26.11.08

Sem conspirações


Amigos, este é um texto sobre um assunto muito sério.


O primeiro conto publicado neste blog, chamado "A teoria na prática", não se passa na capital de Santa Catarina à toa. É aqui que eu moro, é daqui que eu escrevo. Por um acúmulo de circunstâncias meteorológicas, geográficas e muita, mas muita, incompetência política - nas esferas municipal, estadual e federal - o estado inteiro está sofrendo com uma tragédia anunciada.

As chuvas deixaram dezenas de mortos e milhares de desabrigados em diversos municípios catarinenses. Se eu der números aqui, infelizmente, logo eles devem estar desatualizados.

Em momentos trágicos como este, sem demagogia, quando podemos fazer algo para ajudar o próximo tornamos nossa realidade um pouco melhor.

A Defesa Civil de Santa Catarina abriu contas em três bancos para quem puder dar sua contribuição às vítimas das cheias:


Banco do Brasil – Agência 3582-3, Conta Corrente 80.000-7

Besc – Agência 068-0, Conta Corrente 80.000-0

BRADESCO - 237 Agência 0348-4, Conta Corrente 160.000-1


O nome da pessoa jurídica é Fundo Estadual da Defesa Civil.
CNPJ - 04.426.883/0001-57.


Quem puder dar alguma ajuda a essas pessoas, saiba que isso pode fazer a diferença de verdade.

Recomendo também este blog para quem estiver interessado em acompanhar notícias sobre a catástrofe político-ambiental que nos atinge.

Obrigado a todos pela atenção e tempos melhores para todos nós.

24.11.08

Sobre os 50 contos e agradecimentos múltiplos

O texto do antepenúltimo post representa uma marca e tanto para este blog. Com ele, completamos 50 textos de ficção publicados por aqui de nada menos que 23 autores diferentes. Tirando desta lista Machado de Assis, que não teve a oportunidade de se opor à minha apropriação de “A Igreja do Diabo” – a exemplo do que ocorreu com Paulo Leminski e o haikai que serve de mote a esta página –, todos os demais participantes cederam voluntariamente seus textos à minha edição.

Como fazem no cinema, vou creditar essas pessoas pela ordem de surgimento no TerrorCon e dar-lhes o devido agradecimento:


Ludimila Hashimoto

Rafael Monteiro

Horacio Corral

Jessie Spiner

Clinton Davisson

Leonardo Siviotti

Maria Helena Bandeira

Rodolfo Londero

Ana Cristina Rodrigues (e digníssimo esposo, Estevão Ribeiro, pela ilustra)

Alexandre Lancaster

Fábio Fernandes

Cristina Lasaitis

Tibor Moricz

Ataíde Tartari

Carlos Orsi

Camila Fernandes

Rita Maria Felix da Silva

Richard Diegues

Octavio Aragão

Flávio Moutinho

Lúcio Manfredi


Desses todos eu ainda destaco três, Ludimila Hashimoto, Rafael Monteiro e Alexandre Lancaster por me terem dado a honra e o prazer de ler textos escritos especialmente dentro do contexto do grupo que dá nome a este blog.

Um outro agradecimento vai para aquele que é, muito provavelmente, o único ser humano além de mim a ter lido todos os textos aqui publicados, os de ficção ou não, ainda ter se dedicado a resenhá-los em sua página pessoal e, como se não fosse suficiente, ter me permitido compilar suas impressões em postagens aqui, Fernando S. Trevisan. No post logo abaixo deste, reuni suas resenhas produzidas até este momento. (Caso ele escreva sobre os textos que ainda não teve a oportunidade de ler, darei um upgrade ao tópico e apagarei estes parênteses).

Devo ainda um agradecimento especial a outras duas pessoas que estão me dando a felicidade realmente indescritível de adaptar contos que escrevi neste blog para outras mídias – espero poder dar novidades sobre isto logo – Laura Mayumi e André Aguiar.

Ufa! Fora essa multidão, agradeço ainda a quem leu, comentou, opinou, sugeriu, linkou ou simplesmente lurkou por aqui ao longo destes meses, desde o finalzinho de maio até agora, finalzinho de novembro.

Acho que com esta marca alcançada – meia centena de contos! É meio difícil de acreditar, ainda –, o melhor é dar um tempo para renovar o tesão da parte de quem edita, de quem escreve e de quem lê. Vamos dar um tempo esperando retomar o contato em breve.

A todos os citados um abraço e, por favor, continuem conspirando.

Outras Leituras do TerrorCon

A mais recente compilação de miniresenhas por Fernando S. Trevisan


Uma Arca para Marte - Uma história clássica reescrita

Por Flavio Moutinho
terrorcon.blogspot.com

Excelente, este conto do Flavio, recriando em ficção científica (new weird, talvez?) um clássico bíblico. Ironia e sarcasmo sutil além de humor inteligente, com uma prosa deliciosa de ler.

Os olhos de quem vê - Alguns flashes da próxima epidemia

Por Octavio Aragão
terrorcon.blogspot.com

Uma história de amor, morte e loucura em um futuro apocalíptico, bem escrita como sempre, no caso do Octavio, e com um gosto amargo no pós-leitura, o que é raro para as histórias dele.

O Criador e o Espírito - Uma história sobre finais trágicos

Por Rita Maria Felix da Silva
terrorcon.blogspot.com

Tenho certeza que já li - e já mini-resenhei - esse texto da Rita, mas não consegui achar, então aqui vai: inteligente, criativo, gostoso de ler e com o tamanho certo. Uma excelente alegoria de um criador tipicamente cristão mas com características humanas.

A gruta de vênus - Um exemplar sado-erótico escrito e ilustrado

Por Maria Helena Bandeira
terrorcon.blogspot.com

Em um ambiente surreal, algo proibido acontece, que não poderá ser esquecido... outro conto curto da MHell, com a mesma qualidade de estilo e escrita, desta vez misturando ficção científica e sexualidade. Bom!

Dezembro (dia 4, no Bardo Batata) marca um lançamento há muito anunciado: o livro Fome, de Tibor Moricz, pela Tarja. Elogiado por seu romance de estréia (Síndrome de Cérbero), o novo livro traz histórias de um mundo destruído, apocalíptico, onde a fome é catalizador do instinto de sobrevivência mais básico dos seres humanos restantes. Dando início à divulgação do lançamento, Romeu Martins publicou o prefácio escrito por ele, bem como republicou o conto de abertura, "O Caçador", que mini-resenhei antes e reproduzo aqui:

"Chocante, intenso e sangrento. Neste conto o Tibor consegue colocar diversos temas comumente tratados como tabu de forma crua e direta. A história prende, flui bem e tem um final condizente, infelizmente um pouco previsível, mas nada que realmente estrague o conto - minha opinião, é claro. O resultado final é instigante e estou ansioso para ler os demais contos no livro "Fome", que será lançado em breve pela Tarja, segundo o autor.

Um aviso: tenho certeza que muitos leitores sentem-se realmente chocados com algumas situações retratadas no texto; eu também fiquei desconfortável... mas não é realmente chocante para mim. O "universo" em que a história se passa permite isso, é algo comum aos personagens, um fato da vida. Mas, esteja avisado! Não é leitura para qualquer um, com certeza.
"

23.11.08

um melancólico coaxar


A busca pela magia perdida.
Por Rita Maria Felix da Silva

Genésio Rodopio crescera fascinado por magia, como, porém, ensinaram-lhe que esta não existia, contentou-se em ser, apenas, mágico.

Por um tempo, os truques de salão, as técnicas de ilusionismo e os aplausos de um público que apreciava ser enganado serviram para animá-lo, mas, dez anos naquele ofício enfastiaram-lhe a alma. Ansiava por magia, como nos livros e desenhos animados, como nos quadrinhos e filmes: vibrante e miraculosa; impossível e explosiva.

Dedicou-se, então, a estudar Ocultismo. Naquelas páginas e segredos, nos rituais, cerimônias e tomos antigos, buscava reencontrar a magia, que já habitara o mundo em alguma época e, assim pensava, ele poderia trazê-la de volta.

Seu espírito, todavia, descobriu somente frustração e recorrentes dores de cabeça que os médicos não souberam explicar. Afundou-se em remédios e bebidas e começou a errar os truques na hora do espetáculo.

Até que uma vez foi pior que todas. Confundiu-se ridicularmente e a platéia gargalhou tanto que lhe feriu a honra e a alma. A dor de cabeça voltou mais forte que nunca e algo estourou lá dentro. Dizem que vacilou, tremeu, balbuciando como se procurasse uma palavra, e então gritou algo terrível e antigo, do tipo que não deveria mais ser ouvido neste planeta...

Mais tarde, quando a polícia chegou para investigar acontecimento tão bizarro, encontrou apenas estátuas de uma perfeição artística invejável, conforme afirmaram os jornais da época, sentadas onde deveria estar a platéia daquele teatro. No palco, aninhado entre as roupas que pertenceram ao mágico Genésio Rodopio, podia-se ver um sapo de pele azulada, do tamanho de um punho humano fechado, de cujos olhos, assim ainda contam, saltava a maior tristeza imaginável e que coaxava melancolicamente.


FIM

Mãos de Borracha

Humor e erotismo no futuro.
Texto e arte por Maria Helena Bandeira

Mãos de Borracha levantou-se de seu esquife prateado, atendendo ao chamado do Mestre. Sua cliente da Nova Esplanada estava marcada para aquela tarde. Uma mulher estranha. Mãos de borracha não fora criado para julgar. Sua função era bem específica.

O Mestre lhe deu as coordenadas exatas, embora ele conhecesse o endereço - no bairro dos Novos-Ricos, rua dos Corruptos. Ignorava porque recebera este nome, já fazia muito tempo e Mãos de Borracha fora criado na época da Salvação, quando tudo se tornara informatizado e não havia mais como roubar, ou o que roubar, exceto tecnologia limpa. Mas era muito difícil burlar a hacker-segurança.

Ativando seu discriminador, subiu verticalmente acima dos prédios flutuantes e continuou sob as nuvens calmas, até avistar a Esplanada.

A mansão estava aberta a sua espera. Na sala uma jovem mulher nua e preparada. Mão de Borracha sentiu uma espécie de felicidade percorrer seus circuitos. Tinha orgulho do seu dom.

