Naquele bar ninguém o conhecia, por isso o copeiro o chamou de você-aí-o-que-vai-querer. Julgou que também não era um mau nome. Aos quarenta e três anos já não ligava muito para nomes, bastava esse mesmo, desde que o garoto lhe trouxesse uma garrafa com água. Por ora era tudo o que queria. Em breve a coisa mudaria. Precisava apenas encontrar o que havia vindo procurar ali. Era paciente. Sempre encontrava o que procurava. Podia demorar, mas Fred tinha tempo. Considerava no momento que estava de férias. Procurava por inspiração.
Durante duas horas ficou sentado próximo ao canto do balcão. Olhava ao redor, para as mesas de lata enferrujadas, cobertas com imundas toalhas de plástico xadrez, onde poucas pessoas, em sua maioria casais e grupos de garotos que não tinham dinheiro para sair do bairro, tomavam cerveja e cachaça. Ambas mornas. As roupas de todos ali eram simples; gastas, batidas, mas claramente eram as melhores roupas que eles tinham. O bar era movimentado. Três meninas circulavam entre as mesas. Fred observou a maquiagem, as roupas e o andar de mulheres de vida dura nelas. Uma o encarou, oferecendo a carne e o que mais ele quisesse pagar. Um olhar bastou para que ela entendesse que ele sabia sua idade. E que não estava interessado. A garota mudou de alvo e foi sentar em uma outra mesa, onde um velho decrépito não pensou meia vez antes de aceitar a companhia.
Logo na entrada do bar havia uma placa com sete buracos de bala, mas ainda com o tradicional Deus é Fiel bem visível, informando a fé do proprietário. Fred sorriu amargamente pensando na frase. Olhou para o dono do bar que estava contando algumas moedas no caixa, usando uma bíblia surrada para apoiar o dinheiro. Balançou a cabeça e desviou o foco para a os bêbados que se apoiavam no balcão ou estavam espalhados pelas mesas. Alguns comiam ovos coloridos ou torresmos peludos. Os mais abastados mastigavam uma porção de mortadela em cubinhos ou batatas-fritas. Nenhum deles lhe interessava. Pelo menos, não naquele momento. Mas o futuro era incerto e estava em aberto.
O rapaz que o atendeu havia reparado que sempre que Fred completava o copo com a água, mexia o líquido com o indicador e imediatamente a cor da água ficava turva, passando para um tom de ouro-velho. Algo amarronzado que o fazia pensar em uísque. E pela cor, parecia ser um uísque dos bons. Mas ao olhar atentamente para Fred, mais precisamente para o rosto coberto de cicatrizes, achou que, em nome do bom-senso e acima de tudo de sua vida, deveria deixar o fato de lado. Não era a primeira vez que não via algo ali. Nem queria que fosse a última. Voltou a agitar freneticamente o pano encardido, mais espalhando a água dos pratos do que os secando.
Ele era bem conhecido na área, tanto pela violência, como pela ocupação. Traficante graúdo, do tipo que fazia questão que todos soubessem quem era. E principalmente o que fazia. Propaganda era a alma do negócio, principalmente no tráfico. O bar esvaziou rápido. Fred permaneceu no mesmo lugar, tomando seu uísque. Em poucos minutos os cinco, mais o dono do bar e o copeiro, olhavam intrigados para ele.
– O bar fechou – gritou outro rapaz, que tinha um grande coração vermelho, com a frase “mamãe eu te amo”, tatuado no enorme bíceps.
Se Mamãe-eu-te-amo fosse esperto, saberia que aquilo não era um bom sinal. Qualquer pessoa normal saberia que aquele não era um bom sinal. Principalmente ali, no Capão Redondo, um bairro de gente acostumada a uma boa briga. Ali havia gente de todo o canto do país, que precisava provar no dia a dia que merecia seu espaço. Mas ele havia nascido e crescido ali, naquele bairro. Boa parte de seus dentes haviam sido perdidos em boas brigas. Havia duas coisas que se podia dizer sobre ele: uma, era que decididamente não era esperto; a outra, era que gostava de brigar.
