30.9.08

Pela Deusa

O evangelho de uma divindade altiva por Maria Helena Bandeira com arte de Gustav Klimt


Eu acreditei em Petrus Amon Teth, o Elevado.

Como todos naquela época.


Enviei discos de propaganda que percorreram o território Valgoo e alimentei com meu leite as simbalas, abatidas para o banquete da vitória. Gastei os próprios pés e mais alguns, adquiridos em Moebius seguindo seus shows e comícios, trançando guirlandas de abelhas, atirando em ziguts inimigos, bebendo sangue ardente nas noites sem luas.


No dia da vitória estava na primeira fila dos barcos, singrando o mar de algodão em direção ao Zenith.


Fui lâmina e lupa, pesadelo e esperança. Eu fui seu tudo e seu nada, seu meio e seu fim.



Vi o exército petroriano esmagar as populações que comerciavam às margens do Estinges e derrubar os muros de Alma e Singhor. Acompanhei os passos da decadência quando fartos de carne e luxúria se amontoaram em carniças nos diques de Alambra.


Cada vez mais gordo e oleoso, os cabelos grudados ao crânio redondo, vi sua imensa boca jamais saciada, seu pênis nunca flácido, a procura de toda a comida humana ou zigota, ardeliana, almíca ou singhata. Vi-o abandonar a luta, se entregar à devassidão e ao ócio.



Então eu decidi agir.


Todas as luas negras, Petrus levantava dos coxins o enorme corpanzil e era carregado até as águas da purificação. Lá, em meio ao fedor do enxofre e ao borbulhante líquido azulado, pedia perdão à Deusa e ofertava nove jovens virgens nuas a Seu serviço.


Eu estaria entre elas. Manobrei para conseguir, subornei, comprei, menti e matei. Virgem não sou, mas me tornei. Em Moebius comprei a peso de ouro um corpo escultural. Conhecia, como ninguém, o gosto de Petrus.


Durante o ritual, trabalhei para que me visse, para que seus olhos contemplassem minha beleza e mocidade. Triunfei.



Vi olhos ávidos me percorrerem, dancei como nunca, como sabia que era preciso. Ele desafiou a Deusa e me chamou para a sua tenda.


A lua negra pesava e relâmpagos cortavam o ar em chamas violetas. Um silêncio mole percorria as flores apagadas ao redor. Soprava um vento de cadáveres.


Entrei na tenda e me curvei. Ele flechou meu corpo, me despiu. De todo jeito o satisfiz, como prostituta cristã, marafona zagaia, cortesã de alambra.


Chafurdava ainda em mim quando o raio de Lilith penetrou a tenda, gelado.


Deu um salto, assustado, gelatina de pavor .


Tarde demais. Nossa Deusa entrou pelos seus olhos, comeu os ouvidos, derrubou o sexo pagão. Quando os outros o encontraram, remoçado e alegre, era Petrus Amon Teth na aparência.


Na verdade era eu.


FIM

O Messias Decidido – I – Prelúdio



Uma treta em Capão Redondo por Richard Diegues


Não gostava do próprio nome. Nem mesmo se lembrava dele. Até os vinte e cinco anos ainda tinha recordações; um nome apenas. Depois, teve vários. Gostava de ser chamado de Fred. E os que o conheciam sabiamente esqueceram seu nome inteiro e passaram a chamá-lo assim, apenas pelo diminutivo.


Naquele bar ninguém o conhecia, por isso o copeiro o chamou de você-aí-o-que-vai-querer. Julgou que também não era um mau nome. Aos quarenta e três anos já não ligava muito para nomes, bastava esse mesmo, desde que o garoto lhe trouxesse uma garrafa com água. Por ora era tudo o que queria. Em breve a coisa mudaria. Precisava apenas encontrar o que havia vindo procurar ali. Era paciente. Sempre encontrava o que procurava. Podia demorar, mas Fred tinha tempo. Considerava no momento que estava de férias. Procurava por inspiração.


Durante duas horas ficou sentado próximo ao canto do balcão. Olhava ao redor, para as mesas de lata enferrujadas, cobertas com imundas toalhas de plástico xadrez, onde poucas pessoas, em sua maioria casais e grupos de garotos que não tinham dinheiro para sair do bairro, tomavam cerveja e cachaça. Ambas mornas. As roupas de todos ali eram simples; gastas, batidas, mas claramente eram as melhores roupas que eles tinham. O bar era movimentado. Três meninas circulavam entre as mesas. Fred observou a maquiagem, as roupas e o andar de mulheres de vida dura nelas. Uma o encarou, oferecendo a carne e o que mais ele quisesse pagar. Um olhar bastou para que ela entendesse que ele sabia sua idade. E que não estava interessado. A garota mudou de alvo e foi sentar em uma outra mesa, onde um velho decrépito não pensou meia vez antes de aceitar a companhia.


Logo na entrada do bar havia uma placa com sete buracos de bala, mas ainda com o tradicional Deus é Fiel bem visível, informando a fé do proprietário. Fred sorriu amargamente pensando na frase. Olhou para o dono do bar que estava contando algumas moedas no caixa, usando uma bíblia surrada para apoiar o dinheiro. Balançou a cabeça e desviou o foco para a os bêbados que se apoiavam no balcão ou estavam espalhados pelas mesas. Alguns comiam ovos coloridos ou torresmos peludos. Os mais abastados mastigavam uma porção de mortadela em cubinhos ou batatas-fritas. Nenhum deles lhe interessava. Pelo menos, não naquele momento. Mas o futuro era incerto e estava em aberto.


Observou com desprezo os cartazes colados uns sobre os outros nas paredes, onde mulheres seminuas tomavam cervejas quase congeladas, como se fosse possível manter aqueles corpos em forma mesmo enchendo a cara. Viu ainda uma meia dúzia de baratas, usando os cartazes como disfarces para circularem sem serem notadas. Ou quando notadas, imediatamente ignoradas. Tinha muito para ver ali, mas ainda não havia achado o que queria, por isso continuava sentado, apenas bebendo.


O rapaz que o atendeu havia reparado que sempre que Fred completava o copo com a água, mexia o líquido com o indicador e imediatamente a cor da água ficava turva, passando para um tom de ouro-velho. Algo amarronzado que o fazia pensar em uísque. E pela cor, parecia ser um uísque dos bons. Mas ao olhar atentamente para Fred, mais precisamente para o rosto coberto de cicatrizes, achou que, em nome do bom-senso e acima de tudo de sua vida, deveria deixar o fato de lado. Não era a primeira vez que não via algo ali. Nem queria que fosse a última. Voltou a agitar freneticamente o pano encardido, mais espalhando a água dos pratos do que os secando.



Quando já estava cansado de ficar ali e pensava em ir embora, enfim encontrou o que procurava. Os cantos da sua boca se ergueram, lembrando vagamente um sorriso. Vagamente apenas. Alguns homens haviam entrado no boteco. Na verdade nenhum era especificamente quem ele procurava, mas sim o tipo de homens que procurava: os homens-maus. Eles entraram no boteco falando alto. Expulsaram um casal de uma mesa nos fundos, que nem chegou a reclamar. O copeiro teve que mudar a estação do rádio, logo depois do pedido de um deles, que veio acompanhado de um safanão. Fred não se importou com o rádio, a música era ruim até para ele que não tinha um gosto específico. Logo os sujeitos passaram a incomodar as mulheres que ainda restavam no bar, afrontando também os homens que as acompanhavam. Pela postura dos homens, que rapidamente esvaziavam o bar, Fred confirmou que estava certo: eram o tipo do qual ele gostava.


O dono da casa reclamou timidamente com os sujeitos, quase em um protesto mudo. Quando ele citou uma passagem da bíblia para eles, duas pistolas surgiram sobre o tampo da mesa, junto com uma boa quantidade de dinheiro. A palavra divina evaporou no mesmo instante.