Dirigindo-se para a prancha onde a jovem aguardava, começou suavemente a massagear os pés. A técnica de Info Do In que usava era essencial para o relaxamento dos estressados membros da elite. Especialmente jovens esposas de executivos que manipulavam as complexas estruturas alimentadoras do Sistema. Desde que as mulheres voltaram ao Lar, não conseguiam se adaptar sem relaxamento especial. E Mãos era o mais solicitado dos massagistas.

Passou para as pernas e tocou os pontos delicadamente, conseguindo um profundo repouso.

De repente, suas mãos flexíveis começaram a se comportar estranhamente. Deixaram a conhecida massagem, passando a um ritual erótico de manipulação, toques estratégicos que faziam gemer a jovem senhora em um estado perigoso de excitação. Apavorado, perplexo, Mãos tentava controlar seus membros lascivos mas não conseguia. Enquanto, aterrorizado, inutilmente buscava se conter, aqueles dedos libidinosos continuavam sua caminhada pelo corpo nu e a paciente, cada vez mais enlouquecida, retorcia-se de gozo na prancha.

Finalmente a mulher parou, arquejante e as mãos repousaram.
Ela se levantou, olhos quebrados, pagou os créditos devidos e saiu.
Mãos de Borracha fiou parado, destruído, incapaz de raciocinar sobre o que acontecera, como seu programa fora invadido de forma tão perniciosa.

Na central de atendimento, o Mestre recebeu a ligação esperada:

- Funcionou perfeitamente. Podemos explorar o protótipo.

O massagista voltou para seu esquife. Colocou as mãos de borracha no desmaterializador de lixo e aguardou até que nada mais restasse de suas fibras enganadores.

Depois juntou os tocos dos braços sobre a barriga e dormiu dez anos.

Na Idade da Inocência, finalmente, foi reutilizado e programado pra ser cabeleireiro maquiador.

22.11.08

Ressaca

Sabedoria popular no espaço
Por Ana Cristina Rodrigues

Ai. Que puta ressaca. Misturar destilados hidrolíticos marcianos com licores da Nuvem de Magalhães não podia dar certo mesmo. Droga. Melhor pegar o cartão de ignição e sair dessa espelunca...

Opa, calma aí. Cadê meu cartão? Sem ele, não consigo dar a partida no meu velho XTR 450, modelo adaptado pro Sistema Solar. Será que eu perdi em algum canto? Bom, não vai ser difícil entrar sem ele, e lá dentro eu faço uma ligação direta na corrente de neutrinos azuis...

Pó, eu devo estar olhando a escotilha errada, só pode ser. Cadê a sucata que eu deixei ali, noite passada? Ah, droga. Meu cronômetro deve estar errado. Não podem ter passado 5 dias-padrão solar desde que eu cheguei aqui, e ele diz que foram 3 semanas!

Ih, não é meu cronômetro não. O da parede está marcando a mesma data.Ai, não; perdi a data da entrega da mercadoria. Quer dizer, acho que até a mercadoria eu perdi. Vamos recapitular aos poucos, se a cabeça não rachar no processo.

Peguei a carga de urânio ultra fino, coloquei no XTR e parti em direção ao sistema solar. Era uma encomenda para as usinas termo-nucleares de Marte. Só que, ao chegar na órbita de Júpiter, senti sede e resolvi parar.

Era o bar mais falado entre os carregadores de todo o braço inferior da Galáxia. Também, merecia. Bebida boa, comida farta, e companhia à vontade. Para todos os gostos e preferências, machos e fêmeas de todas as raças conhecidas. Foi ali, no salão principal do bar que eu a vi.

Todas as marcianas são maravilhosas – seleção genética apuradíssima dos colonos e dos fetos autorizados a completar a gestação – mas aquela ali era simplesmente divina. Pele negra como ébano, cabelos brancos até a cintura e olhos com a cor das nuvens de tempestade, veio em minha direção com um sorriso nos lábios perfeitos e um copo na mão.

O que foi que ela disse? Merda de dor de cabeça. Ah, ela veio com algum papo mole desses, elogiou meus dois tentáculos laterais ou coisa do tipo.Não lembro, só consigo sentir o gosto da bebida e ...Piranha, vadia, ela me dopou. Ela deve ter pego meu cartão de ignição, roubado minha nave e...

****

Os pensamentos do arcturiano foram interrompidos pela vozinha aguda de um insetóide.

- Senhor? Senhor? Com licença, ficamos felizes que tenha se recuperado. Parece que sua raça tem uma alergia especialmente forte a algumas bebidas do sistema solar. O senhor ficou em coma durante alguns dias. Sua nave foi colocada em uma vaga a parte, e seu cartão ficou conosco para sua maior segurança.

Com um resmungo, pegou o cartão e foi embora sem agradecer. Não viu o sorriso cínico da funcionária, e não reparou que estava sem seus dois tentáculos laterais, situados atrás dos braços.

Atrás do balcão da recepção, um cartaz piscava:

“Atenção, tentáculo e outras partes corporais dispensáveis de pessoas embriagadas serão consideradas sem proprietário legítimo”

20.11.08

À nossa imagem e semelhança

Por que tantos ETs humanóides na TV e no cinema?
Texto e ilustrações por Romeu Martins

Jack Cohen é um biólogo especializado em reprodução que se diverte criando imaginários seres alienígenas, levando em conta fatores como a influência da gravidade e a questão da adaptação em ambientes diferentes do nosso planeta. As versões que ele faz dos ETs são bem distintas daquelas que estamos acostumados a ver no cinema e na televisão. "Encontrar outro planeta com dinossauros ou pessoas iguais às da Terra é mais improvável do que encontrar uma ilhota do Pacífico cujos habitantes falem alemão fluentemente", escreveu Cohen para o semanário de divulgação cientifica New Scientist (no Brasil, o artigo foi traduzido e publicado pela Superinteressante, em 1992). Apesar do ceticismo científico e da crítica bem-humorada de Cohen, e apesar do fato de que as princiais apostas da Ciência em termos de alienígenas sejam simples bactérias e microorganismos, os alienígenas antropomórficos ainda são a maioria, tanto nos relatos supostamente reais quanto na ficção científica.

Isso acontece, até mesmo, no caso mais famoso em que esses dois extremos estão unidos. Estamos falando daquelas fitas que correram o mundo em 1995 mostrando o que seria a autópsia dos ETs do "Incidente Roswell". Esse é o nome pelo qual ficaram conhecidos os boatos de uma nave espacial que, muitos juram, teria caído nos EUA, no dia 4 de julho de 1947 (vários filmes fazem referência à história, os mais recentes são Independence Day e Caso Roswell, respectivamente de 1994 e de 1996). Por todo o mundo, especialistas em imagem garantiram que tais fitas são uma farsa e que os autopsiados são bonecos de borracha como aqueles dos seriados japoneses.

Mas o fato é que, sendo uma farsa ou não, os seres correspondiam à descrição da maioria dos relatos dos chamados contatos imediatos de terceiro grau (além de ser nome de filme de Steven Spielberg, o termo em jargão ufológico trata do encontro entre humanos e extraterrestres). Ou seja, eram humanóides atarracados, com cabeça e olhos enormes e a pele em um tom que vai do cinza ao verde. Dessa forma, chega-se a uma questão interessante: os filmes retratam as criaturas espaciais como seres antropomórficos para serem fiéis a tais relatos ou cada vez mais pessoas, influenciadas pelo que vêem no cinema e na TV, são levadas a crer na existência de homenzinhos verdes? Seria muito simplista dizer que os cineastas procuram ser realistas quando apresentam aliens em seus filmes, afinal essa é a explicação em poucos casos, por exemplo no telefilme Intruders, mas na maioria das vezes as razões são bem diferentes.

A mais famosa delas é a de que ETs infiltrados entre nós são a metáfora perfeita para tratar do medo que temos de quem pensa diferente. Os exemplos de filmes pós-II Guerra apresentando versões espaciais dos soviéticos são clássicos. Em Vampiros de almas (também conhecido por aqui como Os invasores de corpos), a história contada em flash-back mostra uma cidadezinha americana invadida por uma espécie de vagens das quais brotam clones perfeitos dos moradores. O ano era 1956, e bastava dormir para ser substituído por um desses invasores. As criaturas contam seus planos para o casal de mocinhos (Kevin McCarthy e Dana Wynter): criar uma sociedade "em que todos são iguais" e desprovidos de sentimentos como "amor, desejo, ambição, fé". Poderia haver uma melhor descrição da visão de um americano em relação aos comunistas, naqueles tempos de Guerra Fria? Mas é bom lembrar que o diretor, Don Siegel, sempre afirmava que na verdade estava fazendo uma caricatura de seres bem mais próximos da realidade dele: os produtores de cinema.

Exatamente 40 anos depois, A invasão, de David Twohy, utilizou o mesmo princípio para tratar de um novo inimigo dos EUA. É bem verdade que uma cena na qual um alienígena ataca o herói com uma foice faz lembrar do tempo dos comunistas do espaço, mas agora os invasores não são mais da cortina de ferro, do segundo mundo. São do terceiro. Estranhos seres montam bases nos países subdesenvolvidos ("onde não há leis rígidas de controle ambiental") para alterar a Terra, transformando-a em uma segunda versão do planeta deles. Os Ets, que já são antropomórficos por natureza, disfarçam-se de mexicanos, com as características étnicas dos descendentes dos astecas. Quando o mocinho (Charlie Sheen) conta para a namorada a história de aliens invasores, ela responde aproveitando-se do duplo sentido do termo em inglês: "É melhor que você esteja falando de imigrantes ilegais". Os novos invasores da América somos nós, "brazucas", "chicanos" e "cucarachas" em geral que não sabemos cuidar de nossos países e vamos para lá incomodar os coitados.

Outra questão que deve ser levada em conta são as implicações religiosas de ETs antropomórficos nos filmes. A visão de mundo ligada ao cristianismo diz que fomos criados à imagem e semelhança de Deus. Se existir vida fora da Terra, Ele deve ter usado a mesma lógica ao povoar outros planetas - dessa maneira, os alienígenas, e nós mesmos, seriamos todos seres teomorfos, certo? Dando um giro de 180 graus e analisando o caso pela ótica da "religião das ciências", os fatos são bem outros: segundo os positivistas, foi o homem quem criou a idéia de deus à sua semelhança, e não apenas Jeová, como todos os demais panteões, do hindu ao egípcio, são criações antropomórficas. E, em última análise, o que é o conceito de Deus além do de um ser de fora do planeta, ou seja, um extraterrestre?

