30.9.08

O Messias Decidido – I – Prelúdio



Uma treta em Capão Redondo por Richard Diegues


Não gostava do próprio nome. Nem mesmo se lembrava dele. Até os vinte e cinco anos ainda tinha recordações; um nome apenas. Depois, teve vários. Gostava de ser chamado de Fred. E os que o conheciam sabiamente esqueceram seu nome inteiro e passaram a chamá-lo assim, apenas pelo diminutivo.


Naquele bar ninguém o conhecia, por isso o copeiro o chamou de você-aí-o-que-vai-querer. Julgou que também não era um mau nome. Aos quarenta e três anos já não ligava muito para nomes, bastava esse mesmo, desde que o garoto lhe trouxesse uma garrafa com água. Por ora era tudo o que queria. Em breve a coisa mudaria. Precisava apenas encontrar o que havia vindo procurar ali. Era paciente. Sempre encontrava o que procurava. Podia demorar, mas Fred tinha tempo. Considerava no momento que estava de férias. Procurava por inspiração.


Durante duas horas ficou sentado próximo ao canto do balcão. Olhava ao redor, para as mesas de lata enferrujadas, cobertas com imundas toalhas de plástico xadrez, onde poucas pessoas, em sua maioria casais e grupos de garotos que não tinham dinheiro para sair do bairro, tomavam cerveja e cachaça. Ambas mornas. As roupas de todos ali eram simples; gastas, batidas, mas claramente eram as melhores roupas que eles tinham. O bar era movimentado. Três meninas circulavam entre as mesas. Fred observou a maquiagem, as roupas e o andar de mulheres de vida dura nelas. Uma o encarou, oferecendo a carne e o que mais ele quisesse pagar. Um olhar bastou para que ela entendesse que ele sabia sua idade. E que não estava interessado. A garota mudou de alvo e foi sentar em uma outra mesa, onde um velho decrépito não pensou meia vez antes de aceitar a companhia.


Logo na entrada do bar havia uma placa com sete buracos de bala, mas ainda com o tradicional Deus é Fiel bem visível, informando a fé do proprietário. Fred sorriu amargamente pensando na frase. Olhou para o dono do bar que estava contando algumas moedas no caixa, usando uma bíblia surrada para apoiar o dinheiro. Balançou a cabeça e desviou o foco para a os bêbados que se apoiavam no balcão ou estavam espalhados pelas mesas. Alguns comiam ovos coloridos ou torresmos peludos. Os mais abastados mastigavam uma porção de mortadela em cubinhos ou batatas-fritas. Nenhum deles lhe interessava. Pelo menos, não naquele momento. Mas o futuro era incerto e estava em aberto.


Observou com desprezo os cartazes colados uns sobre os outros nas paredes, onde mulheres seminuas tomavam cervejas quase congeladas, como se fosse possível manter aqueles corpos em forma mesmo enchendo a cara. Viu ainda uma meia dúzia de baratas, usando os cartazes como disfarces para circularem sem serem notadas. Ou quando notadas, imediatamente ignoradas. Tinha muito para ver ali, mas ainda não havia achado o que queria, por isso continuava sentado, apenas bebendo.


O rapaz que o atendeu havia reparado que sempre que Fred completava o copo com a água, mexia o líquido com o indicador e imediatamente a cor da água ficava turva, passando para um tom de ouro-velho. Algo amarronzado que o fazia pensar em uísque. E pela cor, parecia ser um uísque dos bons. Mas ao olhar atentamente para Fred, mais precisamente para o rosto coberto de cicatrizes, achou que, em nome do bom-senso e acima de tudo de sua vida, deveria deixar o fato de lado. Não era a primeira vez que não via algo ali. Nem queria que fosse a última. Voltou a agitar freneticamente o pano encardido, mais espalhando a água dos pratos do que os secando.



