5.10.08

Visitante

Uma excursão a um estranho museu por Carlos Orsi


Você se materializa, nua, no centro de um círculo de grama calcinada, no vértice de um tornado de gás escaldante. Sua pele muda de cor e consistência, adapta-se para lidar com a agressão que é a tempestade de calor: primeiro fica muito branca e pastosa, depois prateada, metálica, em seguida escurece e vira pele de novo.

Você olha ao redor, mas não me vê. Estou bem escondida, e o terreno não lhe é familiar. Nada aqui lhe é familiar.

O calor extremo não é um efeito comum do teletransporte, e você nunca viu grama na vida. Nunca? Talvez tenha visto – em filmes.

E o céu azul! O céu não é azul desde que a Terra foi desmantelada para dar origem à Esfera, ainda no tempo das lendas.

Seus dedos médio e indicador tocam as cinzas a seus pés e em seguida a vulva, as narinas, bem de leve, e a ponta da língua. São apenas cinzas – um pouco de fósforo e de magnésio, bastante potássio e monóxido de cálcio. Sódio. Talvez haja cádmio. Cinzas comuns. Cinzas amargas e quase sem cheiro.

Isso não parece surpreendê-la, esse fato tão inesperado, ver-se cercada de algo que não é nem uma arma, nem um inimigo, nem comida.

Você ergue a cabeça, o nariz, respira fundo. Os lábios em seu sexo se contraem. Farejou alguma coisa? Desde que não tenha sido eu... Ah, sim. A água, provavelmente. Há água abundante por perto. Então você se levanta, e caminha em direção à floresta.
* * *

As árvores cobrem toda a encosta, galhos entrelaçados, folhas entremeadas e trepadeiras emaranhadas criando uma espécie de superestrutura, uma topografia contínua, um patamar vivo dezenas de metros acima do solo. A vida é abundante, principalmente os insetos. Os besouros! Há mais besouros aqui do que células em seu corpo. As colônias de cupim são tão grandes e coesas que, quando se movem, parecem nem sair do lugar. Como um oceano.

Você já viu um oceano?

As teias das aranhas são véus e cortinas demarcando estranhos limites ecológicos. Paredes tênues, decoradas com cadáveres quitinosos, penas de pássaro e asas de borboleta, que separam a floresta em nichos e domínios que você nota, mas não tenta compreender.

Depois da terceira picada, sua pele, ainda escura, passa a exsudar um óleo repelente. Ele surge, abundante, aromático, principalmente dos mamilos e das axilas. Devagar, com uma certa relutância, a multidão artrópode da floresta decide deixá-la em paz.

Por algum tempo imaginei se o cheiro das flores, das frutas, das folhas e das criaturas mortas iria distraí-la, mas não: você se move, com firmeza de propósito, na direção da água. Seu clitóris ereto é como uma bússola, apontando o caminho.

Você chega às últimas árvores, enraizadas no leito já submerso e, então, é hora de descer. Sem pensar duas vezes, você mergulha.

A água aqui perto da margem não é perfeitamente azul, transparente, mas meio baça, esverdeada. Este é o Grande Lago Norte, onde desembocam o Ganges, o Amazonas, o Danúbio, o Tigre, o Eufrates e o Mississippi. No grande Lago Sul chegam o Yang-Tse, o Amarelo, o São Francisco, o Congo e os dois Nilos.

Pensando bem, não sei por que botaram o São Francisco e o Amazonas em lagos diferentes.

Claro, nada disso interessa a você. Sua pele absorve água e substâncias dissolvidas na água. Assim você cura feridas e se alimenta. O lago é tão rico em vida quanto era a floresta – insetos, moluscos, pequenos peixes, além de diversas criaturas que não são mais que protoplasma, animado por flagelos e voracidade. A água é doce até alguns metros, e salgada a partir daí. Isso é meio ruim para os mamíferos marinhos, mas este é um projeto que sofreu, desde o início, diversas restrições de espaço.

Qual o instinto que diz às piranhas que o melhor é manter distância de você?
* * *

Assim que você volta à tona, o qworila a agarra – a palma pesada, áspera, aromática, cobre-lhe a calva; os dedos se fecham envolvendo a curvatura de seu queixo – e o animal a arremessa de encontro ao tronco mais próximo.