– O bar tá fechado! Nóis vâmo comemorá o pó que chegô hoje – gritou o homem que havia sacado as armas e o dinheiro, retirando também um papelote de cocaína do bolso, estirando cinco grossas carreiras, uma para cada um deles.


Ele era bem conhecido na área, tanto pela violência, como pela ocupação. Traficante graúdo, do tipo que fazia questão que todos soubessem quem era. E principalmente o que fazia. Propaganda era a alma do negócio, principalmente no tráfico. O bar esvaziou rápido. Fred permaneceu no mesmo lugar, tomando seu uísque. Em poucos minutos os cinco, mais o dono do bar e o copeiro, olhavam intrigados para ele.


– O bar fechou – gritou outro rapaz, que tinha um grande coração vermelho, com a frase “mamãe eu te amo”, tatuado no enorme bíceps.


Fred havia acabado de apanhar com a língua a derradeira gota de uísque do copo. Tornou a enchê-lo com água e mexeu o líquido com o indicador. Tinha um novo uísque a sua frente. Água para uísque, era melhor do que para vinho. Descobriu isso quando mal havia passado dos vinte anos. E o melhor era que parecia um legítimo scotch. A ressaca sempre era modesta. E a língua amortecia de uma forma gostosa. Ficava amortecida e afiada.


– Ainda não terminei aqui – respondeu, com um tom de voz que seria muito útil na falta de cubos de gelo.


Se Mamãe-eu-te-amo fosse esperto, saberia que aquilo não era um bom sinal. Qualquer pessoa normal saberia que aquele não era um bom sinal. Principalmente ali, no Capão Redondo, um bairro de gente acostumada a uma boa briga. Ali havia gente de todo o canto do país, que precisava provar no dia a dia que merecia seu espaço. Mas ele havia nascido e crescido ali, naquele bairro. Boa parte de seus dentes haviam sido perdidos em boas brigas. Havia duas coisas que se podia dizer sobre ele: uma, era que decididamente não era esperto; a outra, era que gostava de brigar.


– Acho que o velho não ouviu direito a gente. Vai lá e explica pra ele o que eu disse – falou o que parecia ser o líder, instigando Mamãe-eu-te-amo.


Todos na mesa riram. Sabiam que o sujeito não gostava de desaforos. Seu tamanho já indicava isso claramente. Nenhum sujeito com aquele perfil aceitava bem um desaforo. Ao menos não um tão direto, na frente de amigos. A língua de Fred o levava para um mau caminho. Isso era habitual.


O copeiro descobriu que precisava, com urgência, ajudar o dono do bar na cozinha. Não importava em quê. Antes que o grandalhão chegasse perto do balcão, o garoto já havia desaparecido. No salão ficaram apenas Fred e os cinco traficantes. Até mesmo as baratas haviam sumido, usando o hábil instinto de preservação da espécie.


– Belo truque, esse da cachaça – falou Mamãe-eu-te-amo, coçando a cabeça enquanto apontava o copo na frente de Fred.


– Você iria gostar mesmo é de quando eu ando em cima da água. Esse sempre me assombra, imagine então pra quem está vendo. Quem sabe um dia eu te mostro?


– Cê tá me tirando, ô babaca?


O olhar do brutamonte sempre foi suficiente para fazer com que a maioria das pessoas baixasse os olhos e calasse a boca. Os que faziam isso rapidamente tinham a chance de balbuciar desculpas, que de vez em quando eram aceitas. Os que demoravam um pouco mais tentavam correr, se ainda pudessem tentar. Era a primeira vez que nada disso acontecia.


– Na verdade estou usando você de inspiração. Um salmo, quem sabe? Algo como “No Capão Redondo, lembrei de mamãe e chorei”, o que acha?


Os outros quatro pararam de rir. Quando Mamãe-eu-te-amo ficava nervoso, costumava usar os punhos para extravasar. Quando estava muito nervoso usava uma faca, que sempre trazia na cintura, que primorosamente era mantida polida e cega. Quando estava muito nervoso, mas com medo, usava sua pistola. E naquele momento a arma estava em sua mão. A cada minuto parecia mais que Fred se encontrava em um carro sem freios, e que a ladeira se inclinava rapidamente.


– Cê tá sacando que vai pro inferno, seu filho-da-puta? – gritou, apontando uma Walther PPK para a cicatriz de estimação de Fred. – Vô deixa essa tua cara ainda mais bonita, com um puta buraco bem no meio dela.


Fred não se importou com aquela explosão de ódio. Respeitava a violência. Também havia crescido em um bairro difícil. Durante toda a infância havia sido o garoto mais bonito do bairro, coisa que atraía além da inveja, muitas surras. Até que aprender a revidar já havia ganhado muitas cicatrizes. Elas o haviam deixado bem mais feio, porém também o deixaram com muito mais experiência. Virou-se lentamente no banco, demonstrando que não tinha medo e, ao menos naquele momento, nenhuma intenção de revidar. Ficou de frente para Mamãe-eu-te-amo, de braços abertos e com as mãos visíveis. Começou então a recitar um salmo à medida que o ia criando:


À margem da lei em um bar, sentamos e bebemos, ao nos lembrarmos de São Paulo. Nos bares desta cidade, penduramos as nossas armas. E aqui os que nos fazem cativos em nossas próprias casas, um dia irão pedir que cantemos uma balada de perdão. E estes mesmos que nos oprimem pedirão que nos passemos por felizes: "Cantem uma balada para São Paulo", pedirão. Como podemos cantar em uma terra que tem ficado a cada dia mais estranha? Se me esquecer de como era São Paulo antes, que me arranquem os testículos pela boca. Que a bebida não me dê mais prazer, apenas ressaca. É isso o que eu responderia se me dissessem para esquecer da velha São Paulo em troca da que vejo agora. Contra os filhos de meretrizes que empesteiam esta cidade, deixo um bom recado, que Deus têm se esquecido de dar: "Acabai, acabai com eles, até os fundilhos colarem no chão!". Filhos de um demônio coxo são todos aqueles que trazem o mal a esta metrópole sofrida! Afortunado será aquele que tomar e esmagar os miolos desses filhos que desabonam minha nova terra santa.


Os outros bandidos se aproximaram. Fecharam uma roda em torno de Fred, e ele seguia recitando seu salmo. Muitas armas haviam aparecido. Pelo vão da porta da cozinha era possível ver os olhos arregalados do dono do bar. O garoto continuava como as baratas: sumido.


Mamãe-eu-te-amo baixou a pistola para o peito de Fred. Apontou e atirou. Certeiro. A mão dele desceu rapidamente para o ferimento. Um longo silêncio dominou o ambiente, até que depois de um tempo o sangue escorreu por entre os dedos e seus olhos se fecharam. Os cinco homens começaram a rir. Os braços de Fred escorregaram lentamente pelo seu corpo e ele foi se inclinando no banco. Quando os homens esperaram que o corpo tombasse, duas pistolas surgiram nas mãos dele. O movimento foi tão rápido que elas nem pareciam ter sido puxadas de dentro da camisa, mas que haviam surgido como mágica em suas mãos. As balas também foram rápidas.


A primeira atingiu a garganta de Mamãe-eu-te-amo. A segunda arrancou sua orelha. Os traficantes não se abalaram, miraram ao mesmo tempo para Fred e atiraram. O som dentro do bar foi ensurdecedor. A cada bala que o acertava, Fred retribuía com duas em cada um deles. Ninguém pensou em fugir, somente em atirar cada vez mais rápido.


Em menos de dois minutos o silêncio voltou ao lugar. Seis homens estavam baleados.


Um deles retornava ao seu banquinho e terminava seu uísque.


O dono do bar, depois de algum tempo, tomou coragem e saiu da cozinha. Havia desistido de esperar que a polícia aparecesse. Sabia que eles não viriam por pelo menos uma hora. A vizinhança por no mínimo duas. Era melhor sair do que ser acuado ali, onde não tinha para onde tentar correr. O copeiro resolveu que não era corajoso a esse ponto.


