alguns metros até cair sobre o meio fio. Uma das pernas saltando em espasmos cada vez mais espaçados.

Levantei, pendurei o rifle sobre o ombro e observei a desolação antes de caminhar até o freguês. Ruas cobertas por destroços... prédios arruinados. Vasculhei os bolsos do morto. Quase nada. Moedas inúteis... Um canivete. Puxei os sapatos mas deixei as calças puídas e a camisa sem botões. Não carregava nada. Uma lástima.

Cocei a barriga, soltei um arroto e larguei o defunto para trás. Nada havia nele que pudesse me interessar, fora o canivete. Talvez o quarto traseiro, mas ainda pretendia ir mais além. Avançar, vasculhar lá na frente. Arrastei-o pelas pernas até sob uma laje inclinada. Lá estaria meio escondido. Voltaria mais tarde e faria os cortes necessários.

As caçadas eram mais vantajosas no passado. Havia mais gente perambulando em busca de alimento. Alvos fáceis. Nos últimos meses houve um declínio na população. Doenças por um lado, fome por outro.

Caminhei a esmo por algumas ruas. Atento a qualquer movimento. Sabia que era silenciosamente vigiado. Olhares atentos que me espreitavam das janelas. Gente acuada. Um tempo atrás ainda era possível roubar sem matar. Apontar a arma, ameaçar, humilhar o freguês e carregar o butim sem maiores problemas. A escassez levou as pessoas a resistir. Não entregar seus valiosos bens sem luta. Assim, puxar o gatilho sem fazer perguntas se tornara o melhor jeito para trabalhar.

Contornei um monturo de escombros e sentei num pedaço grande de pedra. Tirei do bolso um pedaço de carne seca. Mastiguei com calma engolindo cada naco sem tirar os olhos do perímetro. Busca constante de fregueses. Houve época em que abatê-los rendia bom sortimento de provisões, já que ninguém saía de casa sem elas. Não se arriscavam a abandoná-las, desprotegidas, à sanha de vizinhos mal intencionados. Hoje ninguém tem nada, a não ser pequenos rasgos de carne.

Peguei o canivete recém adquirido e testei o fio. Até que estava bom. Daria para despelar um cão com relativa facilidade, se eles ainda existissem. Tateei minha faca, presa na cintura e me levantei, esticando as pernas preguiçosamente. Em tempo de ver um vulto passar correndo alguns metros à frente, contornando obstáculos, se ocultando sob as sombras. Sorri sentindo a adrenalina jorrar. Empunhei o rifle e saí sorrateiro atrás do próximo freguês.

O sol estava inclemente. Nenhuma nuvem no céu. Dois urubus passaram em vôo ligeiro lá para os lados de onde atendera meu último. Esses também lutavam pela sobrevivência. Uns limpando a sujeira dos outros.

Corri ágil por entre os escombros, sentindo no ar o cheiro de suor. Suor que não era meu. Marcas recentes no chão mostraram a direção que o freguês tomara. Pés pequenos. Olhei para além.

Vislumbrei paredes e ruínas. O pó suspenso, sendo atirado para lá e para cá pela brisa. Apurei os sentidos, avancei cauteloso por alguns metros e finquei o dedo no gatilho. Quase um nada para fazer a arma disparar. Girei o corpo com leveza, saltei uma pilastra e enfiei as mãos num vão, agarrando cabelos.

Puxei com força, colando o cano do rifle na cara do freguês.

Ou da freguesa, melhor dizendo.

Olhar enraivecido. Não demonstrava nem um pouquinho de dor, embora a sustentasse pelos longos cabelos. Rosto sujo, roupas em farrapos. Pés no chão. Apertei o rifle entre seus lábios, forçando-a a abri-los. Ela o fez. Os dentes despontaram. Muitos escurecidos, alguns em bom estado. Quantos anos? Não mais que dez, ou onze. Mirrada e subnutrida. Renitente naquele olhar desafiador.

Soltei o rifle e levei a mão livre até seus peitinhos. Senti as leves protuberâncias sob o tecido gasto. Apalpei mais abaixo. Nádegas magricelas, mas que me deram pensamentos sórdidos. Soltei um risinho sacana e fui arrastando a menina pelos cabelos por longos quarteirões. Era uma freguesinha jovem. Dar-lhe um tiro na cara nada me acrescentaria. Mas era companhia, ora se! Sabia que ia ter que amarrar a danada num lugar qualquer. Talvez até amordaçar. Ah, ia tentar fugir e fazer um barulho daqueles... Eu não deixaria.

Os olhares me acompanharam. Os mesmo que espreitavam das janelas, dos prédios destruídos. Um par de sapatos com cadarços amarrados, pendurados num ombro. Um rifle pendurado no outro. Um canivete num bolso, uma boa faca na cintura e uma menininha que me fazia estremecer de desejo bem presa por entre os cabelos. Ela enfiava os dedos, como garras, em minhas mãos. Tentava me ferir, me fazer soltá-la.

Mas o máximo que conseguia era me deixar ainda mais excitado. As perninhas trotavam atrás de mim, tentando acompanhar o ritmo acelerado. Os olhos marejavam mas dos lábios não escapava nenhum som. Nenhum protesto.

Entrei na bocarra que se abria à minha frente. A guarita da garagem ainda mantinha um calendário que ostentava uma pin-up peituda, loira de olhos azuis. Carnes abundantes. Eu a deixara lá. Era uma espécie de mensagem de boas vindas para todas as vezes que retornava das caçadas, com butim ou sem. O prédio acima estava demolido. Nenhum andar de sobra. Quatorze andares jaziam esparramados numa área de muitos e muitos metros quadrados. Montes de entulho. Atravessei o portal formado por uma ampla placa metálica, verifiquei as armadilhas para ver se não tivera visitas enquanto estava fora e então joguei a menina com força contra uma parede. Ela bateu num choque surdo, soltou um gemido e desabou. Os cabelos desgrenhados. Alguns tufos ainda bem presos entre meus dedos.

Esfreguei as mãos me livrando dos cabelos e vasculhei minha mochila. Peguei um naco de carne e o joguei na direção da menina. Ela olhou a carne, lambeu, mordeu e foi mastigando, olhos bem fixos em mim.

Era raro encontrar meninas jovens assim e solitárias. Raríssimo. Difícil também ver adultos, principalmente durante o dia. Eles escolhiam a noite para perambular. Buscavam a escuridão. Grupos esparsos, as matilhas, existiam aqui e ali. Vagueavam pela urbe e fora dela, se alimentando do que podiam achar. Grupos até organizados. Eu era um caçador solitário, evitava grupos e aglomerações. O que caçava era meu e não precisava dividir com mais ninguém.

Me agachei diante dela e voltei a tocá-la. Ela não esboçou nenhuma reação. Corri os dedos pelas ancas estreitas. Acariciei as coxas magras. Tateei as costas que exibiam as costelas de maneira impudente.

Eu a queria. E naquele momento.

Arranquei os trapos que a cobriam. Ela recuou o que pôde, se espremendo contra a parede. Dois pequenos montículos se sobressaiam onde um dia ela (se continuasse viva) teria peitos. A vulva mostrava pequenos e sedosos pelinhos que iam cobrindo a região. Agarrei-a pelas pernas e a arrastei para o meio do esconderijo, sobre folhas de papelão. Virei-a para ver as nádegas. Brancas e exíguas. As espalmei. As apertei. Bati nelas. Avermelharam até parecer fogo.

Levantei e tirei as calças. Desprendi a faca e a coloquei de lado, ao alcance da mão. Virei a menina mais uma vez. Abri suas pernas com força, me colocando entre elas. A Agarrei pelos cabelos e a fiz olhar para meu pênis antes de penetrá-la.

— Você vai gostar, vaquinha. Pode crer que vai.

Deitei sobre aquele corpo miúdo. Me infiltrei para dentro dela, fazendo-a, pela primeira vez, soltar a voz. O grito foi agudo. As pernas começaram a chutar, os braços a sacudir, desferindo socos nas minhas costas. A boca, nervosa, tentava me morder o rosto. Num golpe seco completei a penetração. Ela urrou, arregalando os olhos. As pernas pararam de se mover e os braços tombaram, inertes. Ela passou a me observar sem emoção enquanto ia e vinha.

Maravilha das maravilhas. Uma pequena prostituta para me satisfazer os desejos. Um objeto de prazer à disposição dia e noite. Uma jovem freguesa. A mais tenra, a mais atraente, a mais sedutora, a mais gostosinha. Freguesa para muitos e muitos atendimentos.

—Minha freguesinha deliciosa – Sussurrei ao seu ouvido, enquanto me preparava para explodir.

Momentos de êxtase. O mundo era perfeito. Destruído, arrasado, despovoado. Vida animal quase extinta. E menininhas como aquelas, gazelinhas correndo por entre escombros, exibindo graciosidade à sanha de caçadores implacáveis. Doze, onze, dez anos. Tanto faz. Carne é carne. Prazer é prazer.

Dei uma estocada final. Profunda. Ergui o olhar para o teto, respirei fundo e gemi, enquanto uma faca era enterrada nas minhas costas. Abaixei o rosto. Ela estava lá: sorrindo. Ambas as mãos apoiadas em meu peito, me empurrando. As pernas flexionadas, joelhos colados em meus quadris. Eu ainda túrgido dentro dela. Com um movimento me fez tombar de lado, arrastando-a comigo. Se Livrou de meu aperto, desvencilhou a jovem vulva de meu pênis e se ergueu lentamente. Ao lado surgiram várias outras crianças. Um deles com meu rifle nas mãos. Outro com a minha própria faca, ensangüentada. Outro com o canivete. Outra arrastava minha mochila para fora do esconderijo. Outros vasculhavam o lugar atrás de aproveitáveis. Um grupo considerável olhava para mim e os olhares não escondiam desejos.

Tossi, lambi os lábios e sorri para a putinha que estava ao lado. Corpinho magro e que estivera sob o meu há tão pouco.

— A freguesia vai querer o quê? – perguntei num suspiro, soltando uma golfada de sangue. A resposta veio num instante: um tiro à queima-roupa. Meu crânio explodindo em milhares de fragmentos ensangüentados. Lançaram-se sobre mim. Unhas e dentes buscando pedaços para matar a fome.

Novas leituras do TerrorCon

Novo apanhado de mini-resenhas de textos deste blog por Fernando S. Trevisan




M.U.A. - Um conto uniformemente acelerado
Por Fábio Fernandes

Publicado originalmente em "Interface com o vampiro e outras histórias", este conto fantástico - como bem falou o Romeu, em todos os sentidos - faz boa parceria com o anterior do Orsi. Maldição? Experiência que deu errado? Apenas loucura? Sem sequer pensar em apresentar soluções, Fábio brinca com o conceito de viagem no tempo em uma trágica relação amorosa. Genial.

Visitante - Uma excursão a um estranho museu
Por Carlos Orsi

A qualidade do texto do Orsi já é conhecida e este conto é apenas mais uma prova. Misturando fantasia com ciência, atualizando - melhor seria dizer projetando para o futuro - antigos mitos. Guerra, paixão, mundos exóticos e tecnologia à décima potência são acessórios utilizados com inteligência para alcançar o objetivo final: uma boa história. Excelente!