O estrondo do impacto soa mais como uma explosão do que como colisão, e confesso que me assusta. Já o fato de que é o tronco que se parte, é a árvore que cai, enquanto você gira no ar e se posiciona, intacta, com os pés firmemente plantados na terra lodosa, assusta não a mim, que já esperava por isso, mas ao qworila.

A fera urra um grito de alerta, mas é tarde. Seus filhotes – só qworilas fêmeas atacam de surpresa – soltam-se os galhos das árvores ao redor e chovem sobre você, cada um com quatro mãos fortes dotadas de garras, e dentes que poderiam fazer inveja a um dos grandes felinos.

Você salta girando, de início com o braços e pernas juntos ao tronco – por um segundo é como se pairasse no ar, em posição fetal – mas então, enquanto gira, expande-se: cotovelos, punhos, joelhos e pés se projetam com violência à direita, à esquerda, adiante. A cada estágio da expansão corresponde um impacto. A cada impacto, um filhote de qworila cai, coberto de sangue, no chão.

Seus cotovelos quebram pescoços; seus joelhos rompem estômagos. Seus dedos, esticados, vazam olhos; seus pés esmagam pulmões.

Seu sexo exala um cheiro picante de pura ameaça; um neurotransmissor que lubrifica a passagem do medo. Pássaros, e mesmo os morcegos, fogem em revoada; os ratos dágua gritam e correm.

Você volta a tocar o chão. Oito cadáveres a acompanham.

A mãe grita, não mais em alerta, mas com ódio. Em menos de um segundo, a ira cresce até superar tanto a cautela natural da fera quanto o pânico induzido pelo neurotransmissor. O que os antigos costumavam dizer sobre a natureza e a fúria das mães?

Em dois saltos, o grande macaco carnívoro está sobre você. As garras dos braços mergulham em seus seios, enquanto os dedos dos pés se enterram em suas nádegas.

Você mexe a cabeça rápido, ergue o ombro, e as presas que visavam seu pescoço se cravam no bíceps.

Se você fosse um macho, isto seria uma cópula.

Você não liga. A dor é perfeitamente suportável. O importante é que a garganta da criatura está, agora, a seu alcance.

Você a arranca com os dentes.
* * *

Suas feridas saram rápido. Sangue e carne crua ajudam a acelerar o processo.

Assim que você emerge de seu segundo mergulho no Grande Lago, eu me apresento.

– Boa-tarde! – você me ouve dizer, enquanto as emissões ultrassônicas de minha garganta estimulam a parte correspondente de seu córtex auditivo: eu não sei exatamente de que maneira os códigos paralelos mais complexos, como o uso de tom e ênfase para comunicar emoção ou pontuação, evoluíram nestes anos. Não quero correr o risco de ser mal interpretada. – Seja bem-vinda ao Museu Terra. Pedimos encarecidamente que os visitantes evitem interagir com o conteúdo da exposição.

Esta última parte da saudação soa meio estúpida em vista do combate recente com os qworilas, mas o protocolo é o protocolo. Não tenho muita escolha a respeito.

Há uma beleza selvagem na forma como seu corpo se posiciona assim que o primeiro “som” de minha “voz” chega a você. É como olhar para um nu neoclássico original, algo saído diretamente do velho Movimento Olimpiano de Hong Kong.

– Quem é você, Bruxa? Que plano é aqui?

Eu caminho em sua direção, devagar, sorrindo, com as mãos espalmadas à mostra, perfeitamente visíveis. Sou pequena – meus olhos estão na mesma altura que seu umbigo. São grandes e redondos. Ao contrário de você, tenho cabelos – negros, longos atrás, com uma franja bem curta sobre a testa.

Fui projetada para fazer com que as pessoas se sintam à vontade. Não sei se os receptores subliminares da humanidade lá fora ainda reagem do mesmo modo à minha aparência e linguagem corporal, mas acho que seus instintos começam a lhe dizer para relaxar. Posso ver que os nós de músculo que saltaram de seus ombros para envolver o pescoço, durante a luta, já são menos evidentes.