Passo a passo o homem se aproximou do balcão. Um olho apontava na direção de Fred, o outro no caminho que levava da ponta do balcão onde ele estava para a rua. A cabeça analisava o que aconteceria saísse correndo naquele instante. Não tinha certeza se seria alvejado antes de dar um passo ou se conseguiria dar ao menos dois.


– O que achou do meu salmo? – perguntou Fred, esfregando um dos ferimentos abertos no meio do peito, com uma expressão de dor enrugando todo seu rosto.


– Muito bom – respondeu o homem, gaguejando, com a voz tremendo mais que as próprias pernas. – Uma nova versão do salmo 137, não é? Acho que foi muito... eloqüente e atual.


– Sim, acho que “eloqüente” e “atual” são boas palavras para ele. Bom vocabulário, homem! Gosto dos homens de boa palavra.


Vendo que o homem fitava boquiaberto os buracos em seu peito, passou a mão sobre eles, esfregando com força. Eles fecharam, mas Fred fez questão de manter as cicatrizes. Tinha muitas e se orgulhava de cada uma delas.


– Um milagre – balbuciou o homem, tocando na Bíblia ao lado do caixa, mas recolhendo a mão quando Fred olhou para ela com um visível ar de reprovação.


– Um pequeno milagre para você. Melhor dos que os que estão aí no seu livreto.


Tateou os bolsos do casaco, até encontrar um maço de cigarros. Estava amassado, com sangue, e um belo buraco de bala no meio. Olhou para ele com desânimo. Rapidamente o dono do bar estendeu um dos seus para ele, dando três passos trôpegos. Fred acendeu e tragou profundamente, agradecendo com um aceno de cabeça. Os olhos do homem vasculhavam os buracos na camisa de Fred, procurando pela pele abaixo deles. Ele se ergueu e o homem desviou os olhos com medo. Eles caíram sobre os corpos espalhados pelo chão do bar. Então ele se deu conta novamente do que ocorrera ali. Tudo parecia irreal.


– O que faço com eles? – perguntou boquiaberto, vendo que o outro estava se dirigindo para a saída, passando por cima dos corpos estendidos.


– A polícia deve aparecer daqui a pouco. Eles cuidarão dos corpos – respondeu, dando uma cusparada no cadáver mais próximo. – Das almas eu já cuidei.


Fred virou-se, caminhando com firmeza. Quem olhasse rapidamente para ele, pensaria que nada daquilo havia ocorrido. Um olhar mais atento revelaria exatamente o contrário. Não só havia ocorrido, como já ocorrera muitas vezes antes, e ocorrerá muitas vezes no futuro.


Quando Fred havia deixado o bar havia alguns minutos, o copeiro finalmente saiu da cozinha. O garoto, ao ver os corpos, começou fazer o sinal da cruz, mas o dono do bar lhe deu um safanão, fazendo que parasse. Não era apropriado.


Fim.


Este texto foi originalmente publicado no site Novas Visões de São Paulo

29.9.08

A Igreja do Diabo

Um mestre analisa as contradições humanas por Machado de Assis

CAPÍTULO I / DE UMA IDÉIA MIRÍFICA

Conta um velho manuscrito beneditino que o Diabo, em certo dia, teve a idéia de fundar uma igreja. Embora os seus lucros fossem contínuos e grandes, sentia-se humilhado com o papel avulso que exercia desde séculos, sem organização, sem regras, sem cânones, sem ritual, sem nada. Vivia, por assim dizer, dos remanescentes divinos, dos descuidos e obséquios humanos. Nada fixo, nada regular. Por que não teria ele a sua igreja? Uma igreja do Diabo era o meio eficaz de combater as outras religiões, e destruí-las de uma vez.

-- Vá, pois, uma igreja, concluiu ele. Escritura contra Escritura, breviário contra breviário. Terei a minha missa, com vinho e pão à farta, as minhas prédicas, bulas, novenas e todo o demais aparelho eclesiástico. O meu credo será o núcleo universal dos espíritos, a minha igreja uma tenda de Abraão. E depois, enquanto as outras religiões se combatem e se dividem, a minha igreja será única; não acharei diante de mim, nem Maomé, nem Lutero. Há muitos modos de afirmar; há só um de negar tudo.

Dizendo isto, o Diabo sacudiu a cabeça e estendeu os braços, com um gesto magnífico e varonil. Em seguida, lembrou-se de ir ter com Deus para comunicar-lhe a idéia, e desafiá-lo; levantou os olhos, acesos de ódio, ásperos de vingança, e disse consigo: -- Vamos, é tempo. E rápido, batendo as asas, com tal estrondo que abalou todas as províncias do abismo, arrancou da sombra para o infinito azul.



CAPÍTULO II / ENTRE DEUS E O DIABO

Deus recolhia um ancião, quando o Diabo chegou ao céu. Os serafins que engrinaldavam o recém-chegado, detiveram-no logo, e o Diabo deixou-se estar à entrada com os olhos no Senhor.

-- Que me queres tu? perguntou este.

-- Não venho pelo vosso servo Fausto, respondeu o Diabo rindo, mas por todos os Faustos do século e dos séculos.

-- Explica-te.

-- Senhor, a explicação é fácil; mas permiti que vos diga: recolhei primeiro esse bom velho; dai-lhe o melhor lugar, mandai que as mais afinadas cítaras e alaúdes o recebam com os mais divinos coros...

-- Sabes o que ele fez? perguntou o Senhor, com os olhos cheios de doçura.

-- Não, mas provavelmente é dos últimos que virão ter convosco. Não tarda muito que o céu fique semelhante a uma casa vazia, por causa do preço, que é alto. Vou edificar uma hospedaria barata; em duas palavras, vou fundar uma igreja. Estou cansado da minha desorganização, do meu reinado casual e adventício. É tempo de obter a vitória final e completa. E então vim dizer-vos isto, com lealdade, para que me não acuseis de dissimulação... Boa idéia, não vos parece?

-- Vieste dizê-la, não legitimá-la, advertiu o Senhor,

-- Tendes razão, acudiu o Diabo; mas o amor-próprio gosta de ouvir o aplauso dos mestres. Verdade é que neste caso seria o aplauso de um mestre vencido, e uma tal exigência... Senhor, desço à terra; vou lançar a minha pedra fundamental.

-- Vai

-- Quereis que venha anunciar-vos o remate da obra?

-- Não é preciso; basta que me digas desde já por que motivo, cansado há tanto da tua desorganização, só agora pensaste em fundar uma igreja?

O Diabo sorriu com certo ar de escárnio e triunfo. Tinha alguma idéia cruel no espírito, algum reparo picante no alforje da memória, qualquer cousa que, nesse breve instante da eternidade, o fazia crer superior ao próprio Deus. Mas recolheu o riso, e disse:

-- Só agora concluí uma observação, começada desde alguns séculos, e é que as virtudes, filhas do céu, são em grande número comparáveis a rainhas, cujo manto de veludo rematasse em franjas de algodão. Ora, eu proponho-me a puxá-las por essa franja, e trazê- las todas para minha igreja; atrás delas virão as de seda pura... -- Velho retórico! murmurou o Senhor.

-- Olhai bem. Muitos corpos que ajoelham aos vossos pés, nos templos do mundo, trazem as anquinhas da sala e da rua, os rostos tingem-se do mesmo pó, os lenços cheiram aos mesmos cheiros, as pupilas centelham de curiosidade e devoção entre o livro santo e o bigode do pecado. Vede o ardor, -- a indiferença, ao menos, -- com que esse cavalheiro põe em letras públicas os benefícios que liberal- mente espalha, -- ou sejam roupas ou botas, ou moedas, ou quais- quer dessas matérias necessárias à vida... Mas não quero parecer que me detenho em cousas miúdas; não falo, por exemplo, da placidez com que este juiz de irmandade, nas procissões, carrega piedosamente ao peito o vosso amor e uma comenda... Vou a negócios mais altos...