Quando já estava cansado de ficar ali e pensava em ir embora, enfim encontrou o que procurava. Os cantos da sua boca se ergueram, lembrando vagamente um sorriso. Vagamente apenas. Alguns homens haviam entrado no boteco. Na verdade nenhum era especificamente quem ele procurava, mas sim o tipo de homens que procurava: os homens-maus. Eles entraram no boteco falando alto. Expulsaram um casal de uma mesa nos fundos, que nem chegou a reclamar. O copeiro teve que mudar a estação do rádio, logo depois do pedido de um deles, que veio acompanhado de um safanão. Fred não se importou com o rádio, a música era ruim até para ele que não tinha um gosto específico. Logo os sujeitos passaram a incomodar as mulheres que ainda restavam no bar, afrontando também os homens que as acompanhavam. Pela postura dos homens, que rapidamente esvaziavam o bar, Fred confirmou que estava certo: eram o tipo do qual ele gostava.


O dono da casa reclamou timidamente com os sujeitos, quase em um protesto mudo. Quando ele citou uma passagem da bíblia para eles, duas pistolas surgiram sobre o tampo da mesa, junto com uma boa quantidade de dinheiro. A palavra divina evaporou no mesmo instante.


– O bar tá fechado! Nóis vâmo comemorá o pó que chegô hoje – gritou o homem que havia sacado as armas e o dinheiro, retirando também um papelote de cocaína do bolso, estirando cinco grossas carreiras, uma para cada um deles.


Ele era bem conhecido na área, tanto pela violência, como pela ocupação. Traficante graúdo, do tipo que fazia questão que todos soubessem quem era. E principalmente o que fazia. Propaganda era a alma do negócio, principalmente no tráfico. O bar esvaziou rápido. Fred permaneceu no mesmo lugar, tomando seu uísque. Em poucos minutos os cinco, mais o dono do bar e o copeiro, olhavam intrigados para ele.


– O bar fechou – gritou outro rapaz, que tinha um grande coração vermelho, com a frase “mamãe eu te amo”, tatuado no enorme bíceps.


Fred havia acabado de apanhar com a língua a derradeira gota de uísque do copo. Tornou a enchê-lo com água e mexeu o líquido com o indicador. Tinha um novo uísque a sua frente. Água para uísque, era melhor do que para vinho. Descobriu isso quando mal havia passado dos vinte anos. E o melhor era que parecia um legítimo scotch. A ressaca sempre era modesta. E a língua amortecia de uma forma gostosa. Ficava amortecida e afiada.


– Ainda não terminei aqui – respondeu, com um tom de voz que seria muito útil na falta de cubos de gelo.


Se Mamãe-eu-te-amo fosse esperto, saberia que aquilo não era um bom sinal. Qualquer pessoa normal saberia que aquele não era um bom sinal. Principalmente ali, no Capão Redondo, um bairro de gente acostumada a uma boa briga. Ali havia gente de todo o canto do país, que precisava provar no dia a dia que merecia seu espaço. Mas ele havia nascido e crescido ali, naquele bairro. Boa parte de seus dentes haviam sido perdidos em boas brigas. Havia duas coisas que se podia dizer sobre ele: uma, era que decididamente não era esperto; a outra, era que gostava de brigar.


– Acho que o velho não ouviu direito a gente. Vai lá e explica pra ele o que eu disse – falou o que parecia ser o líder, instigando Mamãe-eu-te-amo.


Todos na mesa riram. Sabiam que o sujeito não gostava de desaforos. Seu tamanho já indicava isso claramente. Nenhum sujeito com aquele perfil aceitava bem um desaforo. Ao menos não um tão direto, na frente de amigos. A língua de Fred o levava para um mau caminho. Isso era habitual.


O copeiro descobriu que precisava, com urgência, ajudar o dono do bar na cozinha. Não importava em quê. Antes que o grandalhão chegasse perto do balcão, o garoto já havia desaparecido. No salão ficaram apenas Fred e os cinco traficantes. Até mesmo as baratas haviam sumido, usando o hábil instinto de preservação da espécie.


– Belo truque, esse da cachaça – falou Mamãe-eu-te-amo, coçando a cabeça enquanto apontava o copo na frente de Fred.


