2.10.08
O Último Flávio
Uma ida ao zoológico por Rita Maria Felix da Silva
Gong-Aki-Akushi-Rashamir, um estudioso, membro do Clã Akushi, recebeu a notícia com assombro:
Ainda havia um humano vivo! O último, na verdade, retido em um zoológico no Espaçoposto Ky-5784 (antigo nome local: lua da Terra). Mal podia acreditar, afinal, todos os registros apontavam que a humanidade havia sido erradicada durante a expansão Rashamita.
Fascinado como era por culturas alienígenas e História, preparou-se para ver de perto aquele achado e enfrentou uma longa viagem até o recanto da Galáxia onde o Espaçoposto Ky-5784 se situava.
Preocupou-se com a aparência, é claro, afinal, seu clã sempre se destacou pelo interesse intelectual e gosto estético. Poliu os doze tentáculos em volta do pescoço (inclusive o menor de todos, motivo de humilhação nos tempos de faculdade); limpou e lustrou os chifres que se projetavam de seus ombros (os quais Ahmar-Arin-Akushi-Rashamir, uma de suas trezes esposas, tanto gostava de acariciar nos momentos íntimos); pôs colírio irradiante nos quinze olhos (o clã Akushi gaba-se do décimo-quinto olho, enquanto aqueles desprezíveis do clã Faratonk precisavam se contentar com apenas catorze) e higienizou e perfumou os cento e doze dentes de sua segunda boca, a que ficava no abdômen (nascera com uma terceira, no entanto, para sua sorte, os pais conseguiram autorização dos sacerdotes para uma
cirurgia que eliminou aquele defeito).
No zoológico, estava exultante. A jaula do humano não era visitada por ninguém, mas Gong seguiu para lá mais animado que um vampiro malkiniano em noite de iniciação.
Olhou para o humano, um espécime já bem idoso, com os pêlos embranquecidos, longos e desalinhados pendendo da cabeça e face e nos olhos ("dois!", pensou Gong, "apenas dois? Como alguém pode enxergar só com isso?") um aparelho estranho (que, lembrou-se de sua pesquisa, era chamado de “óculos”). A criatura humana estava sentada numa pedra e ocupada com placas de matéria vegetal, apoiadas numa mesa metálica, nas quais “esfregava” a ponta de um pequeno cilindro e fazia “símbolos” com tinta... Sim, reconheceu o ato: o humano estava escrevendo. Registrando idéias num pedaço de matéria, ao invés de usar telepatia e guardar as memórias no Banco de Dados Psíquicos Galático! ("Primitivo demais!", meditou).
O Rashamita esforçou-se para usar aquela linguagem que havia estudado, uma das muitas da extinta Terra. Português. Ruim de falar, o som era feio, como o alarido de pássaros carnívoros vualpianos durante o acasalamento. Telepatia teria sido tão mais elegante, porém temia que a mente do humano, antiquada como era, queimasse ao primeiro contato:
- Olá! Seu nome é Flávio, não é? Eu sou Gong-Aki-Akushi-Rashamir. Estudo culturas alienígenas. É minha paixão. Quase não consigo acreditar que estou diante de um humano! Hoje em dia seu povo é só uma lenda. Como devem ter sofrido com a erradicação! Realmente lamento pela sua e todas as outras espécies inferiores que foram eliminadas,
embora sei que compreende o quanto isso foi necessário para assegurar a prosperidade
e expansão de uma raça superior, ou seja, nós os Rashamitas. Mas, olha, quero ser seu amigo, você vai me contar tudo sobre sua cultura e eu posso até tirá-lo daqui e adotá-lo como meu animal de estimação. Que tal? Veja: - e estendeu um cubo de subração Barakniana - quer comida? Pode pegar. Animal estúpido, você sabe falar, não é?
O humano Flávio levantou-se, largou as placas de matéria vegetal e o cilindro, ajustou os "óculos" no rosto e foi até o canto da jaula de onde pegou do chão um monte de excrementos que ainda não havia secado. Grunhiu uma frase que Gong não conseguiu traduzir (mas que lhe pareceu algo de baixo calão) e atirou o excremento no rosto do Rashamita, direto nos olhos, onde se misturou com o caríssimo colírio irradiante.
Os membros do Clã Akushi eram considerados os mais pacíficos, polidos e aristocráticos entre os Rashamitas urbanos, por isso foi muito difícil para Gong explicar à administração do zoológico porque rasgou as barras da jaula, entrou urrando como um monge louco Monakiano e devorou, com sua segunda boca, o humano. O pior foi o gosto. Bem mais desagradável do que se podia imaginar. Gong-Aki-Akushi-Rashamir passou um longo período enjoado e severamente deprimido.
FIM
Dedicado a Flávio Moutinho (Phla)
Gong-Aki-Akushi-Rashamir, um estudioso, membro do Clã Akushi, recebeu a notícia com assombro:
Ainda havia um humano vivo! O último, na verdade, retido em um zoológico no Espaçoposto Ky-5784 (antigo nome local: lua da Terra). Mal podia acreditar, afinal, todos os registros apontavam que a humanidade havia sido erradicada durante a expansão Rashamita.