Todos na mesa riram. Sabiam que o sujeito não gostava de desaforos. Seu tamanho já indicava isso claramente. Nenhum sujeito com aquele perfil aceitava bem um desaforo. Ao menos não um tão direto, na frente de amigos. A língua de Fred o levava para um mau caminho. Isso era habitual.
– Cê tá me tirando, ô babaca?
– Na verdade estou usando você de inspiração. Um salmo, quem sabe? Algo como “No Capão Redondo, lembrei de mamãe e chorei”, o que acha?
– Cê tá sacando que vai pro inferno, seu filho-da-puta? – gritou, apontando uma Walther PPK para a cicatriz de estimação de Fred. – Vô deixa essa tua cara ainda mais bonita, com um puta buraco bem no meio dela.
Fred não se importou com aquela explosão de ódio. Respeitava a violência. Também havia crescido em um bairro difícil. Durante toda a infância havia sido o garoto mais bonito do bairro, coisa que atraía além da inveja, muitas surras. Até que aprender a revidar já havia ganhado muitas cicatrizes. Elas o haviam deixado bem mais feio, porém também o deixaram com muito mais experiência. Virou-se lentamente no banco, demonstrando que não tinha medo e, ao menos naquele momento, nenhuma intenção de revidar. Ficou de frente para Mamãe-eu-te-amo, de braços abertos e com as mãos visíveis. Começou então a recitar um salmo à medida que o ia criando:
Mamãe-eu-te-amo baixou a pistola para o peito de Fred. Apontou e atirou. Certeiro. A mão dele desceu rapidamente para o ferimento. Um longo silêncio dominou o ambiente, até que depois de um tempo o sangue escorreu por entre os dedos e seus olhos se fecharam. Os cinco homens começaram a rir. Os braços de Fred escorregaram lentamente pelo seu corpo e ele foi se inclinando no banco. Quando os homens esperaram que o corpo tombasse, duas pistolas surgiram nas mãos dele. O movimento foi tão rápido que elas nem pareciam ter sido puxadas de dentro da camisa, mas que haviam surgido como mágica em suas mãos. As balas também foram rápidas.
Em menos de dois minutos o silêncio voltou ao lugar. Seis homens estavam baleados.
Um deles retornava ao seu banquinho e terminava seu uísque.
O dono do bar, depois de algum tempo, tomou coragem e saiu da cozinha. Havia desistido de esperar que a polícia aparecesse. Sabia que eles não viriam por pelo menos uma hora. A vizinhança por no mínimo duas. Era melhor sair do que ser acuado ali, onde não tinha para onde tentar correr. O copeiro resolveu que não era corajoso a esse ponto.
Passo a passo o homem se aproximou do balcão. Um olho apontava na direção de Fred, o outro no caminho que levava da ponta do balcão onde ele estava para a rua. A cabeça analisava o que aconteceria saísse correndo naquele instante. Não tinha certeza se seria alvejado antes de dar um passo ou se conseguiria dar ao menos dois.
Tateou os bolsos do casaco, até encontrar um maço de cigarros. Estava amassado, com sangue, e um belo buraco de bala no meio. Olhou para ele com desânimo. Rapidamente o dono do bar estendeu um dos seus para ele, dando três passos trôpegos. Fred acendeu e tragou profundamente, agradecendo com um aceno de cabeça. Os olhos do homem vasculhavam os buracos na camisa de Fred, procurando pela pele abaixo deles. Ele se ergueu e o homem desviou os olhos com medo. Eles caíram sobre os corpos espalhados pelo chão do bar. Então ele se deu conta novamente do que ocorrera ali. Tudo parecia irreal.
Quando Fred havia deixado o bar havia alguns minutos, o copeiro finalmente saiu da cozinha. O garoto, ao ver os corpos, começou fazer o sinal da cruz, mas o dono do bar lhe deu um safanão, fazendo que parasse. Não era apropriado.
Nenhum comentário:
Postar um comentário