– Você iria gostar mesmo é de quando eu ando em cima da água. Esse sempre me assombra, imagine então pra quem está vendo. Quem sabe um dia eu te mostro?


– Cê tá me tirando, ô babaca?


O olhar do brutamonte sempre foi suficiente para fazer com que a maioria das pessoas baixasse os olhos e calasse a boca. Os que faziam isso rapidamente tinham a chance de balbuciar desculpas, que de vez em quando eram aceitas. Os que demoravam um pouco mais tentavam correr, se ainda pudessem tentar. Era a primeira vez que nada disso acontecia.


– Na verdade estou usando você de inspiração. Um salmo, quem sabe? Algo como “No Capão Redondo, lembrei de mamãe e chorei”, o que acha?


Os outros quatro pararam de rir. Quando Mamãe-eu-te-amo ficava nervoso, costumava usar os punhos para extravasar. Quando estava muito nervoso usava uma faca, que sempre trazia na cintura, que primorosamente era mantida polida e cega. Quando estava muito nervoso, mas com medo, usava sua pistola. E naquele momento a arma estava em sua mão. A cada minuto parecia mais que Fred se encontrava em um carro sem freios, e que a ladeira se inclinava rapidamente.


– Cê tá sacando que vai pro inferno, seu filho-da-puta? – gritou, apontando uma Walther PPK para a cicatriz de estimação de Fred. – Vô deixa essa tua cara ainda mais bonita, com um puta buraco bem no meio dela.


Fred não se importou com aquela explosão de ódio. Respeitava a violência. Também havia crescido em um bairro difícil. Durante toda a infância havia sido o garoto mais bonito do bairro, coisa que atraía além da inveja, muitas surras. Até que aprender a revidar já havia ganhado muitas cicatrizes. Elas o haviam deixado bem mais feio, porém também o deixaram com muito mais experiência. Virou-se lentamente no banco, demonstrando que não tinha medo e, ao menos naquele momento, nenhuma intenção de revidar. Ficou de frente para Mamãe-eu-te-amo, de braços abertos e com as mãos visíveis. Começou então a recitar um salmo à medida que o ia criando:


À margem da lei em um bar, sentamos e bebemos, ao nos lembrarmos de São Paulo. Nos bares desta cidade, penduramos as nossas armas. E aqui os que nos fazem cativos em nossas próprias casas, um dia irão pedir que cantemos uma balada de perdão. E estes mesmos que nos oprimem pedirão que nos passemos por felizes: "Cantem uma balada para São Paulo", pedirão. Como podemos cantar em uma terra que tem ficado a cada dia mais estranha? Se me esquecer de como era São Paulo antes, que me arranquem os testículos pela boca. Que a bebida não me dê mais prazer, apenas ressaca. É isso o que eu responderia se me dissessem para esquecer da velha São Paulo em troca da que vejo agora. Contra os filhos de meretrizes que empesteiam esta cidade, deixo um bom recado, que Deus têm se esquecido de dar: "Acabai, acabai com eles, até os fundilhos colarem no chão!". Filhos de um demônio coxo são todos aqueles que trazem o mal a esta metrópole sofrida! Afortunado será aquele que tomar e esmagar os miolos desses filhos que desabonam minha nova terra santa.


Os outros bandidos se aproximaram. Fecharam uma roda em torno de Fred, e ele seguia recitando seu salmo. Muitas armas haviam aparecido. Pelo vão da porta da cozinha era possível ver os olhos arregalados do dono do bar. O garoto continuava como as baratas: sumido.


Mamãe-eu-te-amo baixou a pistola para o peito de Fred. Apontou e atirou. Certeiro. A mão dele desceu rapidamente para o ferimento. Um longo silêncio dominou o ambiente, até que depois de um tempo o sangue escorreu por entre os dedos e seus olhos se fecharam. Os cinco homens começaram a rir. Os braços de Fred escorregaram lentamente pelo seu corpo e ele foi se inclinando no banco. Quando os homens esperaram que o corpo tombasse, duas pistolas surgiram nas mãos dele. O movimento foi tão rápido que elas nem pareciam ter sido puxadas de dentro da camisa, mas que haviam surgido como mágica em suas mãos. As balas também foram rápidas.