Não se trata de fazer a defesa das idéias de Erich Von Daniken, o escritor de arqueologia fantástica que acredita na interferência direta de seres de outros planetas na Terra, cujos sinais de sua presença seriam os cultos de figuras míticas. Mas é inegável que o homem procura encontrar repesentações de si mesmo naquilo que escolhe para adorar ou para temer. É natural que se transfira essa analogia para as criaturas de outros mundos que ele se propõe a imaginar. A partir de pequenas variações desse formato é posível construir uma série de simbolismos em torno dessas figuras - as presas e garras com que H. R. Giger produziu os monstros de Aliens e de A experiência representam perfeitamente a idéia do mal; enquanto que os grandes olhos brilhantes e a pequena estatura do ET, de Spielberg, e do mestre Yoda, de Guerra nas Estrelas, despertam simpatia.

A motivação para se criar alienígenas de forma humana pode ter ainda razões bem prosaicas, tal como a falta de dinheiro. E pouca verba e muita imaginação é sinônimo da série clássica de Jornada nas Estrelas, criada por Gene Roddemberry, que deu origem até agora a uma dúzia de longa-metragens para o cinema, desde 1979, e quase meia dúzia de seriados televisivos. Uma de suas inovações estava na tripulação da USS Enterprise. Além de um oficial russo, o piloto Pavel Chekov (interpretado por Walter Koening), em plena época de Guerra Fria, o segundo-em-comando da nave era um alienígena. Para fazer o papel do vulcano sr. Spock, Leonard Nimoy só contava com as famosas orelhas pontudas e um irritante senso de lógica. Outras diferenças anatômicas, como o sangue verde e o coração no lugar do fígado eram só sugeridas ao longo dos episódios.

Existe outra série que também sabe lidar bem com a semelhança entre ETs e humanos que o formato televisivo praticamente obriga a seguir. Arquivo X é aquela mistura de policial-suspense-ficção científica-terror, criada por Chris Carter em 1993. O ponto forte do seriado é o relacionamento de dois agentes do FBI, um extremamente crédulo e outra completamente cética, que investigam casos inusitados, com ênfase nos ligados a extraterrestres. Nos melhores episódios existem evidências que podem se encaixar tanto na ficção quanto em uma perspectiva científica. Um exemplo são os episódios "Os Japoneses" e "O Falso Alienígena" (o título em português é bem inadequado), do terceiro ano da série, disponíveis em vídeo no Brasil na fita Autópsia. O caso parece envolver experiências com híbridos humanos-aliens, mas também há evidências de que os seres encontrados na trama possam ser humanos portadores de hanseníase.

A verdade é que nenhuma das características vistas aqui exclui as demais, e duas ou mais delas (ou ainda outras, como a simples falta de imaginação, presente em dezenas de produções, ou a intenção satírica de filmes do tipo Spaceballs e Mars attacks) podem coexistir em uma mesma obra motivando a apresentação de alienígenas antropomórficos. E quanto a disputa do biólogo Jack Cohen e dos cieneastas para ver quem está certo nessa história toda, só podemos esperar para ver. Veremos se no dia em que fizermos contato vamos encontrar do outro lado da linha homenzinhos verdes ou simplesmente um bando de melecas esverdeadas.

19.11.08

Lamentações de Jeremias

Uma vingança em ritmo pulp por Lúcio Manfredi


Jeremias Moranu odiava esse tipo de clichê, mas tinha de admitir que aquilo era uma arma-laser e estava diretamente apontada para a cabeça dele. De pouco adiantaria sugerir ao autor que ele deveria ter optado por uma abordagem mais sutil e que muita água rolara por baixo da ponte desde os bons tempos da space opera, quando os heróis andavam pra cima e pra baixo brandindo suas pistolas. Pode até ser que fosse verdade, mas uma das virtudes do crítico descolado é saber o melhor momento para compartilhar sua sabedoria e este, definitivamente, não era um desses momentos. Em vez disso, o melhor a fazer seria ganhar tempo até que pudesse usar suas armas favoritas, racionalização e subterfúgio.


— Vamos conversar? — sugeriu o vocalizador.


Para surpresa do próprio Jeremias, o autor depositou sua arma na mesinha diante do aquário e sentou-se.


— É, vamos conversar.


Jeremias Moranu não se chamava realmente Jeremias. Essa era apenas a melhor solução a que o vocalizador chegara numa tentativa de traduzir seu verdadeiro nome, um padrão de cores que, no idioma dos críticos, significava qualquer coisa como “aquele que lamenta sem parar”. Jeremias deveria ter sido uma larva particularmente gritalhona para receber esse nome da rainha. Agora, porém, não estava com muita vontade de gritar. E percebeu que tampouco tinha muito a dizer. Esperara que o autor reagisse dizendo que não havia nada para conversar e estava preparado para responder com a arenga habermasiana padrão sobre como as partes em conflito sempre podem chegar a algum tipo de consenso, mas a concordância do outro pegara-o desprevenido. Ergueu o segundo de seus dezesseis pares de tentáculos e friccionou uma pata na outra diante do terceiro par de olhos esbugalhados, um gesto que, para os críticos, traduzia a mais profunda perplexidade. Para o humano confortavelmente instalado numa poltrona do escritório, entretanto, o gesto não tinha o menor significado.


— Achei que você quisesse conversar — resmungou, tamborilando a impaciência no braço da poltrona.


— Suponho que você está aqui porque não gostou da resenha que eu fiz de Trimalchia IV — tateou Jeremias.


— Não, eu adorei a resenha que você fez de Trimalchia IV — retrucou o autor.


Agora, o crítico esfregava nada menos que cinco pares de tentáculos diante de seus seis pares de olhos esbugalhados.


— Mas eu praticamente destruí o teu trabalho! Falei que havia tantas falhas de carpintaria que era de se espantar que a obra ficasse em pé sozinha. Disse que não passava de um amontoado de lugares-comuns que você parece ter colhido mais ou menos ao acaso no armazém da esquina... — o vocalizador fazia acompanhar cada palavra de um ruído de estática, sobrecarregado pela tentativa de capturar a tantalizante mudança de cores na carapaça do crítico.


— Eu sei.


— E mesmo assim, você adorou?


O autor levantou da poltrona. Jeremias se encolheu no fundo do aquário, mas o outro deu-lhe as costas e se aproximou da placa de transparência subjetiva. A segunda das três luas de Morania levantava-se no horizonte, banhando a sala com seu brilho violáceo.


— Ouvi dizer que, quando você era mais jovem, também se arriscou como autor.


Jeremias enrubesceu, o que, num crítico, não envolvia ficar vermelho e sim escoicear a parede do aquário com seu sétimo par de pernas.


— Ah, uma bobagem de juventude. Eu mal tinha entrado na minha oitava articulação — era impossível não notar uma certa vaidade na sintaxe das cores. — E foram só nove ou dez mundos.


O autor se aproximou do aquário, fazendo Jeremias estremecer novamente.


— Mas eu li cada um deles — assegurou. — Fui em todos os sistemas solares que você assinou, mergulhei minuciosamente na estrutura de seus mundos. De onde você acha que eu tirei os lugares que você acha tão comuns?


A carapaça de Jeremias soltou a explosão de azul que se poderia traduzir como um eureka. Era por isso que Trimalchia IV lhe parecera tão familiar!


— Você criou Trimalchia IV como um pastiche deliberado dos meus mundos?


— Mais do que isso. Trimalchia IV tem um campo ontológico configurado para a tua estrutura ôntica específica. Uma vez que você ponha seus tentáculos lá, estará preso pra sempre no envelope de realidade daquele mundo.


Jeremias emitiu a exalação fedorenta que, entre os críticos, passava por uma gargalhada.


— Acontece que eu nunca piso num mundo que tenha resenhado negativamente.


— Eu sei — disse o autor, recuperando a arma da mesinha. Só então Jeremias notou que sua primeira avaliação sobre a natureza do artefato fora precipitada.


— Eu faço parte da décima-sexta articulação de críticos! — protestou.


Não era uma pistola-laser.


— Sou um dos críticos mais respeitados de Morania!


Era um teleportador.


Jeremias se fechou completamente dentro da carapaça, um gesto inútil de defesa que não o impediu de desvanecer em uma nuvem de partículas azuladas. Antes mesmo que a nuvem se dissipasse, o autor sabia que o corpo do crítico estava sendo reconstruído por um terminal de conexões não-locais instalado numa floresta de Trimalchia IV, onde Jeremias passaria o resto das duzentas e quarenta e três articulações que ainda lhe restavam. Talvez até se sentisse bem. Afinal de contas, os menores detalhes daquele mundo haviam saído de seu inconsciente. Mas o autor preferia que não. O que ele tinha odiado mesmo era a resenha de Esperia XI.

Espírito animal

Abrindo um pouco dos arquivos do TC.
Por Romeu Martins

A primeira coisa que você nota quando finalmente o vê pela primeira vez são as botas brancas sujas de lama. Saltando do avião para a pista de pouso clandestina - em algum lugar entre o sul do Pará e o norte do Mato Grosso, ninguém perdeu tempo para lhe explicar os detalhes geográficos – o homem macula a brancura que usa dos pés à cabeça grisalha naquele chão irregular e enlameado.

Ainda a alguma distância você o ouve falar ao celular, em um modelo semelhante ao que lhe entregaram quando aceitou ser recrutado, semanas atrás. O trecho final da conversa chega a seus ouvidos sem a necessidade de muito esforço de sua parte:

- Sim, Mr. Ayak. Vai ser muito engraçado quando todos perceberem que venceu exatamente o nosso candidato. Muita gente vai se surpreender, com toda certeza. Mande um abraço a Mr. Akia.

O nervosismo bate. Você aperta ainda mais as mãos na expectativa de finalmente conhecer o homem por quem estava esperando há horas. Nervoso, tenta desviar o olho da figura que avança em sua direção e, só então, percebe o prefixo do jatinho que pousou poucos metros à sua frente. Você não é nem de longe um especialista no assunto, mas sempre notou que aviões no Brasil costumam ter a letra P iniciando o código de identificação pintado nas fuselagens. A mente divaga e vem a lembrança do avião que caiu com todos os integrantes de uma banda engraçadinha na metade dos anos 90, como era mesmo?, PT-LSD, sim, você se lembra claramente até das piadas que contou na época.