O Último Flávio - Uma ida ao zoológico
Por Rita Maria Felix da Silva

Bom conto da Rita - curto, eficiente e bem construído. No futuro, um alienígena encontra o último ser humano e tenta travar contato, com conseqüências não de todo inesperadas. Adorei o fato - improvável - do último humano falar português...

A ilha de Tobias - Uma pulp fiction insular
Por Leonardo Siviotti

Bom conto, com suspense e ritmo, costurado precisamente. Já publicado na Ficção de Polpa 2 - que eu ainda não tenho, por isso para mim foi inédito. Não concordo com os comentários de que o final era previsível - a situação era, mas o final, não exatamente

Pela Deusa - O evangelho de uma divindade altiva
Por Maria Helena Bandeira (arte de Gustav Klimt)

Novamente primando pela qualidade - dá até medo mandar algo para o Romeu avaliar e eventualmente publicar - vem este excelente conto da Maria Helena. Um comentário - da Giseli Ramos - tem a palavra-chave para mim: autocontido. Menos de 500 palavras, mas quanta história e emoção!

O Messias Decidido - I - Prelúdio - Uma treta em Capão Redondo
Por Richard Diegues

Justiceiros, "zorros" e "robins hood" são freqüentes em todos os tipos de mídia - literatura, cinema, quadrinhos. Agora, a mescla de religião, vigilantismo e favelas paulistanas é uma bem-vinda - e atrevida - inovação. Excelente.

A Igreja do Diabo - Um mestre analisa as contradições humanas
Por Machado de Assis

A literatura fantástica está em todo lugar. Neste ano de centenário da morte daquele que é considerado o maior escritor brasileiro, nada mais apropriado que apontar obras dele que se enquadrem no gênero, como este excelente "A Igreja do Diabo" - que, como todas as grandes obras, é sempre um prazer reler. Aproveito a mini-resenha para indicar o site com a obra (quase) completa de Machado de Assis, lançado em setembro pelo governo federal, com material para horas e horas de leitura.

Meio que abduzidos - O relato de um suposto contato imediato
Por Ataíde Tartari

Ótima seqüência para o perfil anterior - em uma prosa envolvente, Tartari descreve o relato - hilário - de um rapaz urbano sobre um contato imediato ocorrido na famosa cidade paulistana Campos do Jordão.

O carteiro das galáxias - O perfil de um ufólogo grego que transmite mensagens de ETs em Florianópolis
Por Romeu Martins

Um raro caso (único, talvez?) de não-ficção do blog Terroristas da Conspiração... ou seria ficção? Fico mais assustado do que bem humorado com perfis desse tipo, mas o trabalho "pré-foca" do Romeu foi excelente e é uma leitura divertida, com humor fino entre as linhas...

Hiroshima Acelerada - A prequel do conto "Estupidez artificial"
e
Estupidez Artificial - Uma desventura cyberbeat
Por Ludimila Hashimoto

Mini-resenha dos dois, pois pertencem ao mesmo "universo" e estão em seqüência lá no Terroristas. Intrigantes e melancólicos, os textos referem à morte, culpa, perdão, renascimento e decepção. Ecos de "Brilho eterno de uma mente sem lembranças". Misterioso e muito bom, como os melhores textos da Ludi.

Oh... Crianças! - Um conto sobre molecagens no espaço
Por Rita Maria Felix da Silva

Seco e inteligente, este conto de ficção científica da Rita une o horror a um cenário centenas (ou milhares, quem sabe) de anos no futuro. Ótima história curta.

Fatalidade - uma comédia de humor negro
Por Cristina Lasaitis

Bom conto, com pitadas generosas de humor negro, embora com final um pouco previsível. Publicado anteriormente no Novas Visões de São Paulo.

Resenha:
Romeu Martins retoma suas resenhas no Overmundo com Viagem ao Centro da FC, ótima resenha de "Volta ao mundo da ficção científica", organizado por Edgar Nolasco e Rodolfo Londero.

Sombras - Uma narrativa sombria escrita

Por Maria Helena Bandeira com arte de Leonor Fini
terrorcon.blogspot.com

A Maria Helena conta aqui um conto melancólico, mostrando como é triste a realidade de quem sofre de doenças que afetam a percepção - mesmo com a ajuda da tecnologia para mitigar seus efeitos, ou talvez, devido exatamente a estas tentativas...

É foda existir - Uma ficção fantástica sobre o amor

Por Camila Fernandes
terrorcon.blogspot.com

Confesso que até as últimas linhas, este texto não me agradava. Parei de ler e retomei umas duas vezes. Mas, quando terminei, me arrependi de não ter ficado um pouco mais atento e ido de uma vez até o final. O "TDC" mantém o nível com este incrível texto da Camila Fernandes!

The Schroedinger show - A primeira apesentação quântica de rock

Por Carlos Orsi
terrorcon.blogspot.com

Genial conto curto de Orsi, brincando com a mídia, mecânica quântica, ignorância científica e direitos autorais.

27.10.08

M.U.A.

Um conto uniformemente acelerado por Fábio Fernandes

1980

O murmúrio no interior da igreja já virou um burburinho a essa altura. Da limusine alugada Renata ouve tudo com uma clareza assustadora: o choro de um bebê, a voz esganiçada de uma tia velha, o riso gostoso do filho de uma amiga. Ao seu lado, o pai tenta disfarçar a décima-quinta consulta ao relógio, mas ela percebe.

- Que horas são? - pergunta.

- Ele já deve estar chegando, filha - responde o pai sem muita convicção.

Renata pega o braço esquerdo do pai e vira o pulso. Seis e quarenta. O casamento estava marcado para as seis.

- Deve ser o trânsito, Renata.

- O Ramón mora em Botafogo, papai. De lá pra cá não demora mais que dez minutos, vinte com tráfego ruim.

O pai não argumenta.

Os convidados começam a sair. Os parentes e agregados ficam nas escadas; os amigos de faculdade de Renata se espalham lentamente pelas imediações, admirando a paisagem do alto do Outeiro da Glória. Ninguém foi embora, mas Renata sabe que isso não vai demorar: quando o primeiro tomar coragem, os outros irão atrás. Pedindo desculpas, com um pouco de constrangimento, mas irão. Renata não chora. O que ela sente é raiva, uma raiva tão grande que evapora qualquer possível lágrima antes mesmo de sair de seus olhos; de algum modo, ela sabia que isso iria acontecer. Não era de hoje que Ramón vinha se comportando de forma estranha, sumindo por dias, às vezes semanas. Na última vez em que se viram, três dias antes, ela lhe perguntara se ele realmente ainda queria se casar. Ele respondera que sim, era o que ele mais queria; mas Renata viu em seus olhos uma hesitação, um desespero, alguma coisa que o sufocava e ele não conseguia revelar o que era. Ela não forçou a barra para que ele contasse; agora se arrepende.

E jura que, se Ramón não aparecer, não haverá perdão nem volta.

1986

O murmúrio no interior do shopping já virou um burburinho a essa altura. Porra, desabafa Renata, no Natal tudo bem, mas já passou um mês. Mas a chuva que cai lá fora, e só agora ela percebe, foi a causadora da aglomeração. Bom, a lista de presentes já foi providenciada, ela pensa. A tentação de tomar um sundae enquanto espera a chuva passar é grande, mas Renata opta simplesmente por ficar embaixo da marquise do shopping à espera de um táxi. Consulta o relógio: oito e meia da noite. Ela gostaria que Maurício estivesse ali, mas seu noivo não dispensa o chopinho das sextas com os amigos do trabalho.

Nem por ela. Nessas horas ela lembra de Ramón. Ele também tinha sua ânsia de liberdade, seus sonhos, mas era incapaz de deixá-la sozinha. Nessas horas ela só lembra das coisas boas. Foi tudo o que sobrou. Renata nunca mais o viu.

- Renata?

Renata nunca mais ouviu o som de sua voz.

Ela se vira.

O rapaz à sua frente não tem mais de vinte e quatro anos, a idade que ela tinha no dia do casamento que não houve. Está vestido com um jeans semi-baggy e uma camisa amarela bufante
com hibiscos roxos. Os cabelos pretos cheios, batidinhos sobre as orelhas, parecem anos setenta demais para ela. Ramón não mudou absolutamente nada.

Renata respira fundo.

- Como vai, Ramón? - ela pergunta, tentando parecer fria.

O rosto de seu ex-noivo não tem a mesma pretensão.

- Você não está notando nada? - ele responde com outra pergunta, a voz embargada.

- Estou - ela o olha de alto a baixo. - Sua cara de pau não mudou.

Ramón respira fundo. Renata percebe que ele está muito agitado.

- Renata, me escute com atenção - ele chega bem perto dela, como se quisesse sussurrar. Mas seu tom de voz não diminui: - Cheguei há dois dias. Não sei quando vou embora. Preciso falar com você, é muito importante. Por favor.

- Você está morando fora? Onde? - ela pergunta, tentando aparentar mera cordialidade. Mas ela quer mesmo saber.

Por um momento, Ramón age como se ela não existisse; levanta a cabeça, olha para o shopping como se não o conhecesse, abaixa os olhos e percorre a paisagem ao redor.

- Aquele bar onde a gente costumava ir ali na rua da Passagem ainda existe? - ele pergunta de repente.

- Existe. Quer ir até lá?

- Quero.

Eles saem do shopping e vão na direção do bar. Mal conseguindo disfarçar o nervosismo, Renata anda a passos largos. De repente, percebe que deixou Ramón para trás. Vira-se: ele avança devagar, como se estivesse passando mal. Ou não quisesse andar depressa.


Pedem dois chopes. Renata espera: Ramón não fala uma palavra até que o garçom traz as bebidas e o cardápio. Ele pega a tulipa e toma um longo gole. Renata percebe que a mão do rapaz treme.

Mão exatamente igual a da última vez em que beberam, naquele mesmo bar. Renata olha Ramón com mais cuidado.

Ele parece tão novinho... Por um momento todos aqueles anos de namoro voltam, e nada mudou. Os olhos de Renata ficam marejados.

- O que você tem para me dizer, Ramón? - ela pede, antes que desabe em lágrimas que não quer mostrar.

- Eu quero pedir perdão, Renata. E te dar uma explicação... de porque é que eu não fui ao... - a voz morre na garganta.

Cachorro, não tem sequer a coragem de pronunciar a palavra “casamento”, pensa Renata.

- Não precisa explicar nada - Renata diz, procurando um cigarro na bolsa. Jurou a Maurício que ia parar, mas uma ocasião dessas é mais que desculpável. - Já passou, Ramón. É uma página
virada.

- Página? Claro, claro! - O semblante de Ramón se ilumina tão subitamente que Renata sente uma pontada de medo. Parece doido. Ela acende o cigarro e dá a primeira tragada - longa - enquanto aguarda que ele termine de mexer em sua bolsa.

Renata reconhece a bolsa: uma sacola riponga azul e verde trançada, que ele comprou em Ipanema um mês antes do casamento. Mas não pode ser a mesma, ela pensou: a bolsa da qual Ramón tirava agora uma folha de jornal era nova em folha.

- Dá uma olhada na data deste jornal - ele pede, estendendo o papel quase na cara de Renata. Ela pega a folha: é o caderno B do Jornal do Brasil. A data é 16 de janeiro de 1980. Uma quarta-feira. O dia em que Renata o viu pela última vez.

