Uma pulp fiction insular por Leonardo Siviotti
A borboleta, que surgiu do meio das flores e quase tocou o solo, mudou repentinamente a trajetória de seu vôo, indo pousar na palma da mão de Tobias. Embora surpreso, ele a recepcionou com cuidado. Erguendo um pouco o braço, a permitiu decolar novamente. A seguiu com os olhos por algum tempo, mas logo voltou sua atenção para as flores que beiravam a estreita trilha na qual caminhava. Estavam por todos os lados, em variadas espécies. Uma mais bela do que a outra.
Ainda não compreendia o que fazia num lugar como aquele. Sempre foi um homem urbano, acostumado a respirar o ar cada vez mais poluído do planeta. Estava surpreso de encontrar um ambiente tão limpo, sem fios ou instalações elétricas por perto enfeando a paisagem. Agora podia enxergar o verdadeiro tom azulado do céu sem qualquer sinal de poluição industrial. Bem diferente das cores cinza e vermelho que predominavam nas grandes cidades. Pensava não existir mais um azul como aquele. Só tinha visto paisagens semelhantes em antigas fotos e vídeos com imagens dos séculos XX e XXI..
O silêncio retumbante do lugar lhe provocava estranhamento; cresceu e viveu ouvindo o barulho de diversas máquinas. Como qualquer outra pessoa viva, tinha se desenvolvido em meio ao caos e a desordem, a pressa e a falta de tempo para contemplações como a que vinha fazendo pelo caminho. Não se lembrava de como tinha chegado até aquela trilha. Podia estar ali havia dias ou apenas alguns minutos. Sentia-se confuso. Sua memória falhava totalmente, desorientando-o por completo.
Caminhou por quase quinze minutos. As flores foram tudo que pôde enxergar durante esse período. Por mais estranho que podia parecer, sentia-se bem, fisicamente falando, com um vigor fora de seus padrões. Normalmente era alguém cansado, exaurido por qualquer atividade corporal um pouco mais exigente. Dessa vez, entretanto, estava firme em sua marcha. Fôlego pleno.
Avistou uma praia ao final da trilha. Belíssima. Em que lugar do mundo poderia estar? Não existiam mais lugares assim. Correu na direção do mar. Seus pés afundaram na areia fofa a cada passada até conseguir mergulhar.
Entrou sem tirar a roupa. Como um bebê, bateu seguidas vezes na água com as mãos. A temperatura estava perfeita, morna o suficiente para manter a sensação de conforto que vinha sentindo. Após afundar por completo na água e retornar à superfície, enxergou uma pessoa, entre as flores, vestida toda de branco. Percebeu ser um homem de cabelos brancos. Ficou maravilhado por conseguir enxergar com tanta nitidez daquela distância, pois era míope e estava sem os óculos. .
Saiu da água e caminhou na direção do sujeito. Embora sentisse vontade de ficar no mar por horas, precisava informar-se sobre sua localização. Aquele homem era, até o momento, o único que poderia lhe dizer algo a respeito.
Aproximou-se com um sorriso no rosto. Tentava ser simpático.
— Olá — disse. — Tudo bem com o senhor?
O homem o observou por um breve instante. Mantinha as mãos nos bolsos de sua calça.
— Tudo bem — respondeu sucintamente.
— Sei que parece estranho perguntar isso, mas sabe que lugar é esse?
— Gosta daqui?
— Gosto. É lindo. Pensei que não existissem mais lugares assim.
O homem de branco olhou ao seu redor. As flores, a praia e o céu azul foi o que viu.
— É realmente muito bonito.
— Bem diferente das cidades, não é? Sabe o nome daqui? A região em que estamos? — perguntou Tobias, ansioso pelas respostas.
Seu interlocutor permaneceu em silêncio por algum tempo.
— Como é possível estar aqui e não saber nada sobre o lugar? — questionou.
— Não sei! É esquisito, parece que despertei há menos de vinte minutos. Não lembro o que aconteceu antes.