– Sou sua Guia. Este é o Museu Terra – digo, respondendo às suas perguntas.

– Como vim parar aqui?

– Numa emanação cármica – respondo, em vez de dizer “num feixe de teletransporte”. Enquanto eu observava você, a Curadoria trabalhava para traduzir seu contexto, e me transmitia as descobertas. Ainda não sei tudo sobre o lugar de onde você veio, ou como você pensa, mas estou chegando lá.

– Você roubou minha alma?

– O carma foi enviado para cá. Nós o recebemos da melhor maneira possível. Faz tempo que não temos visitantes. Você é bem-vinda!

O feixe de transporte viera num ângulo errado e, por conta disso, havia acumulado uma energia absurda – um desvio fantástico para o azul. Poderíamos ter dissipado a radiação sem problemas, mas isso não seria aceitável: era óbvio que havia vida codificada no raio, e se ele fosse dissipado você teria morrido. Então, fizemos o melhor possível para trazê-la para dentro.

– Meu espírito – você diz – não vinha para cá.

Ao processar o feixe de teletransporte, tínhamos, por necessidade, lido boa parte da informação contida nele – acho que você poderia dizer que tínhamos lido não só seus átomos, mas também sua mente. Partes dela, de qualquer maneira. Então, sabíamos alguma coisa sobre sua missão. Tínhamos uma certa idéia da guerra. E estávamos começando a compreender o resto.

Percebemos que, tragicamente, o Museu havia passado muito tempo sem contato com o mundo lá fora.

Estamos cara a cara, você e eu. Ou cara a umbigo. Você parece relaxada.

Sinto um cheiro novo, adocicado, vindo de sua virilha. Levemente narcótico. Poção do amor? Soro da verdade?

– Você vai me dizer o que sabe?

– Sei apenas do Museu, que é onde estamos – respondo. – Foi para cá que você veio.

– Este lugar é muito grande – você insiste, enquanto seus dedos brincam com meu cabelo, descem até minha nuca. Carinho? Ameaça? – Parece um novo plano, e não...

Você se cala.

O cheiro doce é sutil, mas quase que posso visualizar as moléculas trabalhando em meu cérebro, fazendo com que eu queira ser agradável, muito agradável, o mais agradável possível. De certa forma, o perfume enfatiza minha diretriz original de Guia. Com algum esforço e sentindo a língua pesada, pergunto:

– Já ouviu falar na Contração de Lorentz?

– O que é isso?

– Quando uma coisa viaja muito rápido, ela parece menor por fora do que por dentro.

Você ignora a informação. Tento mais uma vez:

– Dilatação do tempo?

Desta vez, você descarta a questão e pergunta:

– Este é um outro plano, não é?

– Este é o Museu Terra – respondo, sorrindo. Explicar o Museu, afinal, é minha função primária. – Onde se decidiu que os grandes tesouros de Gaia ficariam preservados, depois que a humanidade resolveu desmontar o planeta para construir a Esfera.

– Você está falando dos Deuses Antigos que desfizeram a Lenda e criaram o Mundo? Mas os tesouros do Tempo da Lenda transcenderam conosco. Os Lugares Sagrados...

– Não o Vaticano, o Taj Mahal, Paris ou a Grande Cúpula de Zimbábue. Tudo isso foi integrado à Esfera. Os outros tesouros... Os que não sobreviveriam à transformação: os grandes rios. Algumas das montanhas. Plantas. Animais...

– Então, estamos no Volhala? No refúgio dos deuses? – você pergunta, enquanto agacha para me olhar nos olhos. Seu tom de voz, somado ao perfume de sua virilha, me leva às lágrimas: uma agonia sincera. Estou perdidamente apaixonada por você. Seu sorriso, que vejo agora pela primeira vez, é mais belo que a projeção de Saturno cingido pela Via Láctea, a imagem que enche nossos céus à noite.

Sem aviso, você se ajoelha, encosta a cabeça em meu ombro e pede, baixinho:

– Preciso de sua ajuda, pequena deusa! Vai me ajudar?