Nisto os serafins agitaram as asas pesadas de fastio e sono. Miguel e Gabriel fitaram no Senhor um olhar de súplica, Deus interrompeu o Diabo.

-- Tu és vulgar, que é o pior que pode acontecer a um espírito da tua espécie, replicou-lhe o Senhor. Tudo o que dizes ou digas está dito e redito pelos moralistas do mundo. É assunto gasto; e se não tens força, nem originalidade para renovar um assunto gasto, melhor é que te cales e te retires. Olha; todas as minhas legiões mostram no rosto os sinais vivos do tédio que lhes dás. Esse mesmo ancião parece enjoado; e sabes tu o que ele fez?

-- Já vos disse que não.

-- Depois de uma vida honesta, teve uma morte sublime. Colhido em um naufrágio, ia salvar-se numa tábua; mas viu um casal de noivos, na flor da vida, que se debatiam já com a morte; deu-lhes a tábua de salvação e mergulhou na eternidade. Nenhum público: a água e o céu por cima. Onde achas aí a franja de algodão?

-- Senhor, eu sou, como sabeis, o espírito que nega.

-- Negas esta morte?

-- Nego tudo. A misantropia pode tomar aspecto de caridade; deixar a vida aos outros, para um misantropo, é realmente aborrecê-los...

-- Retórico e subtil! exclamou o Senhor. Vai; vai, funda a tua igreja; chama todas as virtudes, recolhe todas as franjas, convoca todos os homens... Mas, vai! vai!
Debalde o Diabo tentou proferir alguma coisa mais. Deus impusera-lhe silêncio; os serafins, a um sinal divino, encheram o céu com as harmonias de seus cânticos. O Diabo sentiu, de repente, que se achava no ar; dobrou as asas, e, como um raio, caiu na terra.

CAPÍTULO Ill / A BOA NOVA AOS HOMENS

Uma vez na terra, o Diabo não perdeu um minuto. Deu-se pressa em enfiar a cogula beneditina, como hábito de boa fama, e entrou a espalhar uma doutrina nova e extraordinária, com uma voz que reboava nas entranhas do século. Ele prometia aos seus discípulos e fiéis as delícias da terra, todas as glórias, os deleites mais íntimos. Confessava que era o Diabo; mas confessava-o para retificar a noção que os homens tinham dele e desmentir as histórias que a seu respeito contavam as velhas beatas.

-- Sim, sou o Diabo, repetia ele; não o Diabo das noites sulfúreas, dos contos soníferos, terror das crianças, mas o Diabo verdadeiro e único, o próprio gênio da natureza, a que se deu aquele nome para arredá-lo do coração dos homens. Vede-me gentil a airoso. Sou o vosso verdadeiro pai. Vamos lá: tomai daquele nome, inventado para meu desdouro, fazei dele um troféu e um lábaro, e eu vos darei tudo, tudo, tudo, tudo, tudo, tudo...

Era assim que falava, a princípio, para excitar o entusiasmo, espertar os indiferentes, congregar, em suma, as multidões ao pé de si. E elas vieram; e logo que vieram, o Diabo passou a definir a dou- trina. A doutrina era a que podia ser na boca de um espírito de negação. Isso quanto à substância, porque, acerca da forma, era umas vezes subtil, outras cínica e deslavada.

Clamava ele que as virtudes aceitas deviam ser substituídas por outras, que eram as naturais e legítimas. A soberba, a luxúria, a preguiça foram reabilitadas, e assim também a avareza, que declarou não ser mais do que a mãe da economia, com a diferença que a mãe era robusta, e a filha uma esgalgada. A ira tinha a melhor defesa na existência de Homero; sem o furor de Aquiles, não haveria a Ilíada: "Musa, canta a cólera de Aquiles, filho de Peleu"... O mesmo disse da gula, que produziu as melhores páginas de Rabelais, e muitos bons versos do Hissope; virtude tão superior, que ninguém se lembra das batalhas de Luculo, mas das suas ceias; foi a gula que realmente o fez imortal. Mas, ainda pondo de lado essas razões de ordem literária ou histórica, para só mostrar o valor intrínseco daquela virtude, quem negaria que era muito melhor sentir na boca e no ventre os bons manjares, em grande cópia, do que os maus bocados, ou a saliva do jejum? Pela sua parte o Diabo prometia substituir a vinha do Senhor, expressão metafórica, pela vinha do Diabo, locução direta e verdadeira, pois não faltaria nunca aos seus com o fruto das mais belas cepas do mundo. Quanto à inveja, pregou friamente que era a virtude principal, origem de prosperidades infinitas; virtude preciosa, que chegava a suprir todas as outras, e ao próprio talento.

As turbas corriam atrás dele entusiasmadas. O Diabo incutia-lhes, a grandes golpes de eloqüência, toda a nova ordem de cousas, trocando a noção delas, fazendo amar as perversas e detestar as sãs.

Nada mais curioso, por exemplo, do que a definição que ele dava da fraude. Chamava-lhe o braço esquerdo do homem; o braço direito era a força; e concluía: muitos homens são canhotos, eis tudo. Ora, ele não exigia que todos fossem canhotos; não era exclusivista. Que uns fossem canhotos, outros destros; aceitava a todos, menos os que não fossem nada. A demonstração, porém, mais rigorosa e profunda, foi a da venalidade. Um casuísta do tempo chegou a confessar que era um monumento de lógica. A venalidade, disse o Diabo, era o exercício de um direito superior a todos os direitos. Se tu podes vender a tua casa, o teu boi, o teu sapato, o teu chapéu, cousas que são tuas por uma razão jurídica e legal, mas que, em todo caso, estão fora de ti, como é que não podes vender a tua opinião, o teu voto, a tua palavra, a tua fé, cousas que são mais do que tuas, porque são a tua própria consciência, isto é, tu mesmo? Negá-lo é cair no obscuro e no contraditório. Pois não há mulheres que vendem os cabelos? não pode um homem vender uma parte do seu sangue para transfundi-lo a outro homem anêmico? e o sangue e os cabelos, partes físicas, terão um privilégio que se nega ao caráter, à porção moral do homem? Demonstrando assim o princípio, o Diabo não se demorou em expor as vantagens de ordem temporal ou pecuniária; depois, mostrou ainda que, à vista do preconceito social, conviria dissimular o exercício de um direito tão legítimo, o que era exercer ao mesmo tempo a venalidade e a hipocrisia, isto é, merecer duplicadamente. E descia, e subia, examinava tudo, retificava tudo. Está claro que combateu o perdão das injúrias e outras máximas de brandura e cordialidade. Não proibiu formalmente a calúnia gratuita, mas induziu a exercê-la mediante retribuição, ou pecuniária, ou de outra espécie; nos casos, porém, em que ela fosse uma expansão imperiosa da força imaginativa, e nada mais, proibia receber nenhum salário, pois equivalia a fazer pagar a transpiração. Todas as formas de respeito foram condenadas por ele, como elementos possíveis de um certo decoro social e pessoal; salva, todavia, a única exceção do interesse. Mas essa mesma exceção foi logo eliminada. pela consideração de que o interesse, convertendo o respeito em simples adulação, era este o sentimento aplicado e não aquele.