— Por que viria para cá? O que veio fazer aqui? — o homem tornou a perguntar.
— Não tenho idéia. Sabe ou não o nome daqui?
Uma certa tensão surgiu entre eles. Tobias havia deixado de sorrir com a demora em ouvir uma resposta.
— Alguém como você só viria para cá se estivesse fugindo de algo, concorda?
— O que quer dizer?
— Tem certeza de que não sabe?
— Do que está falando? Quem é você? — perguntou Tobias, perdendo a paciência.
— Você não está aqui à toa. — afirmou o homem. — Sabe disso.
Deu as costas e começou a percorrer a trilha. Tobias andou em sua direção.
— Espere! Me diga onde estamos.
O homem parou por um segundo.
— Me diga você! — disse, e depois voltou a caminhar, ignorando Tobias.
***
O dia continuava claro, embora Tobias tivesse certeza de estar ali havia mais de doze horas. Como não sentia sono e não tinha para onde ir, ficou andando pela praia, vagando sem rumo. O cenário nunca variava; o mar de um lado, as flores do outro, com a praia separando-os. Descobriu várias trilhas idênticas àquela em que havia caminhado. Entrou em cada uma delas, percorrendo-as até o fim. Sempre encontrou uma praia do outro lado. Sua única certeza era de estar em uma ilha.
Em nenhum momento sentiu cansaço ou fome. Estava, sim, com um certo incômodo desde o encontro com o homem de branco. O lugar, outrora paradisíaco aos seus olhos, já era visto como chato e repetitivo. As poucas borboletas voando eram o máximo de agitação que podia ver. Inércia era algo que sua vida não tinha. A falta de barulho, aliada à ausência de informações, mexiam com sua paciência. O que antes lhe proporcionava uma sensação de paz, começava a perturbá-lo.
Sentou na praia de frente para o mar. A roupa tinha secado sem que ele notasse. Por isso, pôde encostar na areia sem se preocupar em ficar todo sujo com grãos grudados
— Sentindo-se sozinho?
Era o mesmo sujeito de antes. Ainda vestia a roupa branca. Tobias virou a cabeça e o enxergou. Feliz por avistar alguém, contudo, incomodado por ser aquele indivíduo hostil. Dirigiu-se a ele:
— Também me parece sozinho, ou não viria falar comigo.
O homem caminhou até o seu lado.
— Posso sentar aqui?
Tobias consentiu com a cabeça.
— Descobriu que lugar é esse? — perguntou o homem, sentando-se.
— Descobri que é uma ilha. Mas sem placas, indicações ou alguém para me informar, jamais saberei seu nome ou sua localização exata. Estamos cercados de água, não há mais nada em volta.
— Bom, as ilhas costumam ser assim — O homem disse sarcasticamente.
Encarando com bom humor, Tobias sorriu.
— E o que você faz aqui, senhor?
— Estou trabalhando.
— Trabalho? — espantou-se. — Que tipo de trabalho?
— Isso não posso dizer ainda. Se tudo der certo, eu lhe direi. Prometo.
Tobias balançou a cabeça. Coçou a testa. Passou a considerar a hipótese de estar travando um diálogo com algum louco. Ainda assim, era melhor do que ficar sozinho por mais tempo. Era sua única oportunidade de obter alguma informação sobre a ilha.
— Ok. Como quiser. — disse. — Sabe ao menos como posso sair desse lugar?
— Quer mesmo ir embora? É um lugar tão bonito.
— É, realmente é lindo. Mas é muito estranho também. Não anoiteceu até agora.
— Por que está com tanta pressa para ir? Você é casado?
— Sou.
— Tem certeza? É casado?
Cerrou os olhos. Pensou em levantar e se afastar do homem. Acabou ficando.
— Claro que tenho certeza! Por que está me provocando todo o tempo? — perguntou irritado.
— Se você quer tomar como provocação, é um direito seu. Mas isso faz parte do meu trabalho — o homem respondeu calmamente.
— Seu trabalho é me incomodar?
— Se as perguntas te incomodam, sim. E pare de mentir para mim, você não é mais casado.