– Sim – respondo, com a voz embargada, abraçando você, minha vida, minha luz, meu amor. – Claro que sim.
* * *

Estamos caminhando já há dois dias quando, finalmente, chegamos ao castelo. Dois dias foi o tempo que a Curadoria precisou para criá-lo – um complexo de cavernas e desenhos mais ou menos abstratos esculpido numa antiga montanha, removida e levada até o local só para nós.

Nesse período você viu a noite, dominada pelo planeta gigante e seu anel de bilhões de estrelas. Na verdade, trata-se apenas de uma tela de apresentação – a face interna da cúpula do Museu pode ser programada para mostrar o céu noturno tal como seria visto da superfície de Gaia-Terra em qualquer latitude, longitude, data ou horário.

Nesses dias e noites você também caçou para que tivéssemos o que comer. Tentei lhe explicar que não era necessário, mas não adiantou. Insisti um pouco, mas... Depois, entendi.

As caçadas faziam você se sentir forte. No controle.

– Votán vive aqui? – pergunta você, enquanto caminhamos pela planície que leva ao castelo.

Eu respondo com um aceno da cabeça. Você sorri, nervosa.

– E ele vai me ajudar?

– Não sabemos nada sobre sua guerra – digo eu. – Quero dizer, não sabíamos. Mas agora...

Você sorri, de novo. Desta vez, o nervosismo é menos aparente, mas ainda está lá.

Tenho uma vontade louca de beijá-la na boca.

Sinto-me estranha. É como se minha mente tivesse sido dividida em duas: a parte que faz interface com você imersa nesta paixão absurda, totalmente sob seu poder, enquanto a parte que faz interface com a Curadoria continua ligada, unida, submissa aos interesses e projetos do Museu.

Minha individualidade, se é que tenho alguma, está contida entre essas duas extremidades. Presa entre dois pontos: um segmento de reta.

Novos dados sobre a vida na Esfera – sobre você – chegam, sem parar, vindas dos filtros da Curadoria. Essas informações, minha mente correlaciona com o que você me diz ao longo de nossa caminhada rumo ao castelo, às coisas de que falamos ao redor da fogueira, enquanto comemos, ou deitadas sobre a relva, antes de dormir. O produto é enviado de volta à Curadoria que, então, me fornece uma versão final, limpa e contextualizada, do que há para aprender.

E eu aprendo. Sei, por exemplo, que a guerra que você luta, há séculos, opõe duas facções, chamadas “Bruxas” e “Fadas”. Que você é uma “Fada”. Que os módulos interdependentes da grande Esfera que envolve o Sol são “planos de existência”; que as linhas de teletransporte entre os módulos são “emanações cármicas”; que as viagens entre os módulos são “mortes” na partida e “encarnações” na chegada.

Mais interessante ainda, compreendo que você, de fato, nunca viu uma Bruxa. Na verdade, sua tradição diz que ninguém vê uma Bruxa e vive para contar a história.

As Bruxas, diz essa mesma mitologia, habitam Chintav, o módulo localizado no pólo da Esfera oposto a Yeom, o Berço das Fadas. E as Fadas lutam uma guerra interminável, contra máquinas e monstros, para “transcender os planos de existência”, “ascender espiritualmente” por meio de diversas “encarnações” e finalmente chegar a Chintav, derrubar as Bruxas e instaurar uma Nova Ordem, uma abstração conhecida pelo nome de Nirnâva.
* * *

A grande montanha esculpida foi colocada sobre uma planalto rochoso, cercado por uma planície coberta de capim roxo que ondula ao vento – como a cabeleira de um gigante vaidoso – e enormes girassóis. O acesso da planície ao planalto se dá por meio de uma escadaria natural, aparentemente cortada na pedra por um fluxo de água que deixou de existir há muito tempo.

Alguns dos degraus da escada são ocos, minados pela corrente subterrânea, e soam alto a cada passo seu.

– É o Caminho da Aldrava – explico, repetindo o que a Curadoria me diz. – Assim, o Senhor saberá que há visitantes chegando.

Do ângulo em que estamos, os relevos desenhados ao longo da montanha – do castelo – parecem-se com olhos. Milhares deles, observando-nos, todos girando em nossa direção, acompanhando cada movimento que fazemos.

Na verdade, somos nós que giramos, ao seguir o traçado curvo da escada, mas saber disso não diminui em nada o efeito.