Para rematar a obra, entendeu o Diabo que lhe cumpria cortar por toda a solidariedade humana. Com efeito, o amor do próximo era um obstáculo grave à nova instituição. Ele mostrou que essa regra era urna simples invenção de parasitas e negociantes insolváveis; não se devia dar ao próximo senão indiferença; em alguns casos, ódio ou desprezo. Chegou mesmo à demonstração de que a noção de próximo era errada, e citava esta frase de um padre de Nápoles, aquele fino e letrado Galiani, que escrevia a uma das marquesas do antigo regímen: "Leve a breca o próximo! Não há próximo!" A única hipótese em que ele permitia amar ao próximo era quando se tratasse de amar as damas alheias, porque essa espécie de amor tinha a particularidade de não ser outra cousa mais do que o amor do indivíduo a si mesmo. E como alguns discípulos achassem que uma tal explicação, por metafísica, escapava à compreensão das turbas, o Diabo recorreu a um apólogo: -- Cem pessoas tomam ações de um banco, para as operações comuns; mas cada acionista não cuida realmente senão nos seus dividendos: é o que acontece aos adúlteros. Este apólogo foi incluído no livro da sabedoria.

CAPÍTULO IV / FRANJAS E FRANJAS

A PREVISÃO do Diabo verificou-se. Todas as virtudes cuja capa de veludo acabava em franja de algodão, uma vez puxadas pela franja, deitavam a capa às urtigas e vinham alistar-se na igreja nova. Atrás foram chegando as outras, e o tempo abençoou a instituição. A igreja fundara-se; a doutrina propagava-se; não havia uma região do globo que não a conhecesse, uma língua que não a traduzisse, uma raça que não a amasse. O Diabo alçou brados de triunfo.
Um dia. porém, longos anos depois notou o Diabo que muitos dos seus fiéis, às escondidas, praticavam as antigas virtudes. Não as praticavam todas, nem integralmente, mas algumas, por partes, e, como digo, às ocultas. Certos glutões recolhiam-se a comer frugalmente três ou quatro vezes por ano, justamente em dias de preceito católico; muitos avaros davam esmolas, à noite, ou nas ruas mal povoadas; vários dilapidadores do erário restituíam-lhe pequenas quantias; os fraudulentos falavam, uma ou outra vez, com o coração nas mãos, mas com o mesmo rosto dissimulado, para fazer crer que estavam embaçando os outros.

A descoberta assombrou o Diabo. Meteu-se a conhecer mais diretamente o mal, e viu que lavrava muito. Alguns casos eram até incompreensíveis, como o de um droguista do Levante, que envenenara longamente uma geração inteira, e, com o produto das drogas socorria os filhos das vítimas. No Cairo achou um perfeito ladrão de camelos, que tapava a cara para ir às mesquitas. O Diabo deu com ele à entrada de uma, lançou-lhe em rosto o procedimento; ele negou, dizendo que ia ali roubar o camelo de um drogman; roubou-o, com efeito, à vista do Diabo e foi dá-lo de presente a um muezim, que rezou por ele a Alá. O manuscrito beneditino cita muitas outra descobertas extraordinárias, entre elas esta, que desorientou completamente o Diabo. Um dos seus melhores apóstolos era um calavrês, varão de cinqüenta anos, insigne falsificador de documentos, que possuía uma bela casa na campanha romana, telas, estátuas, biblioteca, etc. Era a fraude em pessoa; chegava a meter-se na cama para não confessar que estava são. Pois esse homem, não só não furtava ao jogo, como ainda dava gratificações aos criados. Tendo angariado a amizade de um cônego, ia todas as semanas confessar-se com ele, numa capela solitária; e, conquanto não lhe desvendasse nenhuma das suas ações secretas, benzia-se duas vezes, ao ajoelhar-se, e ao levantar-se. O Diabo mal pôde crer tamanha aleivosia. Mas não havia duvidar; o caso era verdadeiro.

Não se deteve um instante. O pasmo não lhe deu tempo de refletir, comparar e concluir do espetáculo presente alguma cousa análoga ao passado. Voou de novo ao céu, trêmulo de raiva, ansioso de conhecer a causa secreta de tão singular fenômeno. Deus ouviu-o com infinita complacência; não o interrompeu, não o repreendeu, não triunfou, sequer, daquela agonia satânica. Pôs os olhos nele, e disse:

-- Que queres tu, meu pobre Diabo? As capas de algodão têm agora franjas de seda, como as de veludo tiveram franjas de algodão. Que queres tu? É a eterna contradição humana.

Meio que abduzidos

O relato de um suposto contato imediato por Ataíde Tartari


Olha, cara, pra começo de conversa eu acho que eu não vou poder te contar tudinho do que aconteceu naquele fim de semana. Você sabe, eu não quero sujar a barra pro meu lado nem pro lado do Sucrí; principalmente pro lado do Sucrí. Te juro mesmo, cara, se o pai do Sucrí souber de tudo o coitado tá ferrado. O pai dele é tão filho da puta que às vezes até eu que não sou filho dele nem nada tenho medo.

Eu até hoje me lembro da primeira vez que o pai dele meteu medo na gente. A gente ainda era, tipo, criança nessa vez que o seu Caralho -- é lógico que o nome dele não é esse -- é que a gente sempre chama ele assim em vez de "seu Carvalho" -- eu me lembro dessa vez que o seu Caralho pegou a gente brincando com dinheiro preso num fio de pesca. A gente amarrava uma nota numa linha de náilon, tá ligado?, e deixava ela na calçada enquanto a gente ficava escondido no jardim da casa. Daí chegava um otário, via a grana, tentava pegar ela, e a gente puxava ela pra dentro do jardim. O otário sempre saía correndo atrás pensando que era o vento que tava levando ela embora. O cara só se ligava quando via a gente no jardim rindo da cara dele.

Mas nesse dia o último otário foi justamente o dono da casa, seu Caralho. Ele foi com tanta fissura atrás da grana que até bateu com a cabeça na grade do jardim...Pra que! O homem ficou tão puto que não conseguia nem falar! Primeiro ele tentou dar um esporro na gente, falando que a gente já tava ficando meio grande pra essas brincadeiras de criança; depois ele falou que a nota que a gente usou era muita grana e que a gente ainda não sabia o valor do dinheiro; essa merda toda. Aí sobrou pro coitado do Sucrí. Deu pra ver que o velho dele já tinha tomado todas, tava caidaço. A gente saiu de fininho mas depois ficou na porta ouvindo a família toda berrando; o seu Caralho, bebaço, xingando a mulher e o filho, e a mulher chamando ele de cachaceiro, te juro mesmo.

Aliás, quase todas as vezes que a gente cruza com o seu Caralho ele tá na cantina tomando uma. Quando ele vê a gente ele esconde o copo atrás da caixa registradora bem rapidinho. Há uns anos atrás, quando a gente era criança, o Sucrí falava que o pai dele só tomava água tônica. E a gente sempre respondia, "água Atômica". É claro que o Sucrí não fala mais isso hoje em dia.

Mas eu só tô te dizendo isso pra você não pensar que eu tô viajando; esse velho é foda mesmo. Teve até uma vez que ele arrebentou os patins do Sucrí com uma marreta só porque o moleque caiu e se ralou todo. Te juro mesmo.

O Sucrí é o meu melhor amigo desde que eu me lembro. A gente nem estuda no mesmo colégio nem nada mas a gente se conhece, tipo, desde que nasceu. E é só atravessar a rua que eu tô na casa dele. O que acontece toda hora; a gente tá sempre junto. Minha mãe até brinca comigo perguntando quando é que vai ser o nosso casamento. Eu não vou casar com ele, é lógico. Mas a gente fez até um pacto que, quando a gente começar a namorar sério vai ter que ser com duas amigas, ou até com duas irmãs, de modo que a gente vai estar sempre junto, sair sempre junto; essas coisas.

Um negócio que o Sucrí não gosta muito de falar é o seu nome. Ele até que gosta do apelido que tem, Sucrí. Quer dizer, o apelido dele nem é Sucrí; é Sucrilho. Isso vem de uma época que a escola dele servia um monte de tipo de merenda; o moleque podia escolher à vontade. E não é que o moleque tinha as manhas de comer sucrilhos todo santo dia! Quer dizer, pelo menos foi isso o que ele me disse pra explicar esse apelido que ele ganhou na escola dele. O nome dele de verdade é James...James Dean da Silva Carvalho. Te juro mesmo. Aquele bebaço do pai dele devia tá viajando quando batizou o coitado.