Porém, a aeronave que trouxe o homem que dá pernadas sobre poças de água para alcançá-lo não segue tal padrão. As letras no casco branco são azuis e não começam com P. Não, no lugar, duas outras letras que você tem percebido por todo o canto ultimamente, a ponto de quase o levar à obsessão com o tamanho e a insistência das coincidências. TC são as tais letras e depois do traço outras três: JCN. Passa pela sua cabeça se isso poderia ser um caso de personalização do prefixo, como algumas pessoas fazem com as placas do carro. Sobre o significado de TC você já tem várias pistas juntadas ao longo de meses de observação, de pesquisa e de entrevistas. E quanto às outras três letras? Seriam a iniciais do nome deste homem que se aproxima? Talvez, afinal a forma pela qual o identificaram é apenas um sobrenome, o mesmo que você balbucia enquanto ergue a mão para cumprimentá-lo.

- Sr. Neves? É um prazer finalmente conhecê-lo.

Ele retribui o gesto, apertando sua mão com mais força que seria o esperado para alguém com idade suficiente para ser seu avô. O sorriso parece genuíno.

- Ah, sim, o mais novo candidato a membro de nossa organização. Me disseram que você nos prestou bons serviços em um caso recente. Espero que tenha sido bem tratado enquanto esperava.

- Com certeza. Todos que me trouxeram até aqui foram muito cordiais, apesar de não poderem me dar tantas respostas quanto eu gostaria. Eles não sabiam me dizer exatamente quando o senhor voltaria de viagem, por exemplo.

- Ah, mas isso ninguém saberia dizer mesmo, rapaz. Estive muito ocupado com as atividades do Tulip Collectors, nos Estados Unidos, desde setembro.

- Colecionadores de tulipa? Não fazia a menor idéia que o senhor se interessava por botânica.

Ele dá uma gargalhada. Será que você falou alguma bobagem?

- Eu me interessar por flores? Isso é muito engraçado. O nome do grupo é uma homenagem a um caso que ocorreu há 400 anos, na Holanda. Foi a primeira crise especulativa registrada pela história da economia. Já ouviu falar?

- Não, pelo menos não que eu me lembre.

- Amsterdã era uma cidade rica nos anos de 1600, capital de um império que, no auge do período das navegações, consumia produtos vindos de toda parte do mundo. Um desses produtos chegava do oriente e virou mania entre os milionários holandeses. Sei que parece ficção, mas a verdade é que um único bulbo de tulipa chegou a valer o mesmo que 24 toneladas de trigo naquela época. Existe o relato, feito no século XIX, sobre um marinheiro bêbado que comeu um desses bulbos. Pensou que era uma cebola, pobre coitado. O homem ficou seis meses na prisão por isso.

- Mas é inacreditável. Como pode uma flor, mesmo sendo, sei lá, exótica , valer tanto dinheiro?

- Keynes chamou a isso, usando uma expressão emprestada de Descartes, de “Espírito animal”, a euforia que faz investidores partirem em busca do lucro. É uma característica positiva, mas quando assume ares de irracionalidade vira a versão do mercado financeiro para a febre do ouro. O resultado é que, quando alguém finalmente percebe o tamanho do buraco em que se meteu, o encanto se acaba e o efeito manada leva a uma crise generalizada. Foi assim com as tulipas holandesas do século XVII, com a crise de 1929, com o estouro da bolha da Internet...

- Ou com o mercado de quadrinhos dos anos 90!

Sua intervenção parece ter pegado o homem mais velho de surpresa.

- Quadrinhos?

- Hã, sim. Na década passada colecionadores de revistas de super-heróis, tipo Marvel e DC, sabe?, pareciam acreditar que qualquer gibi com o número 1 na capa iria valer uma fortuna em poucos anos, como aconteceu com a Action Comics, a revista em que surgiu o Super-Homem antes da II Guerra e que hoje está avaliada em uns... 800 mil dólares por exemplar bem conservado.

Você percebe pelo rosto de seu interlocutor que todos os nomes listados não fazem muito sentido para ele, então só acrescenta mais uma frase, em voz baixa, meio envergonhado:

– Mas logo aquilo mostrou ser um erro, quem comprou várias edições de um mesmo gibi dos X-Men ou do Batman, mesmo sem nunca ter tirado do plástico, percebeu que jogou dinheiro fora.

- Bem, neste caso eu sou inocente. Nunca me meti com o ramo dos quadrinhos, apesar de já ter feito serviços para a indústria de cinema dos Estados Unidos, tempos atrás. E agora, com a queda de Wall Street, eu e meus associados fizemos tanto dinheiro quanto havíamos feito com a queda do outro muro, o dos anos 80. Mas vamos entrar na base e tirar os pés deste atoleiro. Nunca vi terra pra chover tanto, é impossível se erguer um país civilizado com este clima.

Basta um aceno do homem para que as portas do complexo se abram. Durante todas as horas em que esteve esperando por seu anfitrião, não o deixaram entrar no local, protegido por uma camuflagem de selva que o torna virtualmente invisível do alto, seja de observadores em aviões seja dos olhos eletrônicos dos satélites. Você só pôde esperar em um alojamento comunitário, uma área residencial para a equipe permanente daquilo que Neves chamou de “a base”.

Não dá para dizer que impressiona muito as instalações por trás da alta e provavelmente pesada porta que se destranca à sua frente. As instalações lembram alguns laboratórios dos cursos de engenharia lá na sua antiga universidade. Um saguão amplo e uma série de escadas e passarelas de metal chumbadas em paredes de tijolo à vista são tudo o que você percebe. No chão de cimento pintado de branco vocês dois deixam pegadas de lama enquanto avançam para o interior do prédio, tão iluminado quanto uma fábrica, com iluminárias de lâmpadas fluorescentes, divididas de quatro em quatro. Poucas pessoas percorrem o lugar, algumas entram e saem pelas portas dos andares superiores. Mas todas as que notam a presença do senhor Neves, a seu lado, imediatamente trocam com ele algum cumprimento. O líder daquela equipe retribuí com simpatia, chamando boa parte dos homens e mulheres pelos respectivos nomes.

Você procura ansiosamente algo para dizer e com isso disfarçar o nervosismo com a situação. É quando nota uma placa de bronze parafusada em uma parede com aparência bem mais sólida e antiga que a do restante da base. Não dá para resistir a curiosidade em relação ao que está escrito e sua voz sai mais alta do que o planejado quando consegue ler o alto-relevo.

- TC, 1810, Príncipe Regente D. João VI...

- Surpreso com alguma coisa?

- Bem, desculpe se estou sendo indiscreto, mas não esperava uma citação tão antiga a..., bem, à nossa organização. E muito menos que ela estivesse relacionada com um antigo rei português.

Neves pára diante do retângulo metálico com certa reverência, mãos para trás, na postura de um acadêmico que estuda detalhes de alguma pintura clássica. Ele não tem pressa em falar.

- É verdade. Esta placa é um dos registros mais antigos da pré-história de nosso grupo. Ela representa o agradecimento de D. João a quem o salvou de um atentado planejado por Napoleão Bonaparte para matá-lo em solo brasileiro.

Sua cara de espanto é o suficiente para divertir o homem mais velho e o incentivar a continuar a história.

- É isso mesmo. Sei que você nunca leu sobre isso nos livros de história, mas quando a família real portuguesa conseguiu escapar do cerco francês, escoltada pelos navios ingleses, Napoleão secretamente decretou a morte de D. João e de Carlota Joaquina. Para executar a ordem, o imperador recrutou o serviço de agentes que imaginava serem leais a ele. Não contava que haveria um traidor no grupo.

- Um homem de nossa organização?

- Eu falei que esse caso dizia respeito à nossa pré-história. E essa história, como a outra que lhe contei, também diz respeito a uma flor. O fato é que umas das pessoas envolvidas na missão de matar os portugueses era diretamente ligado a um antigo inimigo dos republicanos que fizeram a revolução na França. Um homem que, disfarçando sua identidade, salvou muitos nobres da morte certa na guilhotina e que enfrentou Robespierre e seu bando de decapitadores. Este nosso amigo, assim que aportou no Brasil, conseguiu impedir os planos regicidas de Napoleão. Com isso, ganhou o reconhecimento da família real portuguesa e dos aliados ingleses e espanhóis. Aquele evento foi a origem de um pacto entre representantes dessas casas reais, cujos integrantes se faziam reconhecer por aquela sigla gravada na placa.

- T e C? – Você se arrisca a falar, quase para tirar o narrador de um transe.

- Isso, isso mesmo. Aquelas letras representavam expressões que faziam sentido na língua tanto dos aliados quanto na do inimigo de então. T e C significavam Três Coroas para os brasileiros e portugueses; Three Crowns, para os ingleses; Tres Coronas, para os espanhóis; e Trois Couronnes, para os franceses. Juntas, em selos, marcas d’água, brasões, sinetes, anéis e toda série de subterfúgios as duas letras abriam portas, serviam como senha e passe livre além de distinguir os membros de uma das mais secretas e poderosas sociedades internacionais que já existiram.

Ambos ficam devotando atenção àquela sigla centenária feita de metal. Não com menos ênfase que uma dupla de maçons dedicaria a um monumento com o G emoldurado pela régua e pelo compasso. Você mal pode acreditar que algo assim lhe foi contado com tamanha facilidade, não depois de semanas e semanas de mistérios, de tentativas dissimuladas para ganhar confiança que pareciam não dar em nada... Todo aquele trabalho estava sendo recompensado com uma conversa em tom casual revelando nada menos que duzentos anos da história secreta do seu país. E além!

Você se sente tirando a sorte grande. Tem medo de pôr tudo a perder se for muito intrometido, mas medo ainda maior é o de não arriscar. Continuar com as perguntas é sua obrigação.

- Quer dizer então que tudo começou como uma sociedade secreta monarquista?

O transe foi oficialmente interrompido. Neves tira os olhos da placa histórica e se volta para você, girando não o pescoço, mas todo o corpo. Cintura primeiro, calcanhares depois, ainda com as mãos cruzadas nas costas. Ele parece voltar a se dar conta de sua presença ali, mesmo que a expressão do rosto seja indecifrável.