O jornal está como novo.

- Não estou entendendo nada, Ramón - ela pergunta, a irritação se misturando com o estranhamento. - O que é que você veio me dizer de tão importante?

- No shopping, você me perguntou se eu estava morando fora. Não, Renata: eu fui mandado para fora.

- Como? - ela pergunta, imediatamente imaginando mil possibilidades. Recém-formado em jornalismo na época do noivado, ele vivia endividado. Será que havia se comprometido com algum agiota e tivera que fugir para não ser morto? Ou seriam drogas? Ela apura o ouvido: não quer perder essa explicação.

- Eu viajei no tempo, Renata - Ramón diz bem devagar, medindo palavras que não podem ser camufladas.

E nem assimiladas.

- Francamente, eu achei que a gente estava falando sério - Renata se levanta. Ramón barra sua passagem.

- Pelo amor de Deus, Renatinha, me ouve - seus olhos estão cheios de lágrimas. - Eu estou desesperado, não sei o que fazer. Preciso falar com alguém.

- Você precisa é de um psiquiatra, isso sim - e Renata se arrepende no instante em que as palavras saem de sua boca.

Pois deve ser exatamente disso que ele precisa, e ela não devia tornar as coisas mais difíceis com sua crueldade. Afinal, ela parece estar em melhor estado que ele.

Que reconhece isso de alguma forma.

- É, eu pensei nisso - ele admite, sem medo de esconder as lágrimas que escorrem pelo rosto. - Mas como é que as coisas mudaram tanto e eu não mudei nada? E minhas roupas? E as coisas que eu tinha comigo?

Renata torna a se sentar. Ramón faz o mesmo.

- Isso começou a acontecer uns seis meses antes do dia do casamento. Eu comecei a ter brancos estranhos. Atravessava uma rua de manhã, e chegava do outro lado à tarde. Entrava na cozinha à noite e voltava para a sala ao meio-dia.

- Você procurou alguma ajuda? - ela pergunta, agora com mais sutileza.

- Procurei um neurologista - responde Ramón. - Fiz exames, mas o médico não achou nada de errado comigo. Cheguei a marcar um psicólogo, mas foi exatamente naquele período que eu sumi uma semana. Lembra como você ficou puta comigo?

- E como é que eu ia esquecer? Ainda lembro da raiva que eu senti do Zé Carlos. Pensa que eu não lembro que ele tinha te convidado para um churrasco em Pedra de Guaratiba logo antes de você sumir? Teu sumiço nunca me desceu pela garganta.

- Nem pela minha, Renata. Pra mim não se passou um dia. Eu saí da padaria no sábado de manhã com um litro de leite e um pão quente debaixo do braço. Quando cheguei em casa era sexta-feira, perto do meio-dia. Mas foi aí que eu vi que tinha algo de errado.

- Custou tanto assim pra perceber? - ela diz, irônica.

- Não, não é isso. Foi aí que eu vi que não era nenhum problema meu. Eu não estava tendo branco algum. O leite continuava gelado e o pão quente. Eu estava exatamente como quando saí de casa. Até então, esses lapsos só haviam acontecido num espaço de horas. Mas depois de uma semana, como é que eu podia explicar o fato do leite não ter estragado e nem o pão envelhecido? E minha aparência? Nem a barba havia crescido!

- E o que você fez?

- Nada - Ramón confessa, o rosto desanimado. - Fazer o quê, Renata? Quem é que ia acreditar em mim?

Ela o encara irada.

- Que tal eu, Ramón? Por que você não me contou nada na época? Não tinha confiança em mim?

Ramón baixa a cabeça.

- Você não ia acreditar, Renata. Depois daquele incidente com a Janaína...

- Sei, sei, não precisa entrar em detalhes. - O caso de Ramón com Janaína foi bastante concreto, ele não tinha como inventar nenhuma desculpa estúpida para ocultar a verdade.

- Isso aconteceu três meses antes do casamento. Aí eu comecei a me prevenir: falei para meus pais e para você que tinha pintado um trabalho com cinema em São Paulo, e que eu poderia ir pra lá sem avisar, lembra? Pois então; foi pra tentar ocultar qualquer futuro salto.

- Como aquele de três semanas - Renata lembra.

- Como aquele de três semanas - repete Ramón. Aí já faltava pouco tempo pro casamento, e eu bem que tentei te avisar. Mas me deu um medo filho da puta na hora: você ia achar que eu estava de sacanagem com a sua cara e ia querer acabar tudo. Preferi ser covarde e esperar a cerimônia. Aí eu ia poder te provar que estava falando a verdade.

- Como?

- Levando você comigo - ele explica.

- Ah - Renata não sabe o que dizer.

- Pois é, é isso - e ele entorna a tulipa de chope. Pede ao garçom mais uma.

- Duas - corrige Renata.

- Você nunca foi de beber muito - ele observa, tentando amenizar o clima.

- Depois do que você me contou agora, vou precisar - ela diz. - Vem cá - ela o chama, fazendo um gesto para a cadeira ao lado. Ele troca de lugar. Renata acaricia o rosto de Ramón. A barba de dois dias é cerrada; ela lembra que seu pescoço ficava todo lanhado quando trepavam. Doía um pouco, mas Renata gostava.

Renata está toda molhada.

- Você está tão lindo - ela diz. E o beija.

Renata sente as mãos de Ramón acariciando seu rosto, seus cabelos, sua nuca. Há quantos anos ela não sentia aquelas mãos tão macias. É como se o tempo não tivesse avançado.

Delicadamente, ela interrompe o beijo.

- O que você disse é verdade, Ramón? - pergunta, pela primeira vez na dúvida.

Ramón faz que sim com a cabeça. A emoção é tanta que não consegue falar.

Renata pega sua tulipa de chope - que obviamente chegou durante o beijo - e toma um gole.

- Você não acredita em mim - diz Ramón, enxugando as lágrimas.

- Eu acredito - diz Renata.

- Não, eu te conheço bem. Você é muito teimosa. - Ambos riem. - Mas só há uma maneira de provar, Renata. - e ele estende a mão. - Vem comigo.

- Pra onde?

- Não sei - ele confessa. - Pela lógica, é somente para o futuro. A cada salto eu passo menos tempo em tempo real e o espaço percorrido é maior que o anterior. Ainda não tive cabeça para
calcular a progressão, se é que existe uma.

- Parece M.U.A. – diz Renata.

- O quê?

- Movimento Uniformemente Acelerado. Aprendi isso no ginásio. Isso ocorre quando um objeto atinge uma aceleração determinada constante.

- E a velocidade do objeto vai aumentando proporcionalmente, não é isso?

- Exato.

- Por isso tenho ficado menos tempo em qualquer época que eu esteja. O salto seguinte me deixou a seis meses depois do casamento. Fiquei quinze dias aqui. Então, de repente, fui no supermercado e voltei com as sacolas de compras dois anos depois.

- Pelo menos você tinha comida.

- Pelo menos... Porque eu já não tinha mais onde morar. Soube da minha mãe?

- Soube. Lamento muito.

- Tudo bem - ele toma mais um gole. - Ainda não deu tempo de sentir. Uma semana depois eu virei uma esquina e estou aqui.

Renata respira fundo.

- Você me dá um tempo pra pensar?

Ramón arregala os olhos.

- Renata, você ouviu o que eu te disse? A cada salto eu passo menos tempo em tempo real! Isso quer dizer que eu não sei quanto tempo tenho! Da última vez, foram sete dias antes um salto e o último. Já estou no segundo dia. Pode ser amanhã, ou daqui a pouco! Eu não tenho tempo a perder!

- Calma, Ramón - Renata procura medir as palavras da melhor forma possível; não vai ser fácil. - Você está se esquecendo que para mim se passaram seis anos? Seis anos! Como é que você acha que eu me sinto com você aparecendo assim de sopetão, me contando tudo isso, pedindo que eu
acredite e ainda por cima que vá com você?

- Se você se despedir de mim agora, pode ser que a gente nunca mais se veja.

- Isso é uma ameaça, Ramón?

- Não, Renata, eu já disse - ele fala, exasperado. - É uma constatação.

- Onde você está?

- Na casa de um amigo. Você ainda mora no mesmo apartamento?

- Moro.

- Posso te ligar amanhã de manhã?

- Pode.

Os últimos minutos apagaram o fogo de Renata. Tudo o que ela quer agora é ir embora. Chama o garçom, paga a conta e sai apressada. Ramón vai com ela até o ponto de ônibus.

Os quinze minutos que a separam do Humaitá não são suficientes para tantos pensamentos. A surpresa de rever o homem que ela tanto amou só não é maior que o pasmo por tudo o que ele lhe disse. Ela não quer, mas tudo o que lhe vem à cabeça nesse instante é uma notícia que ela soube nos tempos de faculdade, de uma colega cujo noivo era tão ciumento que um dia, após uma briga, tentou estrangulá-la. Ramón nunca teve tanto ciúme assim, mas Renata sabe que ele não é mais o mesmo de antigamente. Ela não custou tanto a superar seu abandono na porta da igreja para acabar como essa colega da faculdade.


O telefone toca às sete da manhã. Sonolenta, Renata se levanta, vai até o corredor e atende.

- Renata? Sou eu, Ramón.

A realidade a desperta na hora.

- Oi, Ramón.

- Podemos nos ver?

- Agora? - sente um frio na barriga.

- É muito importante, Renata.

Ela suspira. - Tudo bem. Onde?

- Estou aqui no Largo dos Leões.

Meu Deus, ela pensa. Ele está obcecado.


- Que bom que você veio - ele diz ao vê-la chegar. Tenta esboçar um sorriso, mas Renata sente a tensão.

- Vamos recapitular uma coisa, Ramón - diz ela, lembrando que nessas horas é melhor não discutir nem discordar. - Se eu for com você, não haverá volta, certo?

- Até onde eu sei, não há.

- E provavelmente vamos para muitos anos no futuro.

- Exato. - Ele morde o lábio inferior, preocupado. - Está com medo?

- Estou.

- Eu também.

Mas ele abre um sorriso de orelha a orelha. Estende a mão para Renata. Ela aceita.

Caminham durante horas, quase em absoluto silêncio.

Descem a Rua Humaitá na direção do Jardim Botânico, percorrem as ruas transversais à Lagoa, esperando que algo aconteça. Ramón consulta sem parar o relógio. Propõe para Renata irem ao Parque Lage, mas ela recusa. O Parque tem estado abandonado ultimamente, e ela não quer ficar sozinha com Ramón.

Compaixão tem limite. E paciência também. Ao final da tarde, voltando ao Humaitá, quem consulta o relógio é Renata.

Maurício já deve estar puto com ela. Eles haviam combinado ir ao cinema e depois a um bar com amigos. Ela quer ajudar Ramón, mas não quer arriscar um segundo noivado por causa dele. - Vamos ter que deixar isso para outro dia - ela diz com suavidade, tentando tranqüilizá-lo.

- Não, Renata, não dá - ele argumenta, a voz cansada porém firme. - Meu prazo está se esgotando. Eu posso ir a qualquer momento.

- Não digo eu - ela diz, soltando a mão dele.

- Como? - pergunta.

- Ramón, não vou ficar pra cima e pra baixo com você todo dia pra tentar provar uma coisa impossível. O que houve com você nesses últimos anos? A quem você está querendo enganar?