Você, porém, não parece impressionada. Isso requer um belo bocado de esforço, mas você realmente consegue não parecer nada impressionada.

Quando chegamos ao castelo, a porta já está aberta. Um homem nos aguarda – pequeno, de nariz comprido, envolto em trapos brilhantes, envelhecido. A Curadoria me informa de que todo o elenco do edifício é masculino: não queremos que você tenha a impressão de que esta é uma armadilha das Bruxas.

– Bem-vindas, donzelas viajantes – diz o velho. Suas boas-vindas não soam como as minhas. Não são sinceras. Há uma ponta de sarcasmo na forma como diz “donzelas”. – O Grande Votán as aguarda. Por aqui, por favor.

Você permite que eu entre primeiro.

Atravessamos um corredor amplo, com teto em forma de ogiva e ladeado por colunas com patas de leão na base e enormes mãos humanas, abertas, no topo: segurando, literalmente, o peso dos grandes arcos.

A luz flui de pequenas aberturas em forma de losango, colocadas a meia-altura nas paredes de rocha polida.

Seguimos o velhote narigudo até o fim do corredor, viramos à direita, andamos mais um pouco e chegamos a uma grande sala, com uma mesa enorme ao centro. A mesa é parte do piso. Esculpida no mesmo leito de rocha, ergue-se dele sem nenhuma descontinuidade aparente.

Sentado à mesa, em um trono rochoso, está o avatar escolhido pela Curadoria. Votán, pai dos deuses. Um homem alto, forte, barbado, com um olho brilhante ao lado de uma órbita vazia. O corpo, uma massa de músculos e cicatrizes, vestido em peles. Há uma lança apoiada à direita do trono. Suas mãos estão calçadas em luvas que parecem feitas de ossículos tirados dos dedos de cadáveres.

Ao vê-lo, eu me inclino, você me imita. A um sinal dele, nos aproximamos. Sinto ciúme: você começa a exalar seu cheiro doce, tentando seduzi-lo.

Seguro o choro o melhor que posso.

Votán ergue a mão esquerda e estala os dedos – o estalo é como o som de um trovão, e faz saltar uma faísca amarela, súbita, ofuscante, seguido por uma nuvem tênue de fumaça. Fogos de artifício na luva?

De repente, o perfume que vinha de seu sexo desaparece do ar, neutralizado.

Votán sorri para você:

– Não tente me enfeitiçar, pequena Fada.

Você se ajoelha. Sem baixar a cabeça, responde:

– Se o ofendi, senhor, foi pelo desespero de minha causa...

Votán balança a cabeça, paternal:

– Não há mais “causas” aqui, menina. Você sabe onde está, não sabe?

Minha querida Fada, você hesita apenas um segundo antes de responder:

– Se o senhor é Votán, este é o Volhala.

– E o que é o Volhala?

– É o plano para onde vão as Fadas... as Fadas...

– As Fadas que morrem sem transcender. Ao menos, é isso o que algumas de vocês pensam. Mas, para outras, Volhala é o lar das Fadas que realizam a maior de todas as transições. É a recompensa final. Chegar ao Volhala é ter ascendido ao máximo. É crescer para além do mero jogo e entrar na realidade. Volhala é o plano definitivo, o plano eterno. Você conquistou o direito de estar aqui. Alegre-se!

A exortação de Votán ricocheteia nas paredes e volta, multiplicada por um eco poderoso que não tinha estado lá até o momento anterior.

Respeitosamente, você se levanta.

– Senhor, eu morri e parti de meu plano com a missão de interceptar uma arma, uma arma poderosa, de energia infinita, que se aproximava de nós. Minha missão não está completa. Como posso ser digna?

– A “arma” que suas irmãs pressentiram no vácuo entre os planos era, na verdade, o Volhala. Você não pode ser culpada pela ignorância delas. E, o mais importante: de todas as Fadas, só você teve a coragem de morrer para ser lançada ao desconhecido. Essa é a coragem que está sendo recompensada.

– Mas...

– Mas, basta: você e a pequena Guia, vão para seu quarto. Descansem. Esta noite, vocês jantarão no salão dos Heróis!