- Desde o início os fundadores de nossa organização tiveram o objetivo claro de moldar a realidade de acordo com nossos interesses. Não somos nós quem devemos nos adaptar ao mundo, é ele que deve se curvar a nós. Se no primeiro momento era útil contar com a aliança de cabeças coroadas, mais tarde chegou a vez dos republicanos. Prova disso é que tanto Deodoro quanto Bolívar estiveram acompanhados nos seus momentos decisivos por agentes com o emblema TC . E assim foi ao longo das décadas, trabalhamos tanto com ditadores de direita quanto com revolucionários de esquerda; estamos ao lado de teocracias fundamentalistas e de estados ateus. Derrubamos mercados liberais do mesmo modo que arruinamos economias planificadas. No final, nossa vontade é o que conta.

É até difícil engolir em seco. A medida em que a voz dele ia se tornando mais firme e o tom se elevava, sua garganta parecia se contrair. O medo que você está sentindo deve ser tão visível ou tão sensível ao olfato de seu interlocutor que ele muda de atitude. Abandona o ar de sermão e se aproxima para dar um tapa em suas costas e voltar a guiá-lo na caminhada pelas instalações.

- Mas você está certo em sua observação. Foi nossa origem pró-monarquia que garantiu nosso futuro. D. João nomeou seu salvador como barão e concedeu muitas vantagens ao grupo que estava sendo criado naqueles dias. Entre elas, a posse de terras como o pedaço de selva em que está construída esta base. Ela começou como uma simples casamata e foi crescendo de acordo com nossas necessidades operacionais.

Neves aponta para funcionários carregando equipamentos de telecomunicação, partes de antenas de transmissão, centenas de metros de fios dourados, placas de circuito integrado. Mas ele o conduz por uma porta da ala antiga da base, longe da maior parte da agitação provocada pelo entra e sai dos técnicos.

- E deve ter sido uma coincidência e tanto vocês estarem instalados em um local com tantos acontecimentos históricos. Afinal, aqui perto fica aquela base militar onde tentaram desenvolver uma bomba atômica nacional, não é mesmo? Sem falar naquele acidente aéreo terrível...

Antes de completar a frase você se dá conta sozinho do tamanho de sua ingenuidade, algo só reforçado pelo som da risada de seu anfitrião.

- Ora, coincidência é o nome que pessoas desinformadas dão a nosso trabalho.

O local está bem mais escuro que o restante das instalações. Neves indica com um gesto que você deve continuar em frente enquanto ele se aproxima da parede oposta, onde estão localizados os interruptores. Mesmo na penumbra, pelo som de suas passadas, você percebe que a partir de certo trecho o chão não é mais de cimento. Só não consegue identificar exatamente o que seja.

- Estranho, essa parte aqui parece ser feita de um metal... mas não é de ferro, né?

Um ligeiro clique e as luzes se acendem.

- Não, não é de ferro...

Um novo som, mais seco e muito mais alto, e o chão a seus pés desaparece.

- ... é feito de chumbo, na verdade.

De chumbo ou de ferro, para sua própria e máxima surpresa, apesar dos anos de ócio improdutivo, você consegue se agarrar à borda do buraco que surge como um alçapão de desenho animado.

Mesmo com o impacto da barriga e dos joelhos contra as paredes metálicas, o desespero empresta forças suficientes para você não largar o apoio, isso às custas das unhas fincadas, arranhando ruidosamente o piso. Arfando e bufando, você tenta se manter a salvo e escalar a saída. Só que o revestimento das paredes é liso demais para seus pés conseguirem impulsioná-lo, a borracha do tênis patina, patina e não encontra aderência o suficiente. No outro extremo, os braços sozinhos não dão conta de puxar seu corpo para fora.

Neste momento, você parece brotar do chão, da altura do peito, com os braços esticados para frente e olhos esbugalhados de espanto.

Pouco a pouco, caminhando calmamente, Neves aparece em seu campo de visão. Ele se reclina um pouco para falar com você, como faria um adulto para conversar com uma criança pequena.

- Parabéns, não esperava que um bostinha feito você conseguisse evitar a queda, jornalista.

O esforço na luta contra a gravidade provoca um chiado em seus ouvidos, é como se sua cabeça tivesse se tornado um enorme balão que deixa o gás escapar por um furo microscópico. Mesmo assim, dá para ouvir claramente que aquele homem descobriu sua identidade.

- É, seu idiota, sabemos quem é você. Sabemos que você estava tentando escrever uma matéria sobre nós para aquela revistinha patética que publica seus, como é mesmo?, seus frilas. Sabe, foram vários os motivos para termos comprado nossa própria empresa de telefonia celular. Espalhar antenas por todo o Brasil foi um deles; garantir meios para que ninguém consiga grampear nossos aparelhos foi outro.

Neste momento ele se abaixa ainda mais e fala quase cuspindo diretamente em sua direção.

- Ninguém escuta nossas conversas sem nossa permissão, seu bos-ti-nha. E nós sempre – sempre – sabemos quem está tentando nos bisbilhotar.

Seus dedos começam a sangrar, as unhas parece que vão ser arrancadas pela tensão que são obrigadas a suportar. Entre suor e baba você consegue falar em um tom audível, mas não tão alto quanto os sons guturais que lhe escapam da boca e do nariz.

- Muita gente sabe que onde eu estou... se eu não voltar vão haver buscas...

A risada do outro lado é sonora.

- Você é mesmo um tolo, rapaz! O monomotor que o trouxe aqui - isso já está em todos os telejornais - sofreu um acidente e caiu no fundo do mar, com seu corpo e o do piloto. Vocês nunca serão encontrados, é claro. Neste momento, todos os arquivos de seu computador pessoal já estão conosco. Invadimos seu hotel, sua casa, o computador que você usa naquela redação... As pessoas que falaram com você, que deram entrevistas e passaram informações, serão procuradas. Você serviu direitinho para o que queríamos, jornalista. Foi nossa isca perfeita para nos mostrar elos fracos em nosso grupo.

A vontade é de largar tudo e se deixar cair. Só o instinto, na forma de um iceberg gelado na barriga e no de pêlos ouriçados na nuca, é que o impede de se entregar ao precipício.

- Mas depois de todo esse esforço, você merece ao menos a confirmação da história que veio buscar. Sim, o que você leu naquele documento militar confidencial que lhe entregaram estava certo, é tudo verdade. Havia mais um projeto secreto financiado com dinheiro das contas Delta durante a última ditadura. Não era só o exército que queria construir seu artefato nuclear; a marinha com o submarino atômico; e a aeronáutica com o míssil balístico. Existia um quarto projeto, coordenado por um grupo independente, o nosso grupo. Mas sabe qual era a diferença entre nós e eles, os militares?

Neste momento ele volta a se levantar, apenas mantém o olhar fixo em você e cutuca o polegar direito contra o próprio peito enquanto fala em voz mais alta.

- Nós tivemos o espírito animal que faltou àqueles incompetentes. Hoje, o resultado de nossa pesquisa está usando um capacete azul no Haiti.

Neves avalia durante alguns segundos o efeito que as palavras tiveram sobre você. Porém seu estado não é muito promissor para continuar a conversa. A dor, o cansaço e a gravidade vão vencer a luta a qualquer momento.

- Posso ajudá-lo em mais alguma coisa para a sua matéria, jornalista? Quem sabe quer mais alguma declaração minha ou uma foto para a capa da revista? Já sei, que tal uma imagem do futuro para você? Tome!

A última coisa que você vê é a bota enlameada vindo em sua direção. Ela esmaga seu nariz e o empurra em uma queda de dezenas de metros até o fundo de um túnel com uma inquietante fosforescência radioativa. O brilho tênue vai se apagando aos poucos diante de seus olhos.


9.11.08

Uma Arca para Marte

Uma história clássica reescrita por Flavio Moutinho

O trânsito estava ótimo naquela manhã de segunda-feira, e disso o rapaz muito se admirava. Graças a Deus, pensou, mas logo se arrependeu, ao lembrar que esse tipo de comentário, quando cedo demais, dá azar, e o sinal duzentos metros adiante passava para o amarelo. Sua primeira reação foi acelerar, e em segundos calculou o quanto seria necessário afundar o pé no pedal para atravessar o sinal ainda amarelo, antes que se fizesse vermelho, mas, obtendo como resultado um valor maior que a fundura do pedal, resignou-se em frear. Diabo, exclamou, como se fosse o capiroto, antítese de Deus, a obstruir seu caminho e atrasá-lo para o trabalho.

Pacientemente, tamborilando os dedos no volante ao ritmo de um rock guardado na memória, esperou até que a contagem regressiva chegasse a zero. O sinal piscou e então ficou verde.

Noah, pensou ouvir, olhou para a esquerda, para a direita, para trás, e, não encontrando quem pudesse tê-lo chamado, convenceu-se de que era apenas o ronco do motor a acelerar. Noah, por que finges não me escutar? Agora era uma frase inteira, e não apenas o nome gutural que pudesse ser confundido com o motor. O carro já se ia a sessenta, setenta quilômetros por hora e a voz grave e rouca não parava de lhe encher a cabeça com Noah isso, Noah aquilo, Foste meu escolhido, A humanidade depende de ti, Uma chuva de meteoros está para acontecer e ameaça a vida na Terra. Chega! Cala a boca! Sua reação, contudo, não foi suficiente para parar a voz, que continuava a mesma ladainha. Somente tu podes salvar a minha obra, Não sabes do poder que se esconde por sob essa frágil pele humana, Com o cérebro te tornas mais forte que o vento e as pedras e o fogo. Olhou o rádio, estava desligado. Quem podia ter tido a infeliz idéia de esconder um gravador dentro do carro, era o que Noah procurava descobrir a todo instante, e pensando bem a voz parecia a de Jonas. Filho da mãe, vociferou, xingando até a centésima geração antepassada, nascida em tempos em que a Bíblia era um rascunho riscado e rabiscado, com setas de continua aqui e notas explicativas no rodapé, daquele que julgava responsável pelo trote. Pára com isso! Se não era brincadeira do colega, de quem seria, ou eram os primeiros sintomas de loucura? Para sua sorte já estava próximo do trabalho, e em quinze minutos, os mais longos e enlouquecedores quinze minutos de toda sua vida, estacionava diante do escritório.