- Renata, pelo amor de Deus - ele diz, a voz embargada. - Não desiste. Fica comigo mais um pouco, eu vou te provar tudo.

- Não! - ela quase grita, mas já é o suficiente para chamar a atenção de todo mundo ao redor. Não é muita gente, mas as poucas pessoas que passam pelo Largo dos Leões viram a cabeça para ver o barraco. - Por favor, Ramón, me deixa. Eu estou noiva, e não quero perder esse casamento por sua causa. - Ela sobe pela Alfredo Chaves, confusa, envergonhada, cansada. Ouve os gritos de Ramón, esganiçados, nervosos. Penalizada, ela se vira uma vez para vê-lo.

E quase não há tempo.

No exato instante em que Renata bate os olhos na figura ofegante de Ramón, ela passa imediatamente a crer em tudo o que lhe foi dito pelo noivo fugitivo. Porque é como se o espaço
à frente de Ramón se dobrasse como um origami, se amassasse como uma folha de jornal, e ele fosse sugado para dentro dessa ruptura. Os gritos de Ramón são cortados ao meio, e por um
instante Renata pensa tudo: ele morreu, ele foi seqüestrado por discos voadores, ele realmente foi para o futuro, eu enlouqueci.

Renata não desmaia. Não tem a menor vocação para perder os sentidos em situações-limite. Mas gostaria de ter. Porque ela vai passar os próximos dias sem dormir, e seu sono nunca mais será o mesmo.

1996

O murmúrio no interior da sala de aula já virou um burburinho a essa altura. Renata volta com um copinho de café numa das mãos e um cigarro aceso noutra, o terceiro desde o começo da aula, há vinte minutos. Renata não consegue ficar na sala por muito tempo. Ser a professora não ajuda em nada, pelo contrário; foi preciso muito jogo de cintura ao longo dos anos para poder entrar e sair sem prejudicar a turma nem fazer com que o dono da faculdade ameaçasse demiti-la.

Renata é um feixe de nervos. Não pára quieta com a cabeça um instante: olha para os lados sem parar, como se estivesse à procura de alguma coisa, ou melhor, como se achasse que algo pulará à sua frente a qualquer momento, vindo do nada. Para Renata, o mundo não é mais o que costumava ser.

Ela retorna à sala.

- Vocês leram o texto? - ela pergunta da porta mesmo.

Dos vinte e dois alunos, apenas sete respondem que sim. Olhando o livro de Borges em cima da mesa, ela solta o ar ruidosamente pela boca, mais cansada que desapontada. Quando Renata começou a lecionar, seu entusiasmo era tão grande que ela fazia de tudo para conseguir que os alunos lessem e discutissem o texto. Hoje ela percebe que todo esse esforço foi em vão.

Como tudo em sua vida, aliás. A única coisa que Renata conseguiu completar na vida foi a faculdade de Comunicação. A mulher magra e nervosa que entra ligeira no carro também
não pára quieta em relacionamentos. O segundo noivado não resistiu às crises sucessivas de Renata em janeiro de 1986. Ninguém entendeu por quê, e Renata precisou se refugiar na
casa de uma amiga no interior do estado para que os pais não a internassem num sanatório.

Hoje Renata mora só. Ela e Deus, dizem uns. Mas para ela este último inquilino sumiu há muito tempo.

Ela vira a chave e o motor pega. Do lado de fora, a garoa que cai firme reduz sua visibilidade. Um homem passa apressado por trás do carro. Assustada, ela confere as janelas do carro: todas fechadas. Pisa no acelerador.

E então o rosto do homem se nivela com o vidro do lado do carona.

- Renata, pelo amor de Deus - pede Ramón.

Ela freia. Não tem outra alternativa: seu corpo treme da cabeça aos pés. Não consegue respirar; abre de sopetão a porta do carro e salta. A chuva que cai no seu rosto é a prova de que o que restou de sua sanidade ainda está no lugar.

Ramón corre para Renata. Ela abre os braços. O abraço é como um choque elétrico.

- Meu Deus, meu Deus - ele diz, a cara enterrada no ombro dela. - Como as coisas mudaram!

- Você já sabe... - ela começa.

- Não, não! - ele quase grita na cara dela. Seu rosto dói. - Não me conte nada! Vim direto. - E, como se lembrasse de seguir um manual de etiqueta: - Mas soube dos seus pais. Sinto muito.

- Você está bem? Chegou quando?

- Há duas horas. Foi o tempo de descobrir onde você estava.
-
Você veio direto? - ela pergunta, mas antes da resposta ela olha melhor as roupas dele: são as mesmas daquela tarde no Humaitá há dez anos.

- Renata, eu não agüento mais - ele diz, ameaçando chorar. - Me ajuda, pelo amor de Deus!

Renata chora sem parar. Como se tivesse vivido todos esses últimos anos integralmente, sem parar, Ramón se deixa vencer pelo cansaço. Desaba no chão.

- Me dê a mão, Renata - Ramón implora, a voz num fiapo.

As pernas de Renata tremem. O rapaz sentado no chão ao seu lado subitamente parece mais velho que ela, e Renata aparenta bem mais que os seus trinta e nove anos.

Renata estende a mão.

- Vamos - ela diz baixinho.

?

À primeira vista, nada mudou. O ponto de transição, como Ramón lhe explicou, é o mesmo: o
deslocamento não ocorre no espaço. Para Renata, não ocorreu absolutamente nada.

- O que você sentiu no instante em que sumiu na minha frente? - é a primeira coisa que lhe ocorre dizer.

- Nada - responde Ramón, olhando para os lados. - Num instante você estava lá, olhando para mim assustada, e no outro não estava.

- E o que vamos fazer agora? - pergunta Renata.

- Saber quando estamos - ele responde.

Então Renata também começa a olhar ao seu redor. As cores das casas estão diferentes: estão mais alegres, mais berrantes, mais díspares, como bandeirinhas de Volpi. O futuro parece bom, ela pensa.

Ao descerem a rua, não mudou muita coisa. Um colégio que antes ficava perto da praça agora virou um canteiro de obras; os operários ainda continuam trabalhando da mesma forma, com as mãos e sem equipamento sofisticado de proteção.

De mãos dadas, eles chegam a uma banca de jornais. A banca é maior, maior que os “aquários” de 96; é quase uma drugstore, mas nada que assuste.

Eles entram. Os jornais continuam de papel, e as revistas atulham todo o espaço, agora também com vários notebooks espalhados pela banca, exibindo jornais multimídia.

Renata está fascinada. Tão fascinada que nem percebe o bando que entra logo em seguida e assalta a jornaleira.

Mas o estrondo dos tiros ainda é o mesmo.

Todos gritam e se atiram ao chão. Renata faz o mesmo, e bate com o nariz em alguma coisa metálica. Por um momento sua mente desorientada pensa que foi um tiro, e que ela vai morrer. Mas nada acontece. Os gritos e as pessoas se levantando avisam para Renata que os ladrões já foram embora. A jornaleira diz a um policial alguma coisa sobre refugiados de Ruanda.

E então Renata vê Ramón. Caído no chão, uma mancha de sangue começando a se espalhar pelas costas da blusa branca.

Imóvel.

O último grito é dela.

? + 10

O murmúrio nas ruas já virou um burburinho a esta altura. Nas ruas, as pessoas andam de um lado para o outro, cabeças baixas na chuva. Entre elas, uma mulher anda para um lado, para o outro, em círculos, ziguezague; às vezes corre, às vezes pára. Ninguém mais olha para ela; todos já estão acostumados, ela está aí há anos, não faz mal a ninguém. Às vezes ela fala para o vento, ou solta um grito angustiado, mas o conteúdo é sempre o mesmo: ela chama um nome com o qual há muitos anos ninguém mais é batizado. Vive no passado, coitada, dizem os passantes.

Este texto faz parte da coletânea Interface com o vampiro e outras histórias, que pode ser adquirida gratuitamente aqui.

12.10.08

FC na academia

Acaba de entrar em votação, no site Overmundo, uma resenha minha do livro Volta ao mundo da ficção científica. A obra é uma coletânea de artigos acadêmicos que tratam de vários aspectos da FC produzida no Brasil e em outros países. Abaixo, segue um trecho:

A ficção científica costuma ter uma relação curiosa com público e crítica. Nos países em que o gênero literário conta com uma maior carga de tradição, como os EUA ou a Inglaterra, alguns escritores se tornam fenômeno de venda, mas tamanha popularidade costuma gerar desconfiança entre os críticos. Por outro lado, existem países em que a literatura, falemos na de gênero ou não, desconhece o que seja atingir uma massa de leitores. Nem é preciso dizer que este é o caso do Brasil. Por aqui, mesmo sem fazer valer o adjetivo de “popular”, com livros nacionais ou mesmo traduções de material estrangeiro raramente chegando à casa dos milhares de exemplares, a FC é relegada a segundo, terceiro ou último plano pela crítica. Todavia, se a interação com público e crítica não tem sido das mais profícuas, há um terceiro território em que os textos fictícios sobre especulações científicas recebem cada vez mais atenção: o ambiente universitário.

Pode não chegar a ser um avanço que inspire otimismo, mas não deixa de ser uma evolução o que vem ocorrendo. Entre 1967 e 1987, foram publicadas seis obras nacionais dispostas a analisar o tema. Meia dúzia de títulos em duas décadas. Nos anos 2000, mais exatamente de 2002 a 2006, já havia se conseguido igualar aquele número. Em 2007, um sétimo livro foi lançado, o mesmo de onde foram retirados os dados para este parágrafo, e com isso se renova a esperança de que a FC possa entrar cada vez mais na agenda do público, da crítica e da academia. Volta ao mundo da ficção científica presta uma contribuição e tanto neste sentido ao abrir espaço para discutir, sob vários ângulos, este gênero da literatura fantástica, irmão mais novo da fantasia e do terror.

De início, o interesse da dupla de organizadores, Edgar Nolasco e Rodolfo Londero, era se restringir a estudos sobre a produção brasileira. Com o tempo de elaboração, o escopo do livro lançado pela editora da Universidade Federal do Mato Grosso do Sul (UFMS) se ampliou: dos nove artigos, dois terços realmente tratam de temas locais; o restante traz visões de brasileiros a respeito de obras e de autores de outros países. Uma outra contribuição, muito bem-vinda, foi a inclusão de um conto inédito na coletânea.


Durante 48 horas, O texto aguarda o recebimento do número de votos necessários para entrar definitivamente no site. Conto com o voto de leitores e colaboradores do TerrorCon. Independentemente do resultado, mais tarde o artigo será postado no blog ao lado, o Ponto de Convergência.

5.10.08

Visitante

Uma excursão a um estranho museu por Carlos Orsi


Você se materializa, nua, no centro de um círculo de grama calcinada, no vértice de um tornado de gás escaldante. Sua pele muda de cor e consistência, adapta-se para lidar com a agressão que é a tempestade de calor: primeiro fica muito branca e pastosa, depois prateada, metálica, em seguida escurece e vira pele de novo.

Você olha ao redor, mas não me vê. Estou bem escondida, e o terreno não lhe é familiar. Nada aqui lhe é familiar.

O calor extremo não é um efeito comum do teletransporte, e você nunca viu grama na vida. Nunca? Talvez tenha visto – em filmes.