Mas esse negócio de disco voador, de ufologia, quem começou mesmo com isso fui eu. Tem um professor lá na minha escola, o Barroso, Jair Barroso, que toda hora interrompe a aula pra falar dessa coisa de objetos não identificados que capotaram um caminhão na estrada, fizeram um monte de círculos gigantes numa plantação de trigo, apagaram todas as luzes de uma cidade, e mais um monte de coisas estranhas assim. Ele até leva fotos pra mostrar pra gente e tudo o mais. O mais legal de tudo isso é que quase nunca ele dá aula; ele só fica contando essas histórias pra gente. E quando o pessoal sente que ele vai dar aula mesmo, que ele começa a aula a fim de dar aula, sempre tem alguém que levanta a mão pra perguntar alguma coisa de disco voador pra ele. É pouco engraçado!

Teve uma vez -- acho que foi uns dias antes daquele fim de semana -- que o professor Barroso entrou na classe com aquela cara que diz que ele vai falar só de Física e mais nada; o cara é professor de Física. Quando ele chega com essa cara a gente brinca e diz que ele "acabou de dar um barroso" no banheiro da escola. Dessa vez era minha vez de levantar a mão e perguntar alguma coisa sobre disco voador. Eu tinha que parecer interessado e fazer uma pergunta, tipo, pertinente. E o pior é que eu tava interessado mesmo! Aí eu levantei minha mão e disse, "Professor!" O Barroso meio que sabia que eu ia fazer uma pergunta de ufologia e falou pra mim, "Olha, Cléber, a matéria tá atrasada e a prova é daqui a duas semanas, então é melhor que sua pergunta seja sobre a matéria, senão eu não vou responder."

Parecia que o esquema todo já tava ferrado; a gente ia ter que ter uma aula de Física de qualquer jeito. Mas aí eu não podia queimar o filme com os meus colegas, eu tinha que fazer uma pergunta legal. Eu disse, "Eu não sei se a pergunta é sobre a matéria de hoje, professor, mas ela é sobre Física...eu acho." Aí ele riu e disse, "Você acha?" Eu só disse que sim com a cabeça e ele então mandou eu perguntar. Com a maior cara de pau eu perguntei se aquela autópsia do ET que tinha dado no Fantástico um domingo antes era fisicamente possível. Quer dizer, esse foi o jeito que eu arrumei de misturar os ETs e a Física numa coisa só...E não é que o cara aceitou a pergunta e passou o resto da semana falando tudo o que ele sabia sobre o incidente em Roswell, que aquela autópsia era na verdade uma representação teatral da autópsia verdadeira, e tudo o mais?

Bom, mas o que eu queria dizer mesmo sobre o Barroso é que foi ele que me introduziu nessa coisa toda. Nessa coisa de ufologia, quero dizer. E também nessa coisa que eu e o Sucrí fizemos naquele fim de semana em Campos.

Se você conhece Campos do Jordão você sabe onde fica Capivarí, aquele centrinho onde sempre tem um agito e aquelas cadeirinhas que te levam lá pra cima do morro. Eu adoro aquelas cadeirinhas. Pra te dizer a verdade eu gosto de tudo que é alto e que voa. Eu adoro subir no último andar de um prédio, me debruçar na sacada e ficar olhando pra baixo. Eu adoro isso. Te juro mesmo. Me dá uma sensação gostosa, sei lá. Nem sei se eu sou meio louco ou o quê, mas eu adoro essa sensação. Te juro que quando eu mudar da minha casa eu vou mudar pro último andar de um puta prédio bem alto e vou ficar debruçado na sacada do apartamento o dia inteiro, só olhando pra baixo e sentindo aquela sensação gostosa. Te juro que eu vou.

Naquela excursão pra Campos eu devo ter subido e descido umas dez vezes na cadeirinha só pela sensação. Já o Sucrí é meio cuzão pra essas coisas. Ele diz que não tem a mesma sensação que eu; ele tá sempre pensando que alguma coisa vai quebrar e ele vai cair. E tem um monte de gente que é medrosa assim que nem ele. Uma vez eu cheguei a conhecer um cara que não podia nem chegar perto da sacada de um apartamento. Eu já tava na sacada, tipo, meio que debruçado do jeito que eu gosto, e o cuzão ficava berrando lá da sala, "Você tá louco, moleque! Você tá louco!" Eu me mijava de rir só de olhar pra cara dele. Era pouco engraçado! Só de chegar perto da sacada o cara parecia que ia se cagar todo. Te juro mesmo.

Mas aí o Sucrí teve que subir de qualquer jeito na cadeirinha naquela tarde de sábado porque era alí, lá em cima, que aquela parte da excursão ia começar. O professor Barroso chamou aquilo de "trekking", se não me engano. Era só o professor Barroso e a professora Lúcia que tavam acompanhando a gente nessa porra de trekking. Essa Lúcia é uma grandona gostosa que dá aula de educação física pra mulherada. Ela é forte e gostosona mas também é um puta jaburú. Tem gente que diz que ela é sapato -- porque ela é assim, feia e forte, tá ligado? -- mas eu te juro que eu vi ela entrando numas com o Barroso nessa excursão. Pode até ser que ela tenha dado pro Barroso, sei lá. Toda vez que eu tô no banheiro e, você sabe, pensando em todas as gostosas que eu conheço, eu sempre fico com medo de pensar na Lúcia Jaburú. Se bem quem que eu tô louquinho pra saber o que uma mulher forte que nem aquela é capaz de fazer com um cara na cama. Já me disseram que uma mulher que nem aquela pode ser capaz até de aleijar um cara.

Mas pra te dizer a verdade eu nem sei se o Barroso é casado nem nada. Só sei que ele e a Lúcia Jaburú tavam juntinhos naquele trekking. Além deles, é claro, tava quase todo mundo da minha classe e mais um monte de gente da minha escola. O Sucrí era o penetra da excursão; eu tive que trazer ele junto pro coitado não ficar sozinho o fim de semana todo. E ele até que tava aguentando bem a porra do trekking até o fim da tarde naquele sábado quando a gente viu os discos pousando.

Tava ficando meio tarde e a gente tinha que voltar antes que escurecesse, mas o Barroso, sabe como é, ufólogo de carteirinha, não ia deixar aquilo passar batido; não ia mesmo. Parecia que tinha uma frota inteira de discos pousando; eram umas luzes que vinham de duas em duas e de cima pra baixo, fazendo, tipo, um vôo rasante antes de pousarem. Às vezes vinha uma luz sozinha e fazia a mesma coisa. Primeiro o Barroso chegou a pensar que eram luzes de faróis de carros numa estrada, ou coisa assim, porque já tava começando a escurecer e algumas nuvens podiam, tipo, funcionar como um espelho; mas aí ele viu umas luzes paradas, flutuando, indo pro lado contrário, ou indo contra outras luzes, e disse que aquilo era um "padrão inteligente" ou coisa assim. É lógico que todo mundo ficou ligado no que ele falava; era igualzinho às aulas dele.

Foi aí que o homem resolveu investigar essa coisa dos discos, esse "incidente ufológico". Mas o cara tava a fim de ir sozinho; ele pegou a máquina fotográfica dele e pediu pra Lúcia Jaburú levar todo mundo de volta pro hotel. É claro que o pessoal começou a chiar; todo mundo queria ir com ele e encarar os discos. Foi só depois de um puta bate-boca que o Barroso concordou em levar dois caras com ele, os dois que ele achava que tavam mais ligados nesse negócio de ufologia e podiam ajudar ele com a investigação. Ele escolheu o Zorêia, um orelhudo esquisitão metido a cientista, e mais eu. Tá na cara que ele se lembrou que eu sempre fazia as melhores perguntas sobre ufologia, perguntas de quem tá por dentro da coisa. Não é que eu sou um fanático que nem ele nem nada; acontece que eu já comprei um monte de revistas de ufologia que ele recomenda -- revistas que nem a Planeta -- e também já recortei essas coisas do jornal do meu pai pra mostrar pra ele; você sabe, pra fazer uma média. E ele gosta; ele gosta quando eu levo esses recortes de jornal pra ele. Ele até aproveita pra falar sobre o assunto e tudo o mais.