Ainda não sabe quem eu sou, Noah? Sou o Pai... Chama-se Josué o meu pai... sou o Filho... qual dos três, Lucas, Tiago ou Mateus?... sou o Espírito Santo... E eu definitivamente estou ficando louco... Não, Noah, não está... Como eu posso ter certeza disso?... Ninguém que cogite a hipótese de ser louco pode de fato estar louco. Nisso a voz tinha razão: fosse a loucura ciente de si, não haveria loucos, ou seríamos todos. Noah concentrou-se em explicar logicamente o que acontecia, mas, não encontrando lógica em coisa alguma desde o sinal, deixou-se relaxar e escutar o que mais aquele grave e rouco Deus, ou fosse o que fosse, tinha a lhe dizer. Preciso que construas uma arca, e nela hás de salvar tua família e mais dois seres de cada espécie hoje vivente neste terceiro planeta do sistema solar. Uma arca, pensou o rapaz, mas para a voz tanto se lhe fazia se o pensamento era dito ou não dito, Sim, uma arca. Mas, por Diabo, desculpa-me Senhor, por Deus, uma arca seria útil em caso de um alagamento, uma enchente ou um dilúvio, mas de que adiantará frente a uma chuva de meteoros? Com ela, Noah, ponha-te daqui para fora, a tua família e aos outros casais, estareis a salvo no quarto planeta, a próxima estação. E como vou fazer para a arca sair desse planeta e chegar a Marte, um foguete não seria mais adequado? Vira-te, homem, que eu só sei construir arca!

Onisciente, pois que sabe até ler pensamentos, mas que onipotente é esse Deus, que manda o homem se virar em vez de lhe dar explicações mais detalhadas sobre sua idéia estapafúrdia de fazer caber numa arca todas as espécies da Terra e levá-las juntas para uma viagem interplanetária? Noah evitava pensar nesse tipo de coisa, sabia que a voz não aprovaria, e por isso se preocupou mais em como faria o que precisava ser feito. Não tinha qualquer experiência com engenharia, náutica ou aeroespacial, era apenas um graduado em administração, pós-graduado em marketing, e mal empregado como secretário executivo na mesma empresa por vinte anos. Esse Deus não tinha pessoa melhor para escolher? Possivelmente Noah não tinha outra opção, mas acabou aceitando de bom grado a empreitada, não perderia grande coisa em largar o emprego, e caso fosse verdade que a chuva de meteoros destruiria a Terra, riria do alto de sua arca espacial ao ver em pedaços o chefe que sempre o preterira em benefício dos puxa-sacos, que nunca lhe oferecera uma função condigna com sua formação acadêmica, a quem Noah diria, se tivesse oportunidade, Fui escolhido pelo Senhor, Por mim é que não, responderia desdenhoso o chefe, Não, de fato, mas por Nosso Senhor Todo Poderoso.

Telefonou para o escritório para avisar que não iria, estava doente, febre e dor de cabeça, dengue talvez, todos os vizinhos também tiveram, enquanto ligava o carro e tomava o caminho e volta para casa. O chefe só daria por sua ausência no meio da manhã, quando, em estado avançado de síndrome de abstinência de café, chamasse seu nome e o fizesse buscar-lhe uma xícara. A voz não o deixou um só segundo, Precisarás de muita madeira e pregos e betume para a calafetagem e panos para as velas e, Chega, Noah exasperou-se, cansado daquela lengalenga antiquada que teria ajudado seu antepassado a sobreviver a quarenta dias e quarenta noites de chuva, de água, porém, e não de asteróides, num tempo em que não havia fibra de vidro, aço inoxidável e motor de explosão a hidrogênio, Assim eu não consigo pensar direito. Com isso calou-se a voz pela primeira vez desde que surgira, e muda ficou até que Noah lhe desse uma segunda ordem.

Ester, chamou o homem à esposa ao chegar em casa, desça e traga as crianças. Crianças não eram mais, Lucas contava vinte e dois anos e cursava o terceiro ano da faculdade de engenharia florestal, Tiago completara dezessete um mês antes, e em Mateus recém nascera a primeira espinha aos treze, mas o pai teimava em chamá-los assim, o que muito os enfurecia, especialmente diante de visitas. Não era o caso, estavam sós. Sentaram-se os cinco na sala e, com o tom solene que a situação exigia, Noah se pôs a contar-lhes o que já se sabe, sobre a voz e a missão a ele outorgada. Eu não estou louco, concluiu, diante de quatro olhares reprovadores. Ninguém aqui disse que estás, respondeu-lhe o primogênito, o olhar sarcástico desmentindo suas palavras, E você, pare com isso, a mim me basta a voz a me chamar de tu. Deus se dirige a você em segunda pessoa do singular, surpreendeu-se a esposa, quanta intimidade. Quando Noah se levantou, porém, seu porte era outro, tinha se transformado em um general de dez estrelas, dando ordens e atribuindo funções, a Lucas coube a gerência intelectual, Tiago foi encarregado de conseguir os materiais, Mateus ficou com os arremates, ele próprio estudaria os manuais de direção no mar e no ar, obrigando a todos que unissem forças para o projeto, ainda que não dessem o necessário crédito ao que lhes dizia o pai, quem preferisse não ajudar que ficasse em terra quando adviesse o cataclismo. Com que madeiras, pregos, betume e panos, com que aço, fibra de vidro e motor a hidrogênio, com que projeto hidro e aerodinâmico, ainda não havia pensado em nada disso, mas que tinham de construí-la era fato consumado.

Em quanto tempo vem a chuva de asteróides? A pergunta foi feita pelo filho do meio no sétimo dia da empreitada. A arca já se ia com o esqueleto pronto, e as primeiras ripas do arcabouço de madeira estavam sendo encaixadas e devidamente pregadas. O pai não sabia a resposta, esquecera de perguntar ao divino patrão qual seu prazo para concluir a obra, e era melhor assim, ou corria o risco, como tinha o hábito de fazer, de deixar o grosso do trabalho para a véspera. Tudo deve ser feito como se o apocalipse fosse acontecer amanhã, porque um dia ele há de ser de fato amanhã, e nesse dia precisamos estar prontos para partir. Essas palavras sábias disse-as para que ninguém mais lhe perguntasse o prazo, enquanto ele próprio não conseguia deixar de pensar nisso, é difícil, ou impossível, segundo alguns teóricos da administração, planejar sem saber para quando.

Em quinze dias já se via no quintal de Noah algo que pudesse ser chamado de arca. Longe dos trezentos côvados, o que é um côvado, afinal, quarenta, cinqüenta, sessenta centímetros, depende de ser egípcio, hebreu ou mesopotâmio, mas a estrutura, enfim, era suficiente, de acordo com os cálculos de Lucas, para suportar o enorme peso da biomassa que precisariam carregar. No princípio os vizinhos estranharam a movimentação, ainda mais quando o motivo foi ganhando os contornos de uma embarcação, Noah nunca fora arquiteto, marceneiro, escultor, nunca calejara as mãos com serrotes, martelos e chaves de fenda, mas com o tempo foram se acostumando com a mudança, que ele se interessasse por trabalhos manuais era bem visto na redondeza. Como faremos para levarmos os peixes e baleias e golfinhos? Ninguém tinha pensado nisso antes que Mateus perguntasse, só ele mesmo, naquela fase em que nem o próprio nem o mundo sabem se é um adolescente ou uma criança, umas vezes agindo como esta, noutras falando como aquele. Eles não tiveram problema com o dilúvio, adaptados que estavam à vida sob as águas, um pouco a mais, um pouco a menos, tanto se lhes dá, mas agora o caso era outro. Não tiveram problema uma ova, corrigiu Lucas, se choveu água doce e diluiu o sal dos mares, todos deviam ter inchado até explodir. Se souberam escapar a isso, agora que dêem um jeito de novo ou se extingam, vamos voltar ao trabalho. A Ester não agradou a resposta, Coitados dos golfinhos, pensou, não dos tubarões e baleias assassinas, mas os golfinhos são tão fofos, adjetivo esse que só sai bem da boca de uma mulher, e concluiu em voz alta, para que todos que não lessem pensamentos pudessem escutar, Antes levarmos os golfinhos às hienas. Não me oponho, respondeu o marido, se você achar uma forma de levá-los, eu é que não posso interromper a obra para pensar nisso.

Ao longo do vigésimo dia a arca já era capaz de flutuar sobre as águas, embora ainda estivesse no quintal de Noah, por dentro madeira, por fora fibra de vidro. Soubessem do caso, os donos de estaleiros estariam se perguntando como, em tão pouco tempo, pôde uma família sem qualquer instrução náutica construir um barco daquele tamanho, Inspiração divina, era a única reposta possível, e os senhores sabem-tudo se ririam da ingenuidade do interlocutor. Veremos o quão histriônico será o riso desses homens quando as rochas espaciais, primeiro umas míseras bolas de gude, capazes de, com a queda em alta velocidade, abrir fendas do tamanho do Grand Canyon, depois pedregulhos grandes como um campo de futebol, começarem a se suicidar neste planeta em breve estéril. Faltava apenas, e não era pouco, adaptar a embarcação para uma viagem interplanetária. A idéia partiu de Tiago. Com um tanque de cinqüenta metros cúbicos de água e uma bateria de 70 quilowatts-hora conseguimos hidrogênio suficiente para nos servir de combustível até Marte. Como chegou a esses valores, perguntaram o pai e a mãe, surpresos com a precisão do filho do meio, Fácil, saiu-se bem Tiago, mostrando-lhes o rascunho de seus cálculos, fórmulas e números e letras, romanas e gregas em igual proporção, que não faziam o menor sentido a quem não estivesse familiarizado com a notação matemática, aí inclusos Noah e Ester. Não temos espaço no barco para cinqüenta metros cúbicos de água, garantiu o pai, e o filho prometeu que tentaria de alguma forma diminuir o volume necessário, se otimizando a eficiência da hidrólise, se aumentando a voltagem da bateria, ainda não sabia. De toda forma, precisariam ainda fechar hermeticamente a nave, para que, chegando o esperado momento da gravidade zero, não saíssem todos, homens e animais, um para cada lado, flutuando no vazio do espaço sideral, imagina o azar da zebra se a deriva ao acaso a levasse diretamente para as mandíbulas do leão.