E o céu azul! O céu não é azul desde que a Terra foi desmantelada para dar origem à Esfera, ainda no tempo das lendas.

Seus dedos médio e indicador tocam as cinzas a seus pés e em seguida a vulva, as narinas, bem de leve, e a ponta da língua. São apenas cinzas – um pouco de fósforo e de magnésio, bastante potássio e monóxido de cálcio. Sódio. Talvez haja cádmio. Cinzas comuns. Cinzas amargas e quase sem cheiro.

Isso não parece surpreendê-la, esse fato tão inesperado, ver-se cercada de algo que não é nem uma arma, nem um inimigo, nem comida.

Você ergue a cabeça, o nariz, respira fundo. Os lábios em seu sexo se contraem. Farejou alguma coisa? Desde que não tenha sido eu... Ah, sim. A água, provavelmente. Há água abundante por perto. Então você se levanta, e caminha em direção à floresta.
* * *

As árvores cobrem toda a encosta, galhos entrelaçados, folhas entremeadas e trepadeiras emaranhadas criando uma espécie de superestrutura, uma topografia contínua, um patamar vivo dezenas de metros acima do solo. A vida é abundante, principalmente os insetos. Os besouros! Há mais besouros aqui do que células em seu corpo. As colônias de cupim são tão grandes e coesas que, quando se movem, parecem nem sair do lugar. Como um oceano.

Você já viu um oceano?

As teias das aranhas são véus e cortinas demarcando estranhos limites ecológicos. Paredes tênues, decoradas com cadáveres quitinosos, penas de pássaro e asas de borboleta, que separam a floresta em nichos e domínios que você nota, mas não tenta compreender.

Depois da terceira picada, sua pele, ainda escura, passa a exsudar um óleo repelente. Ele surge, abundante, aromático, principalmente dos mamilos e das axilas. Devagar, com uma certa relutância, a multidão artrópode da floresta decide deixá-la em paz.

Por algum tempo imaginei se o cheiro das flores, das frutas, das folhas e das criaturas mortas iria distraí-la, mas não: você se move, com firmeza de propósito, na direção da água. Seu clitóris ereto é como uma bússola, apontando o caminho.

Você chega às últimas árvores, enraizadas no leito já submerso e, então, é hora de descer. Sem pensar duas vezes, você mergulha.

A água aqui perto da margem não é perfeitamente azul, transparente, mas meio baça, esverdeada. Este é o Grande Lago Norte, onde desembocam o Ganges, o Amazonas, o Danúbio, o Tigre, o Eufrates e o Mississippi. No grande Lago Sul chegam o Yang-Tse, o Amarelo, o São Francisco, o Congo e os dois Nilos.

Pensando bem, não sei por que botaram o São Francisco e o Amazonas em lagos diferentes.

Claro, nada disso interessa a você. Sua pele absorve água e substâncias dissolvidas na água. Assim você cura feridas e se alimenta. O lago é tão rico em vida quanto era a floresta – insetos, moluscos, pequenos peixes, além de diversas criaturas que não são mais que protoplasma, animado por flagelos e voracidade. A água é doce até alguns metros, e salgada a partir daí. Isso é meio ruim para os mamíferos marinhos, mas este é um projeto que sofreu, desde o início, diversas restrições de espaço.

Qual o instinto que diz às piranhas que o melhor é manter distância de você?
* * *

Assim que você volta à tona, o qworila a agarra – a palma pesada, áspera, aromática, cobre-lhe a calva; os dedos se fecham envolvendo a curvatura de seu queixo – e o animal a arremessa de encontro ao tronco mais próximo.

O estrondo do impacto soa mais como uma explosão do que como colisão, e confesso que me assusta. Já o fato de que é o tronco que se parte, é a árvore que cai, enquanto você gira no ar e se posiciona, intacta, com os pés firmemente plantados na terra lodosa, assusta não a mim, que já esperava por isso, mas ao qworila.

A fera urra um grito de alerta, mas é tarde. Seus filhotes – só qworilas fêmeas atacam de surpresa – soltam-se os galhos das árvores ao redor e chovem sobre você, cada um com quatro mãos fortes dotadas de garras, e dentes que poderiam fazer inveja a um dos grandes felinos.

Você salta girando, de início com o braços e pernas juntos ao tronco – por um segundo é como se pairasse no ar, em posição fetal – mas então, enquanto gira, expande-se: cotovelos, punhos, joelhos e pés se projetam com violência à direita, à esquerda, adiante. A cada estágio da expansão corresponde um impacto. A cada impacto, um filhote de qworila cai, coberto de sangue, no chão.

Seus cotovelos quebram pescoços; seus joelhos rompem estômagos. Seus dedos, esticados, vazam olhos; seus pés esmagam pulmões.

Seu sexo exala um cheiro picante de pura ameaça; um neurotransmissor que lubrifica a passagem do medo. Pássaros, e mesmo os morcegos, fogem em revoada; os ratos dágua gritam e correm.

Você volta a tocar o chão. Oito cadáveres a acompanham.

A mãe grita, não mais em alerta, mas com ódio. Em menos de um segundo, a ira cresce até superar tanto a cautela natural da fera quanto o pânico induzido pelo neurotransmissor. O que os antigos costumavam dizer sobre a natureza e a fúria das mães?

Em dois saltos, o grande macaco carnívoro está sobre você. As garras dos braços mergulham em seus seios, enquanto os dedos dos pés se enterram em suas nádegas.

Você mexe a cabeça rápido, ergue o ombro, e as presas que visavam seu pescoço se cravam no bíceps.

Se você fosse um macho, isto seria uma cópula.

Você não liga. A dor é perfeitamente suportável. O importante é que a garganta da criatura está, agora, a seu alcance.

Você a arranca com os dentes.
* * *

Suas feridas saram rápido. Sangue e carne crua ajudam a acelerar o processo.

Assim que você emerge de seu segundo mergulho no Grande Lago, eu me apresento.

– Boa-tarde! – você me ouve dizer, enquanto as emissões ultrassônicas de minha garganta estimulam a parte correspondente de seu córtex auditivo: eu não sei exatamente de que maneira os códigos paralelos mais complexos, como o uso de tom e ênfase para comunicar emoção ou pontuação, evoluíram nestes anos. Não quero correr o risco de ser mal interpretada. – Seja bem-vinda ao Museu Terra. Pedimos encarecidamente que os visitantes evitem interagir com o conteúdo da exposição.

Esta última parte da saudação soa meio estúpida em vista do combate recente com os qworilas, mas o protocolo é o protocolo. Não tenho muita escolha a respeito.

Há uma beleza selvagem na forma como seu corpo se posiciona assim que o primeiro “som” de minha “voz” chega a você. É como olhar para um nu neoclássico original, algo saído diretamente do velho Movimento Olimpiano de Hong Kong.

– Quem é você, Bruxa? Que plano é aqui?

Eu caminho em sua direção, devagar, sorrindo, com as mãos espalmadas à mostra, perfeitamente visíveis. Sou pequena – meus olhos estão na mesma altura que seu umbigo. São grandes e redondos. Ao contrário de você, tenho cabelos – negros, longos atrás, com uma franja bem curta sobre a testa.

Fui projetada para fazer com que as pessoas se sintam à vontade. Não sei se os receptores subliminares da humanidade lá fora ainda reagem do mesmo modo à minha aparência e linguagem corporal, mas acho que seus instintos começam a lhe dizer para relaxar. Posso ver que os nós de músculo que saltaram de seus ombros para envolver o pescoço, durante a luta, já são menos evidentes.

– Sou sua Guia. Este é o Museu Terra – digo, respondendo às suas perguntas.

– Como vim parar aqui?

– Numa emanação cármica – respondo, em vez de dizer “num feixe de teletransporte”. Enquanto eu observava você, a Curadoria trabalhava para traduzir seu contexto, e me transmitia as descobertas. Ainda não sei tudo sobre o lugar de onde você veio, ou como você pensa, mas estou chegando lá.

– Você roubou minha alma?

– O carma foi enviado para cá. Nós o recebemos da melhor maneira possível. Faz tempo que não temos visitantes. Você é bem-vinda!

O feixe de transporte viera num ângulo errado e, por conta disso, havia acumulado uma energia absurda – um desvio fantástico para o azul. Poderíamos ter dissipado a radiação sem problemas, mas isso não seria aceitável: era óbvio que havia vida codificada no raio, e se ele fosse dissipado você teria morrido. Então, fizemos o melhor possível para trazê-la para dentro.

– Meu espírito – você diz – não vinha para cá.

Ao processar o feixe de teletransporte, tínhamos, por necessidade, lido boa parte da informação contida nele – acho que você poderia dizer que tínhamos lido não só seus átomos, mas também sua mente. Partes dela, de qualquer maneira. Então, sabíamos alguma coisa sobre sua missão. Tínhamos uma certa idéia da guerra. E estávamos começando a compreender o resto.

Percebemos que, tragicamente, o Museu havia passado muito tempo sem contato com o mundo lá fora.

Estamos cara a cara, você e eu. Ou cara a umbigo. Você parece relaxada.

Sinto um cheiro novo, adocicado, vindo de sua virilha. Levemente narcótico. Poção do amor? Soro da verdade?

– Você vai me dizer o que sabe?

– Sei apenas do Museu, que é onde estamos – respondo. – Foi para cá que você veio.

– Este lugar é muito grande – você insiste, enquanto seus dedos brincam com meu cabelo, descem até minha nuca. Carinho? Ameaça? – Parece um novo plano, e não...

Você se cala.

O cheiro doce é sutil, mas quase que posso visualizar as moléculas trabalhando em meu cérebro, fazendo com que eu queira ser agradável, muito agradável, o mais agradável possível. De certa forma, o perfume enfatiza minha diretriz original de Guia. Com algum esforço e sentindo a língua pesada, pergunto:

– Já ouviu falar na Contração de Lorentz?

– O que é isso?

– Quando uma coisa viaja muito rápido, ela parece menor por fora do que por dentro.

Você ignora a informação. Tento mais uma vez:

– Dilatação do tempo?

Desta vez, você descarta a questão e pergunta:

– Este é um outro plano, não é?

– Este é o Museu Terra – respondo, sorrindo. Explicar o Museu, afinal, é minha função primária. – Onde se decidiu que os grandes tesouros de Gaia ficariam preservados, depois que a humanidade resolveu desmontar o planeta para construir a Esfera.

– Você está falando dos Deuses Antigos que desfizeram a Lenda e criaram o Mundo? Mas os tesouros do Tempo da Lenda transcenderam conosco. Os Lugares Sagrados...

– Não o Vaticano, o Taj Mahal, Paris ou a Grande Cúpula de Zimbábue. Tudo isso foi integrado à Esfera. Os outros tesouros... Os que não sobreviveriam à transformação: os grandes rios. Algumas das montanhas. Plantas. Animais...

– Então, estamos no Volhala? No refúgio dos deuses? – você pergunta, enquanto agacha para me olhar nos olhos. Seu tom de voz, somado ao perfume de sua virilha, me leva às lágrimas: uma agonia sincera. Estou perdidamente apaixonada por você. Seu sorriso, que vejo agora pela primeira vez, é mais belo que a projeção de Saturno cingido pela Via Láctea, a imagem que enche nossos céus à noite.