O Sucrí sabe a mesma coisa que eu sobre ufologia. Como a gente tá sempre junto, o moleque acaba lendo e sabendo as mesmas coisas que eu. E foi isso que eu disse pro Barroso quando eu falei que o Sucrí tinha que ir junto também. O professor nem falou nada; ele só saiu andando na direção das luzes e nós três seguimos ele. Aí, cara, a gente andou um tempão, um tempão mesmo, até que quase escureceu de vez.

Quanto mais perto a gente chegava, mais longe parecia que a porra dos discos tavam. A gente não ia chegar nunca. Quando a gente parou numa curvinha da estrada pra beber um pouco d'água, o Zorêia começou a chiar. O cuzão disse que tava cansado e que ia voltar, mas o Barroso disse que não, que ele não podia voltar sozinho porque era responsabilidade dele e tudo o mais. O problema é que o Zorêia é tão chato, ele reclama tanto, que o professor Barroso acabou concordando que todo mundo devia voltar pro hotel. Aí fodeu...

Olha, eu não vou te contar direito como aconteceu, primeiro porque naquela madruga rolou uns lances que eu não posso te contar, uns lances que não são da conta de mais ninguém além de mim e do Sucrí, e também porque eu nem me lembro de tudo. Eu só sei que eu sou meio louco. Te juro mesmo. Quando eu faço uma besteira sem pensar direito no que eu tô fazendo, eu continuo com essa besteira até o fim, sem voltar atrás. Eu até sei que eu tenho que voltar atrás e tudo o mais, mas mesmo assim eu não volto. Eu não volto mesmo, de jeito nenhum. E em vez de fazer uma besteira só eu acabo fazendo um monte delas na sequência, só pra não voltar atrás. E dessa vez eu fui longe mesmo. Eu te juro que eu não imaginava que isso ia dar tanta confusão.

Quando os soldados daquele grupo de salvamento acharam eu e o Sucrí, no dia seguinte, a gente tava todo sujo, ralado e meio que congelado. O Sucrí ainda tava com os lábios roxos de passar a madrugada naquele puta frio. Quer dizer, não tava tão frio assim, mas em Campos sempre esfria legal à noite; se a gente pára de se mexer, congela. Naquela hora que os soldados acharam a gente, a gente tava de volta na mesma estrada de onde a gente tinha sumido; quase no mesmo lugar. A primeira coisa que eles fizeram foi tirar os nossos casacos, que tavam úmidos, e enrolar a gente nos cobertores. Foi só depois que a gente chegou no quartel deles que a gente falou alguma coisa. E o pessoal todo tava lá; o professor Barroso e a Lúcia Jaburú, nossos colegas, o gerente do hotel, os médicos do quartel -- e até o Aqui Agora! Eu e o Sucrí tínhamos virado, tipo, celebridades. Agora nós éramos que nem aqueles moleques que tinham sumido na Serra do Mar uns meses antes. A diferença é que a história que a gente tinha pra contar era bem diferente da deles; bem diferente mesmo.

Em primeiro lugar, nossa história era bem curtinha. Eu e o Sucrí repetimos as mesmas palavras pra todo mundo e pras câmeras do Aqui Agora também: a gente tinha visto um caminhão fazendo a curva na estradinha e correu pra não ser atropelado, aí apareceu uma luz mais forte ainda que o farol do caminhão e a gente sentiu um tipo de dor meio gelada na nuca e apareceu na estrada de novo, só que aí já era o dia seguinte. Pra completar essa história curtinha, eu e o Sucrí tínhamos uma marca bem parecida nas nossas nucas. Era um buraquinho pequeno, um tipo dum furo. O Barroso juntou as coisas na cabeça dele, bem rapidinho, e começou a explicar pra todo mundo o que tinha acontecido com a gente. Eu e o Sucrí tínhamos sido abduzidos.

Abduzidos é, tipo, o jeito que os ufólogos chamam aqueles que foram raptados por discos pra servir de cobaia. Eu e o Sucrí tínhamos sido abduzidos. O furo na nuca era uma ligação feita com o nosso bulbo cerebral pra controlar o nosso corpo e pra colher toda a informação de nosso cérebro também -- o que não é grande coisa...Mas aí a confusão toda só cresceu: o Barroso ficou tão famoso quanto a gente; as fotos das nossas nucas apareceram em todos os jornais; tinha um monte de gente dizendo que o único jeito de descobrir tudo era hipnotizar a gente...

Mas o que eu queria te dizer mesmo, de verdade, é que agora eu acho isso tudo uma puta sacanagem. Te juro mesmo. No começo até que eu achei legal ficar famoso e tudo o mais, mas agora eu acho isso uma puta sacanagem. Eu já tive dos dois lados e eu sei como é que é; eu sei do que eu tô falando. Eu acho que ninguém nasce otário; a gente é feito de otário pelas outras pessoas. Sempre que a gente ouve uma história maluca, fantástica, absurda, a gente acaba, tipo, confiando na pessoa que tá contado a história. Na minha casa, por exemplo, todo mundo acredita quando alguém aparece na televisão dizendo que pinta quadros de pintores mortos ou escreve livros de escritores mortos. O pessoal só discute como aquilo é possível e não a veracidade do que o cara tá dizendo. A última coisa que o pessoal pensa é que o que o cara tá fazendo é nada mais nada menos que mentir. Tem até um velhinho famoso, adorado por deus e todo mundo, e pela minha mãe também, que diz que escreve livros de caras que já morreram. Você deve saber de quem eu tô falando. Eu acho que ninguém nunca disse na cara dele que ele é um puta dum mentiroso cara de pau que faz um país inteiro de otário. Se alguém pensa isso dele, não tem coragem de falar.

O que eu tô tentando te dizer é que é muito fácil inventar essas histórias, e que é muito difícil alguém não acreditar no que você tá contando, ou pelo menos não acreditar em você. A única coisa que eu e o Sucrí precisamos foi ler algumas revistas de ufologia e usar o saca-rolhas do canivete suíço que eu levei na excursão. A gente fez os furos com esse saca-rolhas. Doeu um pouquinho, mas tudo bem.

A gente não tinha planejado nada. Te juro mesmo. É que nem eu te disse: eu sou meio louco. Quando esse caminhão acendeu os faróis em cima da gente, eu de repente fiz essa besteira e puxei o Sucrí pelo braço e a gente escorregou barranco abaixo. Aí, em vez de tentar voltar, a gente fugiu, fugiu a madrugada toda, deu um tempo fazendo uma coisa que a gente de repente ficou a fim de fazer, e acabou planejando contar essa historinha besta que na verdade não conta nada; ela só serve pra deixar caras que nem o Barroso imaginando um monte de coisas...o que não deixa de ser uma puta sacanagem. É uma sacanagem igual e do velhinho que eu te falei, e igual a de um monte de gente famosa e que até ganha dinheiro com isso.

Se você quer saber a verdade, agora eu sempre acho que todo mundo tá fazendo a gente de otário o tempo todo. Se eu fiz isso com um monte de gente que eu gosto, tem um monte de gente que faz isso com a gente mesmo gostando da gente. E é uma puta sacanagem. Pelo menos eu acho isso.

Este texto foi escrito para a antologia ufológica Estranhos Contatos (organizada pelo Causo e publicada pela ed. Caioá em 1998.)