Tobias levantou-se. Bateu na calça para tirar o pouco de areia que havia grudado lá.
— Bom trabalho para você!
Dessa vez foi ele quem se afastou, deixando o homem sozinho na praia. Esse, no entanto, não demonstrou vontade alguma de chamá-lo.
— Até amanhã, senhor. Isto se houver amanhã, já que esse dia nunca acaba.
— Só não há amanhã para os mortos de hoje! — proclamou o homem, sentado relaxadamente sobre a areia.
***
Após atravessar para a praia do outro lado da ilha, buscando se distanciar do homem que lhe incomodava, Tobias começou a chutar a areia com toda a força que podia. Estava irado. Seus sapatos haviam desaparecido em algum momento, mas ele mal reparou nesse fato. A vitalidade que exibia não o impressionava mais. Trocaria toda sua energia pela oportunidade de sair daquele lugar.
— Droga! —gritou, chutando a areia — Não agüento mais! Maldito lugar!
Ouviu um trovão. Observou o céu mudar de cor imediatamente, escurecendo em poucos segundos. Começou a chover forte. Tobias olhou em volta procurando um abrigo. Riu da impossibilidade total de escapar da chuva e jogou-se na areia. Arrastou suas mãos como se fossem garras, deixando marcas dos dedos na terra molhada. Parecia ensandecido.
— Quer ir embora? — perguntou alguém por trás de Tobias. — Acha que conseguirá agindo assim?
Sabia exatamente quem era. A voz ainda estava viva o bastante em sua cabeça.
— Saia daqui, idiota! — gritou sem olhá-lo. — Vá trabalhar em outro lugar!
— Posso tirá-lo daqui, Tobias.
Parou o que fazia. As mãos, sujas de areia, iam sendo limpas pela água da chuva. Virou-se, pois havia percebido algo importante.
— Como sabe meu nome?
Estavam a mais de dois metros de distância. Apesar da forte chuva, um ouvia claramente o que o outro dizia.
— Sei muito sobre você, meu jovem. Mas existem alguns detalhes não muito claros a seu respeito. Pode me ajudar com isso? Se colaborar posso auxiliá-lo a sair daqui — disse o homem.
— O que você quer exatamente? Quem é você?
— Me fale sobre sua esposa. O que tem a dizer sobre Daniele?
Tobias não conseguiu esconder a apreensão. Levantou com dificuldade. A chuva ficou ainda mais forte, os trovões aumentaram e uma ventania começou se apresentar. Um dilúvio anunciava-se.
— Fique calmo, Tobias! — o homem instruiu. — Fique calmo ou a tempestade só irá aumentar.
Estavam com dificuldades para enxergar-se. O homem deu alguns passos à frente, enfrentando o vento, afundando os pés no lamaçal que se formava rapidamente. Chegou bem próximo a Tobias.
— Você sabe onde ela está agora? — perguntou.
Tobias abaixou a cabeça. Fechou os olhos e fez uma expressão de dor.
— Ela está ferida — disse. — Caiu da varanda de nosso apartamento e bateu na calçada. Eu vi muito sangue escorrer!
— Acha que ela está bem?
— Não sei!
— Ela está morta!
Tobias colocou as mãos sobre cabeça. A água da chuva batia em seu rosto, misturando-se a algumas lágrimas.
— Seus vizinhos disseram que você batia nela constantemente, e que estavam discutindo no momento da queda. Duas pessoas afirmam que a empurrou da varanda. O que tem a dizer?
Manteve-se calado. As mãos desceram para tampar o rosto.
— Quando entramos no apartamento, você foi encontrado em um canto, num estado catatônico. Não respondia a nada, nem reagia. Isso foi a há doze dias. Continua assim até hoje. Está em uma cama de hospital, monitorado com a ajuda de aparelhos, observado por especialistas. Sou o investigador do seu caso. Nossa tecnologia permite que eu entre em contado com você. Pode-se dizer que estamos dentro da sua cabeça, no seu subconsciente. É o único modo de interrogá-lo. Nada aqui é real, nem nossos corpos. A ilha é imaginação sua, um refugio criado por você.
