Sholovat Yrkyalum era funcionária da Corporação Malkin, o grupo responsável pela produção de quase metade dos artigos consumidos na Galáxia, desde alimentos sapientes (moda entre os habitantes dos braços espirais galácticos) a implantes oníricos — usados, principalmente, pelos Farinads (“sonhos e pesadelos, a seu gosto!”, dizia a propaganda na OminiRede, vendidos para uma raça que há 1213 gerações perdera a capacidade de sonhar). Sendo telepata, foi colocada no setor encarregado de produzir e monitorar software psíquico inteligente, que compunha a própria base da OmniRede. Era tarefa penosa, mas pagava bem e dava status.
Naquela vez, após cinqüenta e dois turnos seguidos, Sholovat conseguiu uma folga. Transferiu sua mente, que ficava na OmniRede enquanto ela trabalhava, e baixou-a para um dos trinta e dois corpos que utilizava. Escolheu o mais adequado para descansar.
O cansaço atingiu-a impiedosamente e ela adormeceu contra a vontade. Ao despertar, sentia-se revigorada. Como ainda lhe restava três fases-de-tempo antes de voltar ao serviço, decidiu visitar sua casa. Sentia saudades do lar e, acima de tudo, de seus quinhentos e doze filhos. Sholovat jogou sua mente de volta à OmniRede e buscou outro corpo, um que havia deixado preparado em casa. O modo mais prático era esse: pela transferência mental chegou a sua residência quase instantaneamente. Se tivesse de usar uma espaçonave, enfrentaria uma viagem de, pelo menos, uma centena de fases-de-tempo. Numa galáxia dividida em castas, tinha pena das multidões de párias, incapazes de acessar a OmniRede, rejeitados por todos os outros grupos e condenados a viajar apenas fisicamente pelo universo.
Ela morava em Plactos-Zero-X, um dos trinta e dois mundos artificiais orbitando a estrela também artificial de Plondaxos-IX na área mais povoada da Galáxia. Logo, abriu os olhos em sua cama, no cubo de habitação que dividia com os filhos e outras vinte famílias. Era um corpo adorável aquele. Seu favorito. Uma obra-prima da engenharia genética. A sensação de estar nele era quase orgásmica. Se pudesse, passaria a vida toda ali dentro.
Cumprimentou um dos robôs que lhe servia de escravo. Fazia tempo que desistira dos servos orgânicos. Caros, frágeis e desobedientes. Achava uma estupidez a insistência daqueles liberais do Núcleo Galáctico nesse assunto.
Caminhou pela casa e foi até o quarto de Kyrlycrux, seu filho número 419. Seu preferido também. Ansiava muito abraçar aquela criança.
Mas logo, após cruzar a porta do quarto (feita de gelatina sapiente esverdeada, que se encolheu para dentro das paredes, deixando-a passar), pisou em algo mole e cheio de sangue. Muitas daquelas pequenas coisas estavam espalhadas pelo recinto. Contou mais de cinqüenta criaturas, algumas com braços ou pernas arrancados, diversas sem a cabeça e, em várias outras, todas essas partes estavam faltando. E havia muito sangue pelo chão e paredes, aquele sangue avermelhado fedendo a ferro. Um dos seres ainda estava respirando. Sem as pernas e braços e com um olho esmagado, ele gritava naquela língua estranha e incômoda. Numa mistura de pena e raiva, ela o esmagou com um pé.
Foi até Kyrlycrux. Sentou-se na cama e questionou com ternura o filho:
— Meu amor, por que você faz essas coisas com seus brinquedos? São caros, sabia?
A criança olhou para ela, com aqueles olhos grandes, redondos e alaranjados, que Sholovat tanto adorava, e apenas abraçou-a sem saber responder.
Nem a mãe sabia. Conversara com psicólogos, mas ninguém conseguiu explicar porque toda aquela hostilidade de Kyrlycrux. A ausência da mãe, querer chamar atenção... Uma centena de teorias e nenhuma resposta. Num povo pacífico, que abandonara o crime, a violência e as guerras, como era o dela, as atitudes do filho pareciam inexplicáveis.
A babá-robô veio e desculpou-se por ter deixado o pequeno fazer aquela bagunça no quarto. Sholovat vociferou que o autômato mandasse alguém limpar a sujeira. Decidiu que, pela manhã, a babá seria desmontada e vendida para a reciclagem. “O universo é um lugar injusto”, pensou “mesmo escravos robóticos não são perfeitos”.
Continuou abraçada a Kyrlycrux, enquanto cantalorava uma antiga música de ninar. Passou os olhos pelo quarto mais uma vez, para todas aquelas coisinhas nojentas sem braços, pernas ou cabeça.
Ia parar de gastar dinheiro à toa – jurou para si mesma. Nunca mais compraria humanos para Kyrlycrux brincar.
FIM
Dedicado a Davi Mello
10 comentários:
hmmm... espero não ser comprado. Adoro crianças, mas essa me parece meio psicótica...rsrs.
Gostei do conto. Muito bom.
E tem muito mais de onde este veio, Tibor. A Rita é uma das escritoras mais produtivas que eu conheço...
Nussa, que mêda! É por essa e outras que evito crianças hehehe
Gostei do conto e estou mesmo curiosa para ver mais da safra da escritora!
Caracas... O conto dessa moça tem mesmo qualidade e me lembra em estilo alguns contos que vi faz tempo nas versões estadunidenses da Isaac Asimov Magazine. Porque ela não foi ainda adsorvida aos nossos domínios?
Vai lá, Romeu, mostra mais pra gente o que essa prolífica mente tem pra oferecer...
Rita! que legal ver você aqui! E com uma ótima FC criativa e terrível. Parabéns.
beijão,
Mhel
Crianças e seus humanos... ah, o velho dilema!!
Muito bom, Rita! Adorei o conto, me fez lembrar da minha infância!
Parabéns, sou seu fã agora!
A Rita é ótima. Tenho outros três contos dela na mão, já vou avisando.
E quando sair o livro de contos dela, faço questão de resenhar.
Ah, Ricardo,
Vou convidar a Rita para participar da comuna de FC. Já fiz isso com a Mila F.
A resposta para os seres no final conto é surpreendente.
Muito bom.
Thanks for sharing.
Muito dez, gostei muito desse conto. Curto e direto!
Postar um comentário