Com um tanto de criatividade e competência, a uns mais da primeira, a outros mais da segunda, só não brigaram feio porque a discussão, além de inútil, consumia o tempo de que dispunham para os retoques finais, sob a responsabilidade de Mateus, no dia trinta e cinco de contínuo labor batizaram à arca Gênesis 2.0 e partiram para a fase seguinte do projeto. Chamamo-la arca por força das circunstâncias, para não dizer que o produto da gestação se afastou sobremaneira do objetivo da concepção, mutante adaptada ao propósito, porquanto mais semelhasse um ovóide, com a proa adelgaçada e a popa bojuda, e uma casca metálica, que, quando aberta, expunha, não clara e gema, mas cinco mastros e suas respectivas velas. A arca, pois, conversível, transformava-se em nave espacial com o fechamento da superfície de aço inoxidável. O problema do combustível foi resolvido com um acerto nas equações de Lucas, tanto no que diz respeito ao volume de água como à energia da bateria necessários para a viagem de setenta milhões de quilômetros. Ester também saiu satisfeita, tendo conseguido permissão para colocar o casal de golfinhos, de que ela fazia tanta questão, no tanque de água, Se eles não se incomodarem com os choques, gracejou Noah à proposta da esposa. E agora, perguntou-se a si próprio Noah, e manifestou-se a voz, que até então se mantivera calada, lembremos que por ordem deste homem mais de um mês antes, Queres que eu responda, ou a pergunta é figura de retórica. Noah se assustou, não se lembrava mais de como a voz era parecida com a de Jonas, e julgou por um instante que o colega brincalhão estava em sua casa. Diga-me, por favor, e agora? É chegada a hora de partires, Noah, chama tua família e sai à cata de um casal de cada espécie. Qual a verdadeira definição de espécie, Senhor, quis saber o escolhido, se nem os cientistas chegam a um consenso quanto a isso, se o que diferencia a onça parda da onça pintada é apenas a proporção de material genético que compartilham, um pouco a mais que com os gatos? Descobrirás em tua jornada, encontrou a voz esse subterfúgio para não responder de forma objetiva, Saberás distinguir o essencial do supérfluo assim que o vires.

Chamou pelos três filhos, pela esposa, Vamos embora que as pedras vão rolar, e quando viu lá estavam eles com os primeiros tripulantes da arca, Lucas e dois cachorros, precisavam se certificar de não estarem levando mais de um casal de pulgas, Mateus e dois coelhos, maldita a hora em que o filho caçula incluiu entre os leporídeos uma fêmea no cio, sairiam dois e chegariam sabe-se lá quantos, Tiago e dois iguanas, se um casal, se ambos machos ou fêmeas, quem há de saber distinguir o sexo dos répteis. Também tinham de se limitar a duas formigas, mas a espécie estaria fadada à extinção se uma delas não fosse a rainha, bem como as abelhas e cupins, estes, então, melhor nem tê-los a bordo, se Deus lhes permitisse, pois se corria o risco de ter o esqueleto de madeira transformado em queijo suíço antes de atravessarem a atmosfera. Gênesis 2.0 saiu rebocado de seu porto seco, de todos os passantes chamando à atenção, um gigantesco ovo prateado a atravessar a cidade, não atrairia menos olhares se estivesse aberto, com as velas amarradas e os mastros rasgando as nuvens do céu, até o mar mais próximo. O projeto lhes permitiria que fossem pelo ar, decerto chegariam mais rápido, mas decidiram, Noah, é bem verdade, decidiu sozinho, e os outros só puderam concordar, ir por terra, primeiro porque dessa forma o translado é mais discreto, segundo porque gastariam uma quantidade desnecessária do precioso combustível, e terceiro porque já poderiam ir recolhendo uns casais pelo caminho. Foi o caso dos gambás, içados a bordo em uma esquina e devolvidos ao solo na seguinte, Eu é que não vou até Marte com um cheiro desses, reclamou Ester, dos crocodilos e das capivaras, imediatamente separados em jaulas para chegarem as duas espécies ao novo hábitat, vivas estas e famintos aqueles.

Duas horas depois a arca já se encontrava em água, o trabalho que deu a Noah, sua família e uma dúzia de estivadores mal pagos para descê-la do reboque será propositalmente omitido, tendo em vista a fluência do relato, desnecessário seria gastar linhas e linhas, parágrafos, páginas inteiras até, dependendo da prolixidade do narrador, para contar como fizeram. Não sabiam os tais estivadores que, em os ajudando, e sobretudo em não aproveitando da carona, estariam se condenando ao mesmo destino que todo o resto da Terra que não arrumasse uma forma de se mandar para Marte, ou outro sítio qualquer fora do alcance dos asteróides. Interessa, pois, que o motor de popa foi testado com sucesso, e zarparam tão logo foi suprido o estoque de óleo diesel, sim, diesel, a um planeta ameaçado por asteróides não se poupa da emissão de gases tóxicos, o efeito estufa mataria em séculos, no mínimo décadas, enquanto a chuva de meteoros era iminente, e do hidrogênio muito precisariam para vencer a barreira atmosférica.

Uma vez no mar, portanto, com as velas içadas e o vento de través, finalmente pôde partir Gênesis 2.0 em direção à África, a primeira escala. O plano de viagem traçado por Lucas incluía a passagem pelo Cabo da Boa Esperança, depois Oriente Médio, Índia, China, Japão... Lucas pensou antes na geografia que na física, pois se era mais próximo começarem pela África, mais dispendioso era dar a volta ao mundo carregando elefantes, rinocerontes e hipopótamos, melhor seria deixá-los para o final. Não nos esqueçamos da Austrália, lembrou-se Mateus dos ornitorrincos, a prova real da criatividade de Deus, Ou do reaproveitamento de modelos prontos, o pai respondeu de imediato, um bico de pato, um rabo de castor, põe ovos e dá leite. Sim, precisamos ir à Austrália, concordou Ester, mas seu motivo era outro, tinham de levar os coalas e cangurus. Passariam ainda pelas ilhas da Polinésia, Galápagos, Havaí, chegariam de volta à América pela costa pacífica, e, de lá, a parada seguinte era Marte. Pelas contas de Tiago, a viagem náutica duraria três meses ao vento ou setenta dias ao diesel, mais provavelmente um tempo intermediário, a vela e o motor têm lá suas vantagens e desvantagens, mas o que ninguém sabia era se ainda haveria setenta ou noventa dias antes que o céu, sob a forma de asteróides, caísse sobre suas cabeças.

Noah! O que é agora? O que é o quê, não falei nada, respondeu Ester, franzindo as sobrancelhas, surpresa com a reação do marido. Não é você, mulher, é a voz... Como, se eu não escuto? Não escuta porque ela só fala comigo, e voltando-se para o divino, Diga, Senhor, o que é agora? Tens mais sete dias para concluir tua missão, nem uma manhã a mais, nem duas horas, nem nada, em sete dias deverás estar em segurança no quarto planeta. O que Ele diz, o que Ele diz, perguntou curiosa a esposa, é detestável saber que os dados estão sendo jogados e não poder saber qual sua sorte, mas mais detestável é quando alguém lhe faz perguntas insistentes aos cutucões, como se a pressão do dedo indicador sobre a pele fosse capaz de extrair as respostas. Ele diz que nós estamos ferrados, nós não, que a qualquer momento podemos desistir dos animais e nos mandar para Marte, para isso temos a arca, mas as outras espécies não estão em boa situação. Por quê, e ele repetiu o prazo que tinham, como a voz dissera pouco antes, os sete dias, os mesmos sete dias, Noah não chegou a fazer ele próprio essa comparação, que o dono da voz uma vez tivera para fazer do Nada aquilo tudo que eles tinham diante dos olhos e além. O capitão convocou a tripulação para discutir a nova informação, E agora, concluiu com um questionamento. Agora vamos correr para pegar a maior quantidade possível de casais, e quando chegar o momento nós partimos com quem já tivermos recolhido, Mateus e suas palavras jovens e sensatas. Faltava um dia de viagem à vela para que dessem à costa africana ocidental, mas não podiam mais depender do vento, tinham de acelerar a previsão de três meses para uma semana. Liguemos, então, o motor a hidrogênio, sugeriu o calculista Lucas, e, sugestão aceita, velas recolhidas, casca metálica fechada, em trinta minutos fizeram o percurso que de outra forma teria durado no mínimo vinte horas.

Leões, leopardos, chitas e hienas, mais difícil era convencê-los a entrar na arca que separá-los de girafas, zebras, gnus e antílopes, não adiantava explicar-lhes a nobreza do objetivo, a salvação das espécies e tal, que, em indo, estariam salvos, e, principalmente, que melhor seria esperar a reprodução daquelas caças no novo planeta para saborearem um banquete mais faustoso. Incrível como os seres não pensantes, os pensantes com certa freqüência também, se importam tão-somente com o aqui e o agora, quando o amanhã e o depois de amanhã conflitam com o imediato, como nos arrependemos de não termos entrado em algumas arcas passadas na nossa vida. Teimoso como uma mula, dizem, mas Noah descobriu da forma mais difícil que muitas espécies caberiam nessa comparação, as mulas, coitadas, é que ganham a fama, e delas já havia sem tanto esforço o casal dentro da embarcação.

Atravessaram a África por sobre o continente, se iam a hidrogênio já não era necessário o desvio pelo sul da África do Sul, e logo chegaram ao Oriente Médio, de onde recolheram camelos e dromedários, estes menos se importariam de morar em um planeta sem água. Tem água em Marte, corrigiu a voz, não são os canais que um dia os homens disseram ver, mas tem, e não é pouca. Salgada ou doce, era importante saber, um atum não sobreviveria no rio, no mar um pirarucu murcharia como um maracujá, De uma e de outra, lá é como cá. E cabem os golfinhos que Ester pretende levar? Cabem os golfinhos, cabe também um casal de cada espécie de animal aquático. Mas como, quis saber Noah, prevendo que por uma segunda vez Deus o mandaria que se virasse. Uma pescaria não estava em seus planos, não dispunham de tempo suficiente para fisgar marlins, baiacus, tucunarés, peixes de mar e de rio, peixes abissais, de toca e de superfície, se pescassem um terceiro da mesma espécie teriam de devolvê-lo à própria sorte, um triângulo amoroso seria problema bastante difícil de contornar, e, além do mais, onde arranjariam espaço na arca para toda essa população, se mal transportados já seriam os golfinhos, talvez pudessem levar um par de enguias que servissem de recurso renovável e multiplicável de eletricidade para a hidrólise da água em hidrogênio e oxigênio. Perdoe-me, Senhor, mas isso é impossível, a Ester já me custa convencer a deixar de lado os golfinhos, que levemos, portanto, esse casal apenas. Seja feita a tua vontade, homem, assim na Terra como em Marte. Minha qual nada, da minha esposa, que por mim nem os golfinhos levaríamos, o trabalho a mais que nos darão para capturá-los não compensa a salvação da espécie, para o que Deus respondeu, a contragosto de Noah, a satisfação de Ester, A vontade do homem é a vontade da mulher atribuída a si, desde a opção de Eva pela maçã em vez do éden. Sobrevoavam Israel, a cidade de Belém, mais especificamente, quando esse diálogo se deu, e da voz se fez um quase choro, empastando o que antes era grave e rouco, ao se recordar do tempo em que seu filho ali vivia, se para uma entidade onipresente a noção de tempo faz algum sentido.