Sem aviso, você se ajoelha, encosta a cabeça em meu ombro e pede, baixinho:

– Preciso de sua ajuda, pequena deusa! Vai me ajudar?

– Sim – respondo, com a voz embargada, abraçando você, minha vida, minha luz, meu amor. – Claro que sim.
* * *

Estamos caminhando já há dois dias quando, finalmente, chegamos ao castelo. Dois dias foi o tempo que a Curadoria precisou para criá-lo – um complexo de cavernas e desenhos mais ou menos abstratos esculpido numa antiga montanha, removida e levada até o local só para nós.

Nesse período você viu a noite, dominada pelo planeta gigante e seu anel de bilhões de estrelas. Na verdade, trata-se apenas de uma tela de apresentação – a face interna da cúpula do Museu pode ser programada para mostrar o céu noturno tal como seria visto da superfície de Gaia-Terra em qualquer latitude, longitude, data ou horário.

Nesses dias e noites você também caçou para que tivéssemos o que comer. Tentei lhe explicar que não era necessário, mas não adiantou. Insisti um pouco, mas... Depois, entendi.

As caçadas faziam você se sentir forte. No controle.

– Votán vive aqui? – pergunta você, enquanto caminhamos pela planície que leva ao castelo.

Eu respondo com um aceno da cabeça. Você sorri, nervosa.

– E ele vai me ajudar?

– Não sabemos nada sobre sua guerra – digo eu. – Quero dizer, não sabíamos. Mas agora...

Você sorri, de novo. Desta vez, o nervosismo é menos aparente, mas ainda está lá.

Tenho uma vontade louca de beijá-la na boca.

Sinto-me estranha. É como se minha mente tivesse sido dividida em duas: a parte que faz interface com você imersa nesta paixão absurda, totalmente sob seu poder, enquanto a parte que faz interface com a Curadoria continua ligada, unida, submissa aos interesses e projetos do Museu.

Minha individualidade, se é que tenho alguma, está contida entre essas duas extremidades. Presa entre dois pontos: um segmento de reta.

Novos dados sobre a vida na Esfera – sobre você – chegam, sem parar, vindas dos filtros da Curadoria. Essas informações, minha mente correlaciona com o que você me diz ao longo de nossa caminhada rumo ao castelo, às coisas de que falamos ao redor da fogueira, enquanto comemos, ou deitadas sobre a relva, antes de dormir. O produto é enviado de volta à Curadoria que, então, me fornece uma versão final, limpa e contextualizada, do que há para aprender.

E eu aprendo. Sei, por exemplo, que a guerra que você luta, há séculos, opõe duas facções, chamadas “Bruxas” e “Fadas”. Que você é uma “Fada”. Que os módulos interdependentes da grande Esfera que envolve o Sol são “planos de existência”; que as linhas de teletransporte entre os módulos são “emanações cármicas”; que as viagens entre os módulos são “mortes” na partida e “encarnações” na chegada.

Mais interessante ainda, compreendo que você, de fato, nunca viu uma Bruxa. Na verdade, sua tradição diz que ninguém vê uma Bruxa e vive para contar a história.

As Bruxas, diz essa mesma mitologia, habitam Chintav, o módulo localizado no pólo da Esfera oposto a Yeom, o Berço das Fadas. E as Fadas lutam uma guerra interminável, contra máquinas e monstros, para “transcender os planos de existência”, “ascender espiritualmente” por meio de diversas “encarnações” e finalmente chegar a Chintav, derrubar as Bruxas e instaurar uma Nova Ordem, uma abstração conhecida pelo nome de Nirnâva.
* * *

A grande montanha esculpida foi colocada sobre uma planalto rochoso, cercado por uma planície coberta de capim roxo que ondula ao vento – como a cabeleira de um gigante vaidoso – e enormes girassóis. O acesso da planície ao planalto se dá por meio de uma escadaria natural, aparentemente cortada na pedra por um fluxo de água que deixou de existir há muito tempo.

Alguns dos degraus da escada são ocos, minados pela corrente subterrânea, e soam alto a cada passo seu.

– É o Caminho da Aldrava – explico, repetindo o que a Curadoria me diz. – Assim, o Senhor saberá que há visitantes chegando.

Do ângulo em que estamos, os relevos desenhados ao longo da montanha – do castelo – parecem-se com olhos. Milhares deles, observando-nos, todos girando em nossa direção, acompanhando cada movimento que fazemos.

Na verdade, somos nós que giramos, ao seguir o traçado curvo da escada, mas saber disso não diminui em nada o efeito.

Você, porém, não parece impressionada. Isso requer um belo bocado de esforço, mas você realmente consegue não parecer nada impressionada.

Quando chegamos ao castelo, a porta já está aberta. Um homem nos aguarda – pequeno, de nariz comprido, envolto em trapos brilhantes, envelhecido. A Curadoria me informa de que todo o elenco do edifício é masculino: não queremos que você tenha a impressão de que esta é uma armadilha das Bruxas.

– Bem-vindas, donzelas viajantes – diz o velho. Suas boas-vindas não soam como as minhas. Não são sinceras. Há uma ponta de sarcasmo na forma como diz “donzelas”. – O Grande Votán as aguarda. Por aqui, por favor.

Você permite que eu entre primeiro.

Atravessamos um corredor amplo, com teto em forma de ogiva e ladeado por colunas com patas de leão na base e enormes mãos humanas, abertas, no topo: segurando, literalmente, o peso dos grandes arcos.

A luz flui de pequenas aberturas em forma de losango, colocadas a meia-altura nas paredes de rocha polida.

Seguimos o velhote narigudo até o fim do corredor, viramos à direita, andamos mais um pouco e chegamos a uma grande sala, com uma mesa enorme ao centro. A mesa é parte do piso. Esculpida no mesmo leito de rocha, ergue-se dele sem nenhuma descontinuidade aparente.

Sentado à mesa, em um trono rochoso, está o avatar escolhido pela Curadoria. Votán, pai dos deuses. Um homem alto, forte, barbado, com um olho brilhante ao lado de uma órbita vazia. O corpo, uma massa de músculos e cicatrizes, vestido em peles. Há uma lança apoiada à direita do trono. Suas mãos estão calçadas em luvas que parecem feitas de ossículos tirados dos dedos de cadáveres.

Ao vê-lo, eu me inclino, você me imita. A um sinal dele, nos aproximamos. Sinto ciúme: você começa a exalar seu cheiro doce, tentando seduzi-lo.

Seguro o choro o melhor que posso.

Votán ergue a mão esquerda e estala os dedos – o estalo é como o som de um trovão, e faz saltar uma faísca amarela, súbita, ofuscante, seguido por uma nuvem tênue de fumaça. Fogos de artifício na luva?

De repente, o perfume que vinha de seu sexo desaparece do ar, neutralizado.

Votán sorri para você:

– Não tente me enfeitiçar, pequena Fada.

Você se ajoelha. Sem baixar a cabeça, responde:

– Se o ofendi, senhor, foi pelo desespero de minha causa...

Votán balança a cabeça, paternal:

– Não há mais “causas” aqui, menina. Você sabe onde está, não sabe?

Minha querida Fada, você hesita apenas um segundo antes de responder:

– Se o senhor é Votán, este é o Volhala.

– E o que é o Volhala?

– É o plano para onde vão as Fadas... as Fadas...

– As Fadas que morrem sem transcender. Ao menos, é isso o que algumas de vocês pensam. Mas, para outras, Volhala é o lar das Fadas que realizam a maior de todas as transições. É a recompensa final. Chegar ao Volhala é ter ascendido ao máximo. É crescer para além do mero jogo e entrar na realidade. Volhala é o plano definitivo, o plano eterno. Você conquistou o direito de estar aqui. Alegre-se!

A exortação de Votán ricocheteia nas paredes e volta, multiplicada por um eco poderoso que não tinha estado lá até o momento anterior.

Respeitosamente, você se levanta.

– Senhor, eu morri e parti de meu plano com a missão de interceptar uma arma, uma arma poderosa, de energia infinita, que se aproximava de nós. Minha missão não está completa. Como posso ser digna?

– A “arma” que suas irmãs pressentiram no vácuo entre os planos era, na verdade, o Volhala. Você não pode ser culpada pela ignorância delas. E, o mais importante: de todas as Fadas, só você teve a coragem de morrer para ser lançada ao desconhecido. Essa é a coragem que está sendo recompensada.

– Mas...

– Mas, basta: você e a pequena Guia, vão para seu quarto. Descansem. Esta noite, vocês jantarão no salão dos Heróis!

Votán se levanta, dando a audiência por encerrada. O velhote reaparece – se é que se havia afastado – e nos conduz de volta ao corredor.

* * *

Estar com você no quarto é... Difícil dizer. Estranho, sem dúvida. Excitante, também. E assustador.

Você não precisa mais de mim. Sua química – seu “feitiço” – e a vocação que carrego já me induziram a lhe dar tudo que você acreditava ser necessário. Seu acesso a Votán está garantido. De que lhe serve, portanto, esta pequena Guia?

Agora estamos sozinhas neste quarto, escavado e esculpido na rocha cinzenta da montanha. Parte de mim está paralisada com medo e expectativa, com os olhos molhados. Outra parte sorri, cheia de um outro tipo de expectativa, uma hipótese em formação, quase que intoxicada pela curiosidade.

Devo parecer muito estranha, chorosa e sorridente ao mesmo tempo.

Estou sentada na cama e ouço você saindo do chuveiro. Será que havia camas e chuveiros lá no módulo – desculpe, plano de existência – da onde você veio? A Curadoria provavelmente já sabe disso, mas a informação ainda não chegou aqui.

Sua pele está avermelhada, quente, evaporando a água quando você aparece na soleira entre o banheiro e o quarto propriamente dito.

Envolta em neblina, você se volta para mim. Fico surpresa ao notar a limpidez de seu olhar. Nada de piedade nos contornos, nenhuma dissimulação no brilho. Processo esses dados e meu medo vira esperança, minha curiosidade se eleva.

Você sorri.

O chão se abre.

Não há estrondo, apenas um som como o de tecido rasgado. De repente há uma cratera por debaixo da cama, e eu me vejo caindo, enquanto duas sombras sobem, passam por mim, projetam-se em direção ao ponto de luz, acima, que é a abertura cada vez mais distante.

Ouço sua voz gritar:

– Trolòs!
* * *

Os trolòs emergem da cratera um segundo antes de a abertura se fechar. São máquinas de metal escuro, cilindros longos como um braço estendido, cobertos por milhares de agulhas, mais finas e flexíveis que cabelo humano, muito compridas, extremamente resistentes, capazes de cortar diamante e perfurar aço. Também há quatro braços articulados, terminados em tenazes. E de cada extremidade do cilindro parte uma “cauda” longa, um chicote feito de agulhas trançadas.

Você conhece os trolòs. Eles são parte do arsenal das Bruxas. Você já enfrentou um deles, uma vez, e teve sorte em sobreviver. Contra dois...

Um trolò escala a parede mais próxima usando as agulhas como se fossem as pernas de um inseto, perfurando a rocha para ganhar apoio. O outro se desloca pelo chão, descrevendo um arco amplo que parece se afastar mais e mais de você.