A primeira atingiu a garganta de Mamãe-eu-te-amo. A segunda arrancou sua orelha. Os traficantes não se abalaram, miraram ao mesmo tempo para Fred e atiraram. O som dentro do bar foi ensurdecedor. A cada bala que o acertava, Fred retribuía com duas em cada um deles. Ninguém pensou em fugir, somente em atirar cada vez mais rápido.


Em menos de dois minutos o silêncio voltou ao lugar. Seis homens estavam baleados.


Um deles retornava ao seu banquinho e terminava seu uísque.


O dono do bar, depois de algum tempo, tomou coragem e saiu da cozinha. Havia desistido de esperar que a polícia aparecesse. Sabia que eles não viriam por pelo menos uma hora. A vizinhança por no mínimo duas. Era melhor sair do que ser acuado ali, onde não tinha para onde tentar correr. O copeiro resolveu que não era corajoso a esse ponto.


Passo a passo o homem se aproximou do balcão. Um olho apontava na direção de Fred, o outro no caminho que levava da ponta do balcão onde ele estava para a rua. A cabeça analisava o que aconteceria saísse correndo naquele instante. Não tinha certeza se seria alvejado antes de dar um passo ou se conseguiria dar ao menos dois.


– O que achou do meu salmo? – perguntou Fred, esfregando um dos ferimentos abertos no meio do peito, com uma expressão de dor enrugando todo seu rosto.


– Muito bom – respondeu o homem, gaguejando, com a voz tremendo mais que as próprias pernas. – Uma nova versão do salmo 137, não é? Acho que foi muito... eloqüente e atual.


– Sim, acho que “eloqüente” e “atual” são boas palavras para ele. Bom vocabulário, homem! Gosto dos homens de boa palavra.


Vendo que o homem fitava boquiaberto os buracos em seu peito, passou a mão sobre eles, esfregando com força. Eles fecharam, mas Fred fez questão de manter as cicatrizes. Tinha muitas e se orgulhava de cada uma delas.


– Um milagre – balbuciou o homem, tocando na Bíblia ao lado do caixa, mas recolhendo a mão quando Fred olhou para ela com um visível ar de reprovação.


– Um pequeno milagre para você. Melhor dos que os que estão aí no seu livreto.


Tateou os bolsos do casaco, até encontrar um maço de cigarros. Estava amassado, com sangue, e um belo buraco de bala no meio. Olhou para ele com desânimo. Rapidamente o dono do bar estendeu um dos seus para ele, dando três passos trôpegos. Fred acendeu e tragou profundamente, agradecendo com um aceno de cabeça. Os olhos do homem vasculhavam os buracos na camisa de Fred, procurando pela pele abaixo deles. Ele se ergueu e o homem desviou os olhos com medo. Eles caíram sobre os corpos espalhados pelo chão do bar. Então ele se deu conta novamente do que ocorrera ali. Tudo parecia irreal.


– O que faço com eles? – perguntou boquiaberto, vendo que o outro estava se dirigindo para a saída, passando por cima dos corpos estendidos.


– A polícia deve aparecer daqui a pouco. Eles cuidarão dos corpos – respondeu, dando uma cusparada no cadáver mais próximo. – Das almas eu já cuidei.


Fred virou-se, caminhando com firmeza. Quem olhasse rapidamente para ele, pensaria que nada daquilo havia ocorrido. Um olhar mais atento revelaria exatamente o contrário. Não só havia ocorrido, como já ocorrera muitas vezes antes, e ocorrerá muitas vezes no futuro.


Quando Fred havia deixado o bar havia alguns minutos, o copeiro finalmente saiu da cozinha. O garoto, ao ver os corpos, começou fazer o sinal da cruz, mas o dono do bar lhe deu um safanão, fazendo que parasse. Não era apropriado.


Fim.


Este texto foi originalmente publicado no site Novas Visões de São Paulo

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