Votán se levanta, dando a audiência por encerrada. O velhote reaparece – se é que se havia afastado – e nos conduz de volta ao corredor.

* * *

Estar com você no quarto é... Difícil dizer. Estranho, sem dúvida. Excitante, também. E assustador.

Você não precisa mais de mim. Sua química – seu “feitiço” – e a vocação que carrego já me induziram a lhe dar tudo que você acreditava ser necessário. Seu acesso a Votán está garantido. De que lhe serve, portanto, esta pequena Guia?

Agora estamos sozinhas neste quarto, escavado e esculpido na rocha cinzenta da montanha. Parte de mim está paralisada com medo e expectativa, com os olhos molhados. Outra parte sorri, cheia de um outro tipo de expectativa, uma hipótese em formação, quase que intoxicada pela curiosidade.

Devo parecer muito estranha, chorosa e sorridente ao mesmo tempo.

Estou sentada na cama e ouço você saindo do chuveiro. Será que havia camas e chuveiros lá no módulo – desculpe, plano de existência – da onde você veio? A Curadoria provavelmente já sabe disso, mas a informação ainda não chegou aqui.

Sua pele está avermelhada, quente, evaporando a água quando você aparece na soleira entre o banheiro e o quarto propriamente dito.

Envolta em neblina, você se volta para mim. Fico surpresa ao notar a limpidez de seu olhar. Nada de piedade nos contornos, nenhuma dissimulação no brilho. Processo esses dados e meu medo vira esperança, minha curiosidade se eleva.

Você sorri.

O chão se abre.

Não há estrondo, apenas um som como o de tecido rasgado. De repente há uma cratera por debaixo da cama, e eu me vejo caindo, enquanto duas sombras sobem, passam por mim, projetam-se em direção ao ponto de luz, acima, que é a abertura cada vez mais distante.

Ouço sua voz gritar:

– Trolòs!
* * *

Os trolòs emergem da cratera um segundo antes de a abertura se fechar. São máquinas de metal escuro, cilindros longos como um braço estendido, cobertos por milhares de agulhas, mais finas e flexíveis que cabelo humano, muito compridas, extremamente resistentes, capazes de cortar diamante e perfurar aço. Também há quatro braços articulados, terminados em tenazes. E de cada extremidade do cilindro parte uma “cauda” longa, um chicote feito de agulhas trançadas.

Você conhece os trolòs. Eles são parte do arsenal das Bruxas. Você já enfrentou um deles, uma vez, e teve sorte em sobreviver. Contra dois...

Um trolò escala a parede mais próxima usando as agulhas como se fossem as pernas de um inseto, perfurando a rocha para ganhar apoio. O outro se desloca pelo chão, descrevendo um arco amplo que parece se afastar mais e mais de você.

Sem aviso, a máquina que estava no chão dá um salto, girando e gritando no ar. O movimento inesperado e o som estridente distraem você. Nesse instante, o trolò preso ao teto projeta uma cauda em sua direção.

Não é o som do chicote, mas uma mudança sutil no deslocamento do ar que a avisa a tempo. Você salta, e a cauda que teria perfurado seu coração apenas amputa o dedo mínimo de seu pé esquerdo. Você ignora a dor, e rola, ao mesmo tempo em que baixa a cabeça e cruza os braços do peito. Os músculos especiais de proteção dilatam-se não apenas ao redor do pescoço, mas também em torno do tórax e, numa massa densa, disforme, em punhos, antebraços e coxas.

O trolò que havia saltado para distraí-la agora gira no ar, caindo sobre você. Com um grito de ódio, você projeta as duas pernas para cima – calos especiais acabam de irromper, dolorosamente, da sola de seus pés – e chuta. A máquina guincha em protesto, enviando algumas agulhas, como âncoras, para dentro da crosta protetora do calcanhar direito. Você não sente dor, mas um ponto de luz azul surge na periferia de seu campo visual, indicando que a calosidade está sob ataque químico.

As duas caudas do trolò atacam, numa tentativa de perfurar seus olhos. Mudando bruscamente o ângulo do joelho direito – luz turquesa indica dano ao ligamento – você tensiona a âncora que a máquina deixou em seu calcanhar e faz o corpo cilíndrico girar, estragando a mira das caudas, que em vez de vazar-lhe os olhos enterram-se na placa muscular abaixo das axilas.