Sem aviso, a máquina que estava no chão dá um salto, girando e gritando no ar. O movimento inesperado e o som estridente distraem você. Nesse instante, o trolò preso ao teto projeta uma cauda em sua direção.

Não é o som do chicote, mas uma mudança sutil no deslocamento do ar que a avisa a tempo. Você salta, e a cauda que teria perfurado seu coração apenas amputa o dedo mínimo de seu pé esquerdo. Você ignora a dor, e rola, ao mesmo tempo em que baixa a cabeça e cruza os braços do peito. Os músculos especiais de proteção dilatam-se não apenas ao redor do pescoço, mas também em torno do tórax e, numa massa densa, disforme, em punhos, antebraços e coxas.

O trolò que havia saltado para distraí-la agora gira no ar, caindo sobre você. Com um grito de ódio, você projeta as duas pernas para cima – calos especiais acabam de irromper, dolorosamente, da sola de seus pés – e chuta. A máquina guincha em protesto, enviando algumas agulhas, como âncoras, para dentro da crosta protetora do calcanhar direito. Você não sente dor, mas um ponto de luz azul surge na periferia de seu campo visual, indicando que a calosidade está sob ataque químico.

As duas caudas do trolò atacam, numa tentativa de perfurar seus olhos. Mudando bruscamente o ângulo do joelho direito – luz turquesa indica dano ao ligamento – você tensiona a âncora que a máquina deixou em seu calcanhar e faz o corpo cilíndrico girar, estragando a mira das caudas, que em vez de vazar-lhe os olhos enterram-se na placa muscular abaixo das axilas.

Você entra em modo anaeróbico, já contando com a perfuração dos pulmões em zero vírgula três segundos e, no meio segundo que – estimativa projetada na retina – o monstro levará para abrir caminho até o coração, seus punhos cerrados mergulham, sofrendo cortes, queimaduras e contusões, no âmago da máquina.

Seu coração ainda bate quando o trolò pára.

Você estaria exultante, não fosse pelo som do segundo trolò se aproximando.

Mas então um raio de luz enche o quarto, seguido de um som de trovão e da voz de Votán, gritando algo que você não entende.

* * *

– É inacreditável que as Bruxas tenham decidido atacar o Volhala – Votán diz, setenta horas depois, parado diante da porta do castelo. Você está montada num cavalo negro, Peqáso, que o mordomo narigudo trouxe de algum lugar. Não há sela, rédeas ou freio; suas mãos mergulham na crina exuberante.

– Elas devem ter seguido meu espírito – você responde, repetindo algo que lhe foi sugerido diversas vezes durante sua recuperação, na enfermaria do castelo.

– Elas viram como suas máquinas de destruição não são nada diante do meu poder. Não creio que voltem.

Você responde:

– Elas ainda estão aqui, Senhor. Elas ainda têm a Guia.

– Sim, a Guia ainda está no Volhala. Posso senti-la. Mas não consigo saber exatamente... Ela deve estar, talvez não com as Bruxas, mas com algum deus traiçoeiro, capaz de se contrapor até mesmo aos meus poderes!

Você sorri:

– Não se preocupe, Senhor Votán. Vou encontrá-la. E com esta ajuda que o Senhor me concedeu – você bate no cabo de Ezcalibòr, a espada amarrada às suas costas, e acaricia a cabeça de Miiownyir, o martelo que pende de sua cintura – tenho certeza de que conseguirei libertá-la de quem quer que a mantenha prisioneira.

Votán balança a cabeça:

– Assim espero, bela Fada, Assim espero.

Você parte a galope. Assim que Peqáso some no horizonte, eu saio de trás da porta – onde Votán, o avatar da Curadoria, havia me mantido, invisível.

– Ela me ama – digo eu.

– Ou apenas se sente responsável. Ou quer conquistar a boa-vontade de Votán para sua guerra. Guerra! – Votán ri. – Você sabe quanto tempo já se passou na Esfera desde que ela chegou aqui?

Dou de ombros.

– Eu a amo – digo.

– O sistema de julgamento de seu cérebro foi violado por um ataque químico – responde a Curadoria.

– Eu a amo – respondo.

– Bom, talvez seja mesmo a mesma coisa.

– Vou voltar a vê-la?

– Quando ela estiver bem adaptada, por que não? Uma Fada-Guerreira e sua donzela em perigo são, pelo que conseguimos entender, parte importante da cultura humana da Esfera. Segundo a Curadoria, representam uma atualização importante de nosso acervo.

– Essa esperança é o que me sustenta.

Votán ri. O vento ondula a grama e os girassóis. Às nossas costas, o castelo começa a desaparecer.

2.10.08

O Último Flávio

Uma ida ao zoológico por Rita Maria Felix da Silva

Gong-Aki-Akushi-Rashamir, um estudioso, membro do Clã Akushi, recebeu a notícia com assombro:

Ainda havia um humano vivo! O último, na verdade, retido em um zoológico no Espaçoposto Ky-5784 (antigo nome local: lua da Terra). Mal podia acreditar, afinal, todos os registros apontavam que a humanidade havia sido erradicada durante a expansão Rashamita.

Fascinado como era por culturas alienígenas e História, preparou-se para ver de perto aquele achado e enfrentou uma longa viagem até o recanto da Galáxia onde o Espaçoposto Ky-5784 se situava.

Preocupou-se com a aparência, é claro, afinal, seu clã sempre se destacou pelo interesse intelectual e gosto estético. Poliu os doze tentáculos em volta do pescoço (inclusive o menor de todos, motivo de humilhação nos tempos de faculdade); limpou e lustrou os chifres que se projetavam de seus ombros (os quais Ahmar-Arin-Akushi-Rashamir, uma de suas trezes esposas, tanto gostava de acariciar nos momentos íntimos); pôs colírio irradiante nos quinze olhos (o clã Akushi gaba-se do décimo-quinto olho, enquanto aqueles desprezíveis do clã Faratonk precisavam se contentar com apenas catorze) e higienizou e perfumou os cento e doze dentes de sua segunda boca, a que ficava no abdômen (nascera com uma terceira, no entanto, para sua sorte, os pais conseguiram autorização dos sacerdotes para uma
cirurgia que eliminou aquele defeito).

No zoológico, estava exultante. A jaula do humano não era visitada por ninguém, mas Gong seguiu para lá mais animado que um vampiro malkiniano em noite de iniciação.

Olhou para o humano, um espécime já bem idoso, com os pêlos embranquecidos, longos e desalinhados pendendo da cabeça e face e nos olhos ("dois!", pensou Gong, "apenas dois? Como alguém pode enxergar só com isso?") um aparelho estranho (que, lembrou-se de sua pesquisa, era chamado de “óculos”). A criatura humana estava sentada numa pedra e ocupada com placas de matéria vegetal, apoiadas numa mesa metálica, nas quais “esfregava” a ponta de um pequeno cilindro e fazia “símbolos” com tinta... Sim, reconheceu o ato: o humano estava escrevendo. Registrando idéias num pedaço de matéria, ao invés de usar telepatia e guardar as memórias no Banco de Dados Psíquicos Galático! ("Primitivo demais!", meditou).

O Rashamita esforçou-se para usar aquela linguagem que havia estudado, uma das muitas da extinta Terra. Português. Ruim de falar, o som era feio, como o alarido de pássaros carnívoros vualpianos durante o acasalamento. Telepatia teria sido tão mais elegante, porém temia que a mente do humano, antiquada como era, queimasse ao primeiro contato:

- Olá! Seu nome é Flávio, não é? Eu sou Gong-Aki-Akushi-Rashamir. Estudo culturas alienígenas. É minha paixão. Quase não consigo acreditar que estou diante de um humano! Hoje em dia seu povo é só uma lenda. Como devem ter sofrido com a erradicação! Realmente lamento pela sua e todas as outras espécies inferiores que foram eliminadas,
embora sei que compreende o quanto isso foi necessário para assegurar a prosperidade
e expansão de uma raça superior, ou seja, nós os Rashamitas. Mas, olha, quero ser seu amigo, você vai me contar tudo sobre sua cultura e eu posso até tirá-lo daqui e adotá-lo como meu animal de estimação. Que tal? Veja: - e estendeu um cubo de subração Barakniana - quer comida? Pode pegar. Animal estúpido, você sabe falar, não é?

O humano Flávio levantou-se, largou as placas de matéria vegetal e o cilindro, ajustou os "óculos" no rosto e foi até o canto da jaula de onde pegou do chão um monte de excrementos que ainda não havia secado. Grunhiu uma frase que Gong não conseguiu traduzir (mas que lhe pareceu algo de baixo calão) e atirou o excremento no rosto do Rashamita, direto nos olhos, onde se misturou com o caríssimo colírio irradiante.

Os membros do Clã Akushi eram considerados os mais pacíficos, polidos e aristocráticos entre os Rashamitas urbanos, por isso foi muito difícil para Gong explicar à administração do zoológico porque rasgou as barras da jaula, entrou urrando como um monge louco Monakiano e devorou, com sua segunda boca, o humano. O pior foi o gosto. Bem mais desagradável do que se podia imaginar. Gong-Aki-Akushi-Rashamir passou um longo período enjoado e severamente deprimido.

FIM

Dedicado a Flávio Moutinho (Phla)

A ilha de Tobias

Uma pulp fiction insular por



A borboleta, que surgiu do meio das flores e quase tocou o solo, mudou repentinamente a trajetória de seu vôo, indo pousar na palma da mão de Tobias. Embora surpreso, ele a recepcionou com cuidado. Erguendo um pouco o braço, a permitiu decolar novamente. A seguiu com os olhos por algum tempo, mas logo voltou sua atenção para as flores que beiravam a estreita trilha na qual caminhava. Estavam por todos os lados, em variadas espécies. Uma mais bela do que a outra.


Ainda não compreendia o que fazia num lugar como aquele. Sempre foi um homem urbano, acostumado a respirar o ar cada vez mais poluído do planeta. Estava surpreso de encontrar um ambiente tão limpo, sem fios ou instalações elétricas por perto enfeando a paisagem. Agora podia enxergar o verdadeiro tom azulado do céu sem qualquer sinal de poluição industrial. Bem diferente das cores cinza e vermelho que predominavam nas grandes cidades. Pensava não existir mais um azul como aquele. Só tinha visto paisagens semelhantes em antigas fotos e vídeos com imagens dos séculos XX e XXI..


O silêncio retumbante do lugar lhe provocava estranhamento; cresceu e viveu ouvindo o barulho de diversas máquinas. Como qualquer outra pessoa viva, tinha se desenvolvido em meio ao caos e a desordem, a pressa e a falta de tempo para contemplações como a que vinha fazendo pelo caminho. Não se lembrava de como tinha chegado até aquela trilha. Podia estar ali havia dias ou apenas alguns minutos. Sentia-se confuso. Sua memória falhava totalmente, desorientando-o por completo.


Caminhou por quase quinze minutos. As flores foram tudo que pôde enxergar durante esse período. Por mais estranho que podia parecer, sentia-se bem, fisicamente falando, com um vigor fora de seus padrões. Normalmente era alguém cansado, exaurido por qualquer atividade corporal um pouco mais exigente. Dessa vez, entretanto, estava firme em sua marcha. Fôlego pleno.


Avistou uma praia ao final da trilha. Belíssima. Em que lugar do mundo poderia estar? Não existiam mais lugares assim. Correu na direção do mar. Seus pés afundaram na areia fofa a cada passada até conseguir mergulhar.