Os tigres da Índia, as renas da Rússia, os pandas da China, mas o momento mais tenso da travessia supra-asiática aconteceu quando Gênesis 2.0 e sua tripulação passavam por sobre o Tibet. Foi Mateus o primeiro a avistar a estranha criatura branca e peluda que andava com segurança às bordas dos penhascos himalaios, Pai, venha ver, gritou, a voz trêmula, se pela descarga de adrenalina ou pela puberdade, provavelmente uma composição dos dois, e não só o pai correu como também a mãe e os irmãos, O que houve, perguntaram todos em uníssono. Vejam, é o pé grande! O pé grande, pois sim, aquilo era um urso, grande decerto, mas ainda assim um urso como tantos outros, como, inclusive, os casais que já podiam ser encontrados dentro da arca, brancos, pardos, era o que faltava, chamar-lhes Mateus à atenção por um animal mitológico, chegassem à América e o filho mais novo juraria ter visto a anaconda de vinte metros, ou na Escócia o monstro do Lago Ness. Os animais reais já davam trabalho suficiente, não precisavam que um adolescente imaginasse novas espécies da carochinha.

Gênesis 2.0 voava em céu de brigadeiro, a uma velocidade de oitocentos quilômetros por hora, sobre o Oceano Índico Norte, por cima da linha imaginária do Equador, a noventa e cinco graus leste de longitude, com rumo fixo em sul-sudeste, aproado à costa oeste da Austrália, quando o mar, vinte mil pés abaixo da nave, começou a se revoltar. Um tsunami, gritou Tiago, Sim, parece, mas pelas minhas contas ainda temos dois dias antes da chuva de meteoros, respondeu o pai. Desculpa-me, era a voz, Noah já não mais a confundia com Jonas, este asteróide escapuliu sem querer. E por pouco não nos acertou, reclamou o chefe de família, desdenhando daquele Deus que não demonstrava tanta ciência quanto pretendia, tanto poder quanto imaginava, tanta presença quanto julgava. Do alto, Noah, Ester e seus filhos acompanharam quando as ondas se formaram e destruíram pouco a pouco a Indonésia, a Tailândia, a Índia e o Sri Lanka, versão índica do que poderia estar acontecendo a qualquer momento ao longo dos trezentos e sessenta graus do planeta, inundando, como a Ásia, também a América, Europa, África e Oceania, para estes não precisaria de tanta água, milhares de atóis habitados por gente que espera que o dia de se afogar chegue depois da morte por causas naturais, e quem há de dizer que não é uma causa natural a onda gigante. Vamos para Marte, pediu Mateus aos soluços, Vamos sim, meu filho, mas não sem os cangurus e ornitorrincos, e já estamos próximos de pegá-los. E os golfinhos, acrescentou Ester, e diante deste comentário chiou o marido, Eu avisei para não deixarmos a pesca para a última hora, agora vai ser mais complicado.

Subiram os golfinhos, tiveram de subi-los, ou Ester se queixaria por toda a viagem, e Noah bem sabia como a esposa podia ser inquieta quando se punha a reclamar, um cadinho a misturar de forma desenfreada todos os problemas dos últimos trinta anos, como se fosse tudo da mesma ordem de grandeza. Sim, querida, o marido assentiu, ou se lhe acabaria a audição até Marte, não iam como quem vai e volta de bicicleta à padaria. Noah desceu a arca no mar de Timor, a meio caminho entre a ilha indonésia e a costa norte da Austrália. A casca metálica foi abaixada, os mastros expostos à luz do sol e as velas panejaram até que Noah achasse a melhor posição. Com o que pegariam os golfinhos, ninguém previra este detalhe, um puçá improvisado, grande o suficiente para caber um casal dos cetáceos, mas mesmo depois de aprisionados, graças à arte de Ester no preparo da rede e à maestria de Lucas, surpresa para todos, talvez até para si próprio, em seu manuseio, ninguém ainda tinha pensado na alimentação dos pobres golfinhos, o que haveriam eles de comer em um planeta sem peixes e moluscos e crustáceos, condenados estavam à morte por inanição, se antes não os matassem os eletrochoques. Como fizera Noé com os polvos e as lulas e os caranguejos, como fizera para recolher dos ursos árticos aos pingüins antárticos, e pô-los junto aos gatos do Saara, em meio a tais pensamentos hereges Noah aproou o rumo à cidade de Darwin, porto mais próximo, onde podiam se abastecer de comida, para que não fosse necessário carnear os animais a salvo dos asteróides mas não dos estômagos famintos, de combustível e dos últimos tripulantes, ainda não se tinham esquecido dos cangurus e ornitorrincos.

Não tiveram tempo de escolher. Cada filho foi para um lado à procura dos animais, não seria fácil encontrá-las, espécies silvestres, no meio de uma cidade cosmopolita, mas Tiago deu a sorte de tomar o rumo do zoológico, Achei, gritou pelo walkie-talkie, Como não pensamos nisso antes, no Brasil mesmo já teríamos enchido a arca. Não era o ideal, animais de zoológico não são como os da vida selvagem, como se sairão fora das grades é sempre uma incógnita. A cada par de ouvidos chegava simultaneamente o Achei de Tiago, fundo sonoro para o que cada par de olhos via no firmamento, rochas flamejantes cruzando o céu, vindo de todos os lados, indo para todos os lados, com destino ao solo, cada uma poderia por si só destruir a Terra, do que não seriam capazes todas juntas. Corra, Tiago, esqueça os animais, vamos embora, gritou a mãe, mas o filho teve uma idéia melhor, pôs dois coalas debaixo da blusa, pegou um ornitorrinco pelo bico, outro pela cauda, montou no dorso de um canguru e, aos saltos, mandou-se para a arca mais rápido do que se fosse sozinho a pé, a fêmea veio atrás, temendo que aquele humano fosse levar seu marido para um harém de cangurus, como podem os animais ser assim tão ciumentos, e como pôde o ciúme salvar-lhe a vida, levando-a para sua condução para fora do planeta ameaçado.

A arca cheia, a família completa na cabine, os animais acondicionados ao longo e ao largo da nave, Noah fechou a casca prateada, ligou o motor a hidrogênio, e em pouco tempo estavam sobrevoando a costa leste da Austrália, o mar tinto de arco-íris pelos corais, que pena será uma cratera no lugar dessa maravilha da natureza, por anos e séculos e milênios esculpida pelas mãos da mesma criatura que agora ordenava sua destruição, como um Michelangelo a dinamitar a capela Sistina, tempos antes de Alfred Nobel inventar a dinamite. Sendo a reta a menor distância entre dois pontos, Noah não podia pegá-la, ou corria o risco de dar com a embarcação em um asteróide, tantos eram os que então começaram a cair, um pela esquerda, outro pela direita, uma tempestade sólida, e manobras a mil e duzentos quilômetros por hora não eram exatamente com o que ele estivesse acostumado. Pelo menos não tem sinal vermelho, pensou, e mais uma vez se viu enganado, Diabo, ato falho, quando estava para cruzar a rota de migração das gaivotas do Pacífico, acelerou, antes que o vértice de pássaros chegasse à arca, pouco se lhe dava se alguns fossem morrer com o choque, o perigo maior é entrarem na turbina e quebrarem algum componente do motor, freou, mas parar não era possível, pois parados a tendência é que despencassem em terra como mais um daqueles asteróides. Abaixou a altitude, precisavam ganhar velocidade novamente para deixar a atmosfera para trás.

Olhe, papai, voltamos para a América do Sul, observou Mateus, para quem a viagem mais valia em estudos de geografia que mil livros de oitava série. A uma velocidade daquelas mal puderam ver o Chile, fino como uma bengala, com o cajado voltado para o sul. Minutos mais tarde passavam por sobre a cidade de onde tinham saído, Nosso bairro, nossa casa, tudo está destruído, soluçou Ester, no momento em que uma rocha do espaço caiu no meio da rua e a onda de choque fez ruir casas e prédios e hospitais, bem como antes viram o tsunami fazer na Ásia, É o edifício do seu trabalho, Noah, veja como eles correm. Noah identificou Jonas, definitivamente não era ele o dono da voz, por mais xingamentos que tivesse recebido, quanta injustiça, Noah já o sabia, mas agora era certo, viu o chefe, e pôde jurar, por leitura labial, ainda que nunca tivesse aprendido a técnica e a distância não permitisse sequer ao maior experto, que ele o chamava Noah, Noah, aprendera o nome do secretário executivo, talvez o promovesse, lhe aumentasse o salário, se ganhasse uma carona na arca espacial, nessas horas os safados oferecem propinas e cargos e vantagens, mas de nada valeria a promoção e o salário se nem planeta haveria mais. Noah aproveitou o vôo rasante para ganhar impulso e velocidade, sem os quais não conseguiria vencer a atmosfera, deu um último adeus para o povo em desespero e subiu, subiu, até se transformar em um ponto, até nem mesmo ponto se ver.

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A história acaba quando Gênesis 2.0 entra no espaço sideral, deixando para trás a atmosfera terrestre, porque o narrador, não sendo Deus, é onisciente apenas na Terra e no que diz respeito à família de Noah, não se teria resposta para o que acontecia na França quando Noah estava na África, e por que, aliás, alguém haveria de perguntá-lo, que relevância teria para o andamento do relato, mas há quem precise de detalhes, a cor dos olhos, a cor da calça, não faz diferença se preta ou verde fosforescente. Da mesma forma não se há de perguntar o que se deu em Marte, se lá chegaram de acordo ou se um atalho os levou à terceira lua de Saturno. Fato é que em Terra nunca mais se ouviu falar de pererecas, lagartixas, pingüins e seres humanos.

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