Você entra em modo anaeróbico, já contando com a perfuração dos pulmões em zero vírgula três segundos e, no meio segundo que – estimativa projetada na retina – o monstro levará para abrir caminho até o coração, seus punhos cerrados mergulham, sofrendo cortes, queimaduras e contusões, no âmago da máquina.

Seu coração ainda bate quando o trolò pára.

Você estaria exultante, não fosse pelo som do segundo trolò se aproximando.

Mas então um raio de luz enche o quarto, seguido de um som de trovão e da voz de Votán, gritando algo que você não entende.

* * *

– É inacreditável que as Bruxas tenham decidido atacar o Volhala – Votán diz, setenta horas depois, parado diante da porta do castelo. Você está montada num cavalo negro, Peqáso, que o mordomo narigudo trouxe de algum lugar. Não há sela, rédeas ou freio; suas mãos mergulham na crina exuberante.

– Elas devem ter seguido meu espírito – você responde, repetindo algo que lhe foi sugerido diversas vezes durante sua recuperação, na enfermaria do castelo.

– Elas viram como suas máquinas de destruição não são nada diante do meu poder. Não creio que voltem.

Você responde:

– Elas ainda estão aqui, Senhor. Elas ainda têm a Guia.

– Sim, a Guia ainda está no Volhala. Posso senti-la. Mas não consigo saber exatamente... Ela deve estar, talvez não com as Bruxas, mas com algum deus traiçoeiro, capaz de se contrapor até mesmo aos meus poderes!

Você sorri:

– Não se preocupe, Senhor Votán. Vou encontrá-la. E com esta ajuda que o Senhor me concedeu – você bate no cabo de Ezcalibòr, a espada amarrada às suas costas, e acaricia a cabeça de Miiownyir, o martelo que pende de sua cintura – tenho certeza de que conseguirei libertá-la de quem quer que a mantenha prisioneira.

Votán balança a cabeça:

– Assim espero, bela Fada, Assim espero.

Você parte a galope. Assim que Peqáso some no horizonte, eu saio de trás da porta – onde Votán, o avatar da Curadoria, havia me mantido, invisível.

– Ela me ama – digo eu.

– Ou apenas se sente responsável. Ou quer conquistar a boa-vontade de Votán para sua guerra. Guerra! – Votán ri. – Você sabe quanto tempo já se passou na Esfera desde que ela chegou aqui?

Dou de ombros.

– Eu a amo – digo.

– O sistema de julgamento de seu cérebro foi violado por um ataque químico – responde a Curadoria.

– Eu a amo – respondo.

– Bom, talvez seja mesmo a mesma coisa.

– Vou voltar a vê-la?

– Quando ela estiver bem adaptada, por que não? Uma Fada-Guerreira e sua donzela em perigo são, pelo que conseguimos entender, parte importante da cultura humana da Esfera. Segundo a Curadoria, representam uma atualização importante de nosso acervo.

– Essa esperança é o que me sustenta.

Votán ri. O vento ondula a grama e os girassóis. Às nossas costas, o castelo começa a desaparecer.

6 comentários:

Giseli Ramos disse...

Que releitura interessante de um conto de fadas! E ainda com um fundo de ficção e romantismo...rs

Romeu Martins disse...

Tinha absoluta certeza de que vc iria gostar, Gi :)

Anônimo disse...

Conto incrível!!

O Carlos é, na minha opinião, o melhor escritor de FCB da nossa geração!

Romeu Martins disse...

E não tem um certo toque de new weird, Fábio? A explicação cármica para o transporte é um ótimo exemplo.

E se dependesse de mim, o Orsi teria uma edição omnibus reunindo toda a obra dele. Como o cara é novo, daria pra chamar de Volume I :)

Helena disse...

Realmente, o conto é excelente, estranho, envolvente, usando elementos de FC e de Fantasia de forma muito interessante. O ínicio é arrasador e o final é ótimo.
Mais um gol do Romeu.

Helena

Romeu Martins disse...

Eu só mostro o placar, MHell, quem faz o gol são vocês.

Ibope