Fascinado como era por culturas alienígenas e História, preparou-se para ver de perto aquele achado e enfrentou uma longa viagem até o recanto da Galáxia onde o Espaçoposto Ky-5784 se situava.
Preocupou-se com a aparência, é claro, afinal, seu clã sempre se destacou pelo interesse intelectual e gosto estético. Poliu os doze tentáculos em volta do pescoço (inclusive o menor de todos, motivo de humilhação nos tempos de faculdade); limpou e lustrou os chifres que se projetavam de seus ombros (os quais Ahmar-Arin-Akushi-Rashamir, uma de suas trezes esposas, tanto gostava de acariciar nos momentos íntimos); pôs colírio irradiante nos quinze olhos (o clã Akushi gaba-se do décimo-quinto olho, enquanto aqueles desprezíveis do clã Faratonk precisavam se contentar com apenas catorze) e higienizou e perfumou os cento e doze dentes de sua segunda boca, a que ficava no abdômen (nascera com uma terceira, no entanto, para sua sorte, os pais conseguiram autorização dos sacerdotes para uma
cirurgia que eliminou aquele defeito).
No zoológico, estava exultante. A jaula do humano não era visitada por ninguém, mas Gong seguiu para lá mais animado que um vampiro malkiniano em noite de iniciação.
Olhou para o humano, um espécime já bem idoso, com os pêlos embranquecidos, longos e desalinhados pendendo da cabeça e face e nos olhos ("dois!", pensou Gong, "apenas dois? Como alguém pode enxergar só com isso?") um aparelho estranho (que, lembrou-se de sua pesquisa, era chamado de “óculos”). A criatura humana estava sentada numa pedra e ocupada com placas de matéria vegetal, apoiadas numa mesa metálica, nas quais “esfregava” a ponta de um pequeno cilindro e fazia “símbolos” com tinta... Sim, reconheceu o ato: o humano estava escrevendo. Registrando idéias num pedaço de matéria, ao invés de usar telepatia e guardar as memórias no Banco de Dados Psíquicos Galático! ("Primitivo demais!", meditou).
O Rashamita esforçou-se para usar aquela linguagem que havia estudado, uma das muitas da extinta Terra. Português. Ruim de falar, o som era feio, como o alarido de pássaros carnívoros vualpianos durante o acasalamento. Telepatia teria sido tão mais elegante, porém temia que a mente do humano, antiquada como era, queimasse ao primeiro contato:
- Olá! Seu nome é Flávio, não é? Eu sou Gong-Aki-Akushi-Rashamir. Estudo culturas alienígenas. É minha paixão. Quase não consigo acreditar que estou diante de um humano! Hoje em dia seu povo é só uma lenda. Como devem ter sofrido com a erradicação! Realmente lamento pela sua e todas as outras espécies inferiores que foram eliminadas,
embora sei que compreende o quanto isso foi necessário para assegurar a prosperidade
e expansão de uma raça superior, ou seja, nós os Rashamitas. Mas, olha, quero ser seu amigo, você vai me contar tudo sobre sua cultura e eu posso até tirá-lo daqui e adotá-lo como meu animal de estimação. Que tal? Veja: - e estendeu um cubo de subração Barakniana - quer comida? Pode pegar. Animal estúpido, você sabe falar, não é?
O humano Flávio levantou-se, largou as placas de matéria vegetal e o cilindro, ajustou os "óculos" no rosto e foi até o canto da jaula de onde pegou do chão um monte de excrementos que ainda não havia secado. Grunhiu uma frase que Gong não conseguiu traduzir (mas que lhe pareceu algo de baixo calão) e atirou o excremento no rosto do Rashamita, direto nos olhos, onde se misturou com o caríssimo colírio irradiante.
Os membros do Clã Akushi eram considerados os mais pacíficos, polidos e aristocráticos entre os Rashamitas urbanos, por isso foi muito difícil para Gong explicar à administração do zoológico porque rasgou as barras da jaula, entrou urrando como um monge louco Monakiano e devorou, com sua segunda boca, o humano. O pior foi o gosto. Bem mais desagradável do que se podia imaginar. Gong-Aki-Akushi-Rashamir passou um longo período enjoado e severamente deprimido.
FIM
Dedicado a Flávio Moutinho (Phla)
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6 comentários:
Eu conhecia este conto dedicado ao Phla. Excelente, Rita, humor da melhor qualidade e uma ótima criação de universo e personagem alienígenas (bastante humano afinal hehe)
beijão,
Mhel
Mhel,
Obrigada.
Beijos
Rita
E eu nem faço idéia de quem seja o Phla, mas adorei o conto ;-)
Romeu,
Obrigada.
Beijos
Rita
Sou eu o Phla. Obrigado, Rita, pela homenagem! E com a qualidade tradicional! Beijo!
E muito prazer, Romeu!
Este conto é clássico. Gosto da mensagem nele.
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