Tobias permaneceu
— Serei preso? — perguntou.
— Um juiz decidirá isso, não eu.
— Você disse que me ajudaria a sair daqui.
— Ajudarei. Você admite que a empurrou?
A areia estava seca, os dois homens e suas roupas também. Nem sinal da chuva de alguns segundos atrás.
— Pois saiba que não quero mais sair daqui. Quero que você vá embora. Agora!
— Não funciona dessa maneira, Tobias. Se cometeu um crime, deve pagar por ele. Mesmo que tenha sido sem intenção, terá que ir a julgamento.
— Não em minha ilha!
Abaixo do homem de branco, a areia começou a rachar e a formar um buraco. O homem, pego de surpresa, foi tragado para dentro da terra, após tentar inutilmente segurar-se à superfície. Logo a areia foi completamente recomposta. Em poucos segundos não havia mais qualquer vestígio do sujeito ou do buraco. Mesmo porque começaram a surgir prédios, carros, pessoas, ruas e tudo mais que a imaginação de Tobias conseguia criar. Aos poucos, o lugar ia perdendo todas as suas características originais, deixando de ser um local tranqüilo e conservado para tornar-se como qualquer outro lugar do mundo.
Mas aquela ainda era a ilha de Tobias, e ele jurou para si mesmo que jamais o tirariam de lá.
Este texto foi originalmente publicado na coletânea Ficção de Polpa - Volume 2
6 comentários:
Achei bacana o conto se bem que admito que já no começo eu meio que já intuí onde o cara estava, estragando o suspense... rs
De qualquer modo, gostei do conto, exceto a parte de entregar logo do que se tratava...
Eu também gostei muito do conto e também deduzi o final. Mas o conto tem uma atmosfera e um suspense bem conduzidos que prendem a atenção e mantém o leitor dentro da história. Muito bom.
merrel
De certa forma, concordo com ambas.
Acho que o mais importante, mesmo quando temos um insight sobre "o que vai acontecer" é gostarmos do "como acontece", não é mesmo?
No final original — vetado pelo estúdio — descobríamos que Tobias era a própria Daniele após passar por um tratamento para tornar-se homem, por isso era mencionada sua morte (simbólica). Mas como não pagou a última parcela do tratamento ainda sentia-se mulher e acabava transando com o homem de branco na ilha, entrando areia em tudo quanto era buraco de seu corpo.
Esse final ninguém deduziria. Infelizmente, o ator que interpretava Tobias — era o Ben Affleck, imposição do estúdio —, embora aguardasse ansiosamente pela cena de sexo, não foi capaz de interpretar uma mulher no corpo de homem. Tudo precisou ser reescrito às pressas.
Agora falando sério (e com spoilers para quem não leu). Sobre a questão de deduzir o final antes da hora, o conto é sobre alguém que “entrou em parafuso” por culpa/arrependimento/choque a ponto de ficar num estado catatônico. A história toda se passa no seu subconsciente.
Deduzir que a ilha não é real ou descobrir que ele tem culpa na morte de mulher não é saber o final. Essas informações são passadas aos poucos, estrategicamente nas conversas com o homem de branco. O final está contido nos dois últimos parágrafos, quando este mesmo sujeito — agora completamente coincidente de onde está e o que aconteceu — manda um “fuck you” * para qualquer redenção ou cooperação, trancando-se na sua “ilha”, que agora ele transforma num ambiente que lhe é familiar. De qualquer forma, se isso não está claro é porque o conto tem problemas.
E obrigado pelos comentários. Exceto o do Romeu, que por contrato tem que sempre tentar ressaltar as qualidades do conto, o que não é tarefa fácil.
* única fala mantida do final original.
Minha única dúvida é se o homem de branco é o Sr. Neves.
A resposta está no conto, Romeu. Uma dica para encontrá-la: siga a borboleta do 1° parágrafo.
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