Entrou sem tirar a roupa. Como um bebê, bateu seguidas vezes na água com as mãos. A temperatura estava perfeita, morna o suficiente para manter a sensação de conforto que vinha sentindo. Após afundar por completo na água e retornar à superfície, enxergou uma pessoa, entre as flores, vestida toda de branco. Percebeu ser um homem de cabelos brancos. Ficou maravilhado por conseguir enxergar com tanta nitidez daquela distância, pois era míope e estava sem os óculos. .


Saiu da água e caminhou na direção do sujeito. Embora sentisse vontade de ficar no mar por horas, precisava informar-se sobre sua localização. Aquele homem era, até o momento, o único que poderia lhe dizer algo a respeito.


Aproximou-se com um sorriso no rosto. Tentava ser simpático.


— Olá — disse. — Tudo bem com o senhor?


O homem o observou por um breve instante. Mantinha as mãos nos bolsos de sua calça.


— Tudo bem — respondeu sucintamente.


— Sei que parece estranho perguntar isso, mas sabe que lugar é esse?


— Gosta daqui?


— Gosto. É lindo. Pensei que não existissem mais lugares assim.


O homem de branco olhou ao seu redor. As flores, a praia e o céu azul foi o que viu.


— É realmente muito bonito.


— Bem diferente das cidades, não é? Sabe o nome daqui? A região em que estamos? — perguntou Tobias, ansioso pelas respostas.


Seu interlocutor permaneceu em silêncio por algum tempo.


— Como é possível estar aqui e não saber nada sobre o lugar? — questionou.


— Não sei! É esquisito, parece que despertei há menos de vinte minutos. Não lembro o que aconteceu antes.


— Por que viria para cá? O que veio fazer aqui? — o homem tornou a perguntar.


— Não tenho idéia. Sabe ou não o nome daqui?


Uma certa tensão surgiu entre eles. Tobias havia deixado de sorrir com a demora em ouvir uma resposta.


— Alguém como você só viria para cá se estivesse fugindo de algo, concorda?


— O que quer dizer?


— Tem certeza de que não sabe?


— Do que está falando? Quem é você? — perguntou Tobias, perdendo a paciência.


— Você não está aqui à toa. — afirmou o homem. — Sabe disso.


Deu as costas e começou a percorrer a trilha. Tobias andou em sua direção.


— Espere! Me diga onde estamos.


O homem parou por um segundo.


— Me diga você! — disse, e depois voltou a caminhar, ignorando Tobias.



***



O dia continuava claro, embora Tobias tivesse certeza de estar ali havia mais de doze horas. Como não sentia sono e não tinha para onde ir, ficou andando pela praia, vagando sem rumo. O cenário nunca variava; o mar de um lado, as flores do outro, com a praia separando-os. Descobriu várias trilhas idênticas àquela em que havia caminhado. Entrou em cada uma delas, percorrendo-as até o fim. Sempre encontrou uma praia do outro lado. Sua única certeza era de estar em uma ilha.


Em nenhum momento sentiu cansaço ou fome. Estava, sim, com um certo incômodo desde o encontro com o homem de branco. O lugar, outrora paradisíaco aos seus olhos, já era visto como chato e repetitivo. As poucas borboletas voando eram o máximo de agitação que podia ver. Inércia era algo que sua vida não tinha. A falta de barulho, aliada à ausência de informações, mexiam com sua paciência. O que antes lhe proporcionava uma sensação de paz, começava a perturbá-lo.


Sentou na praia de frente para o mar. A roupa tinha secado sem que ele notasse. Por isso, pôde encostar na areia sem se preocupar em ficar todo sujo com grãos grudados em si. De repente, ouviu alguém dizer:


— Sentindo-se sozinho?


Era o mesmo sujeito de antes. Ainda vestia a roupa branca. Tobias virou a cabeça e o enxergou. Feliz por avistar alguém, contudo, incomodado por ser aquele indivíduo hostil. Dirigiu-se a ele:


— Também me parece sozinho, ou não viria falar comigo.


O homem caminhou até o seu lado.


— Posso sentar aqui?


Tobias consentiu com a cabeça.


— Descobriu que lugar é esse? — perguntou o homem, sentando-se.


— Descobri que é uma ilha. Mas sem placas, indicações ou alguém para me informar, jamais saberei seu nome ou sua localização exata. Estamos cercados de água, não há mais nada em volta.


— Bom, as ilhas costumam ser assim — O homem disse sarcasticamente.


Encarando com bom humor, Tobias sorriu.


— E o que você faz aqui, senhor?


— Estou trabalhando.


— Trabalho? — espantou-se. — Que tipo de trabalho?


— Isso não posso dizer ainda. Se tudo der certo, eu lhe direi. Prometo.


Tobias balançou a cabeça. Coçou a testa. Passou a considerar a hipótese de estar travando um diálogo com algum louco. Ainda assim, era melhor do que ficar sozinho por mais tempo. Era sua única oportunidade de obter alguma informação sobre a ilha.


— Ok. Como quiser. — disse. — Sabe ao menos como posso sair desse lugar?


— Quer mesmo ir embora? É um lugar tão bonito.


— É, realmente é lindo. Mas é muito estranho também. Não anoiteceu até agora.


— Por que está com tanta pressa para ir? Você é casado?


— Sou.


— Tem certeza? É casado?


Cerrou os olhos. Pensou em levantar e se afastar do homem. Acabou ficando.


— Claro que tenho certeza! Por que está me provocando todo o tempo? — perguntou irritado.


— Se você quer tomar como provocação, é um direito seu. Mas isso faz parte do meu trabalho — o homem respondeu calmamente.


— Seu trabalho é me incomodar?


— Se as perguntas te incomodam, sim. E pare de mentir para mim, você não é mais casado.


Tobias levantou-se. Bateu na calça para tirar o pouco de areia que havia grudado lá.


— Bom trabalho para você!


Dessa vez foi ele quem se afastou, deixando o homem sozinho na praia. Esse, no entanto, não demonstrou vontade alguma de chamá-lo.


— Até amanhã, senhor. Isto se houver amanhã, já que esse dia nunca acaba.


— Só não há amanhã para os mortos de hoje! — proclamou o homem, sentado relaxadamente sobre a areia.



***



Após atravessar para a praia do outro lado da ilha, buscando se distanciar do homem que lhe incomodava, Tobias começou a chutar a areia com toda a força que podia. Estava irado. Seus sapatos haviam desaparecido em algum momento, mas ele mal reparou nesse fato. A vitalidade que exibia não o impressionava mais. Trocaria toda sua energia pela oportunidade de sair daquele lugar.


— Droga! —gritou, chutando a areia — Não agüento mais! Maldito lugar!


Ouviu um trovão. Observou o céu mudar de cor imediatamente, escurecendo em poucos segundos. Começou a chover forte. Tobias olhou em volta procurando um abrigo. Riu da impossibilidade total de escapar da chuva e jogou-se na areia. Arrastou suas mãos como se fossem garras, deixando marcas dos dedos na terra molhada. Parecia ensandecido.


— Quer ir embora? — perguntou alguém por trás de Tobias. — Acha que conseguirá agindo assim?


Sabia exatamente quem era. A voz ainda estava viva o bastante em sua cabeça.


— Saia daqui, idiota! — gritou sem olhá-lo. — Vá trabalhar em outro lugar!


— Posso tirá-lo daqui, Tobias.


Parou o que fazia. As mãos, sujas de areia, iam sendo limpas pela água da chuva. Virou-se, pois havia percebido algo importante.


— Como sabe meu nome?


Estavam a mais de dois metros de distância. Apesar da forte chuva, um ouvia claramente o que o outro dizia.


— Sei muito sobre você, meu jovem. Mas existem alguns detalhes não muito claros a seu respeito. Pode me ajudar com isso? Se colaborar posso auxiliá-lo a sair daqui — disse o homem.


— O que você quer exatamente? Quem é você?


— Me fale sobre sua esposa. O que tem a dizer sobre Daniele?


Tobias não conseguiu esconder a apreensão. Levantou com dificuldade. A chuva ficou ainda mais forte, os trovões aumentaram e uma ventania começou se apresentar. Um dilúvio anunciava-se.


— Fique calmo, Tobias! — o homem instruiu. — Fique calmo ou a tempestade só irá aumentar.


Estavam com dificuldades para enxergar-se. O homem deu alguns passos à frente, enfrentando o vento, afundando os pés no lamaçal que se formava rapidamente. Chegou bem próximo a Tobias.


— Você sabe onde ela está agora? — perguntou.


Tobias abaixou a cabeça. Fechou os olhos e fez uma expressão de dor.


— Ela está ferida — disse. — Caiu da varanda de nosso apartamento e bateu na calçada. Eu vi muito sangue escorrer!


— Acha que ela está bem?


— Não sei!


— Ela está morta!


Tobias colocou as mãos sobre cabeça. A água da chuva batia em seu rosto, misturando-se a algumas lágrimas.


— Seus vizinhos disseram que você batia nela constantemente, e que estavam discutindo no momento da queda. Duas pessoas afirmam que a empurrou da varanda. O que tem a dizer?


Manteve-se calado. As mãos desceram para tampar o rosto.


— Quando entramos no apartamento, você foi encontrado em um canto, num estado catatônico. Não respondia a nada, nem reagia. Isso foi a há doze dias. Continua assim até hoje. Está em uma cama de hospital, monitorado com a ajuda de aparelhos, observado por especialistas. Sou o investigador do seu caso. Nossa tecnologia permite que eu entre em contado com você. Pode-se dizer que estamos dentro da sua cabeça, no seu subconsciente. É o único modo de interrogá-lo. Nada aqui é real, nem nossos corpos. A ilha é imaginação sua, um refugio criado por você.


Tobias permaneceu em silêncio. A chuva parou e o dia voltou a clarear quase instantaneamente. Tirou as mãos do rosto.


— Serei preso? — perguntou.


— Um juiz decidirá isso, não eu.


— Você disse que me ajudaria a sair daqui.


— Ajudarei. Você admite que a empurrou?


A areia estava seca, os dois homens e suas roupas também. Nem sinal da chuva de alguns segundos atrás.


— Pois saiba que não quero mais sair daqui. Quero que você vá embora. Agora!


— Não funciona dessa maneira, Tobias. Se cometeu um crime, deve pagar por ele. Mesmo que tenha sido sem intenção, terá que ir a julgamento.


— Não em minha ilha!


Abaixo do homem de branco, a areia começou a rachar e a formar um buraco. O homem, pego de surpresa, foi tragado para dentro da terra, após tentar inutilmente segurar-se à superfície. Logo a areia foi completamente recomposta. Em poucos segundos não havia mais qualquer vestígio do sujeito ou do buraco. Mesmo porque começaram a surgir prédios, carros, pessoas, ruas e tudo mais que a imaginação de Tobias conseguia criar. Aos poucos, o lugar ia perdendo todas as suas características originais, deixando de ser um local tranqüilo e conservado para tornar-se como qualquer outro lugar do mundo.


Mas aquela ainda era a ilha de Tobias, e ele jurou para si mesmo que jamais o tirariam de lá.


Este texto foi originalmente publicado na coletânea Ficção de Polpa - Volume 2

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