O carteiro das galáxias

O perfil de um ufólogo grego que transmite mensagens de ETs em Florianópolis por Romeu Martins


Quem lê casualmente a relação dos pontos comerciais na portaria do Edifício Pórtico, localizado na mais movimentada rua do Centro de Florianópolis, a Felipe Schmidt, pode estranhar encontrar ao lado das tradicionais salas de advogados, contadores e cirurgiões dentistas a sigla Socex. O significado dela ajuda a aumentar o espanto - Sociedade de Estudos Extraterrestres. Logo na porta da sala 112 um desenho de cinco supostos alienígenas, com um deles fazendo a famosa saudação com a mão direita erguida em sinal de paz, recepciona aqueles que não agüentarem de curiosidade. E lá dentro é o próprio presidente e fundador da Sociedade, Eustáquio Andréa Patounas, quem explica o objetivo da Socex: "Levar a palavra dos irmãos extraterrestres para todas as pessoas".




Patounas se mostra entusiasmado quando começa a falar na mensagem desses irmãos que moram tão longe. O ufólogo nasceu em 1951 na capital da Grécia - o que torna bastante óbvio seu nome incomum e o apelido pelo qual é conhecido entre os amigos, Grego -, e veio para o Brasil, terra natal de seu pai, em 1954. Para Santa Catarina, estado onde mora com a mulher e quatro filhos, Grego veio em fevereiro de 1988, segundo ele seguindo orientações vindas lá de cima.


Sua missão, como diz, seria harmonizar as três bases extraterrestres de Florianópolis (infelizmente, ele não quis revelar ao repórter a localização de tais locais). Grego criou a Socex no dia primeiro de agosto de 1991 em uma sala na Avenida Central do Kobrassol, na cidade de São José, no mesmo lugar onde antes contava com uma loja de lingeries. Desde então, ele que também já foi gerente de banco e representante de vendas, dedica-se exclusivamente à causa da Ufologia. Mudou-se para o Pórtico no final de 1994, ocupando uma sala doada por um sócio de sua entidade.


A primeira experiência ufológica de Grego foi aos 12 anos, quando teria avistado um disco voador sobre sua casa, em São Paulo. "Eu senti um bafo, um calorão, algo me impelindo a olhar para cima". O que viu marcou o início de mais de 30 anos voltados ao estudo e divulgação de tudo que diga respeito a extraterrestres. Aquele primeiro contato é o mais simples dos cinco graus estudados pela Ufologia, o simples avistamento. O quinto, e mais complexo, segundo informa o especialista, seria o implante de um chip alienígena no cérebro de um terráqueo. O presidente da Socex garante ter passado por tal experiência em 1993 (infelizmente ele não fornece nenhuma prova física do fato, como uma radiografia ou laudo médico). "Assim como um poste leva luz até uma casa, o chip traz a mensagem da turma lá de cima até mim", compara o ateniense.


As mensagens que chegam via chip dizem respeito às transformações cósmicas que o nosso pequeno planeta irá enfrentar. Falam de uma evolução natural do estágio atual dos terráqueos, que o ufólogo chama de terceira dimensão, para uma superior, no caso a quarta. "Hoje em dia, estamos a meio caminho da quarta dimensão, algo como uma terceira dimensão e meia. E essa é a última oportunidade da geração atual avançar. Caso não se aproveite, outra oportunidade só daqui a 75 mil anos", calcula enquanto acende um cigarro ("um dos meus vícios de terceira dimensão").


Mas o que significa essa tal evolução? Grego manda um rapaz, que também está na pequena sala comercial que serve de sede para a Socex, virar uma fita cassete que toca sem parar música new age (aparentemente, gravada de um CD brinde da revista esotérica Planeta), e começa a apontar radicais mudanças no mundo como conhecemos. Para começar, a idéia de coletividade substituirá o individualismo, dispensaremos o uso do dinheiro e a paz chegará a todos os cantos da Terra, da Bósnia ao Oriente Médio. Um exemplo que costuma dar de povos extraterrenos de vida quadridimensional são os marcianos. Sim, dentro do planeta vizinho, e não na superfície, existiriam 9 bilhões de seres, parecidos conosco, vivendo em uma sociedade muito mais evoluída que a nossa e que constantemente faz contatos com os terráqueos.


Quanto ao filme divulgado no final de agosto de 1995, no qual se via pretensa autópsia em ETs capturados pelo exército americano, o ufólogo ateniense afirma ser documento autêntico. O único senão que levanta é a possibilidade dos alienígenas do filmete não serem os mesmos do famoso Caso Roswell, a queda do alegado óvni no deserto do estado americano do Novo México, em 1947, como vem sendo dito. Afinal, Grego diz conhecer notícias seguras de pelo menos mais de 20 acidentes com naves espaciais, a grande maioria nos EUA. A divulgação daquele filme como sendo dos seres do Caso Roswell poderia ser um erro de avaliação, ou, desconfia Patounas, uma tentativa de "desacreditar o movimento ufológico mundial".


Polêmicas à parte, o Caso Roswell e outros temas igualmente bombásticos, como a experiência do brasileiro Osvaldo Oliveira Pedrosa, que diz ter convivido uma semana com ETs, estão no Correio Extraterrestre, um curioso jornal tablóide editado por Patounas. Para difundir a filosofia dos alienígenas, ele até pensou em escrever um livro, mas acabou optando pelo formato do boletim mensal. "Eu precisaria de muito tempo para fazer um livro com todas as informações que recolhemos. E depois, acabo alcançando muito mais pessoas com o jornal e as palestras que dou por todo o Brasil", conta mostrando orgulhosamente a pasta com dezenas de cartas de leitores do jornal.


São bastante inusitadas as pautas que esses leitores têm acesso no tablóide da Socex. Na edição de estréia, de agosto de 1995, o editorial já fazia previsões sobre o futuro de nossa espécie: "Temos informações que dos 6 bilhões de habitantes do planeta [Terra], cerca de 10% apenas constituirão o novo homem". No mês seguinte, uma matéria explicava a origem e a missão dos portadores de síndrome de Down: "Vivem o tempo necessário para guiar seus pais na busca do encontro com sua essência, e retornam ao seu planeta de nome ALDEYAT [as maiúsculas são do original]". Mas foi no número de novembro daquele ano que, provavelmente, o jornal trouxe seu maior furo, quando um ET definiu para o já citado Osvaldo Pedrosa ninguém menos que Deus: "Uma reta isotrópica vibrando em todas as direções num ângulo de 90o, e tem a propriedade de se difundir para todo o Universo".


O Correio Extraterrestre é distribuído gratuitamente, a publicidade que circula no tablóide mal paga a tiragem de 3 mil exemplares. Para dar suas palestras, Grego cobra apenas 1 kg de alimento de cada ouvinte, para ser distribuído a campanhas contra a fome. Cada vez menos pessoas estão dispostas a pagar os R$ 10 de mensalidade à Socex. Tudo isso levou a algumas crises financeiras, com direito a luz cortada e a ficar 17 meses sem pagar o colégio dos filhos. Inevitavelmente, a família reclamou. Porém Eustáquio Patounas encara os contratempos como provação e assegura que nas horas mais difíceis sempre aparece um jeito de ganhar dinheiro, "é como ter conta num banco cósmico". Quanto à família, o entusiasmo dele é tanto que garante o apoio. Seu filho mais velho, Eduardo, de 17 anos, começou a ajudá-lo na Socex (foi o garoto quem virou a tal fita com sons de baleias e ruídos de cachoeiras).


Apesar das reclamações de falta de participação dos associados, a Sociedade de Estudos Extraterrestres está crescendo. Grego investe R$ 700 em modificações na sede, sempre seguindo um projeto determinado "pela turma lá de cima". Além de substituir as lâmpadas fluorescentes por incandescentes, para "manter a freqüência do lugar em harmonia", uma saleta próxima ao banheiro será isolada para sessões de "energização sem interferência humana". E as mudanças não param por aí, pois a Socex deve abrir filiais em quatro cidades. Há propostas de Blumenau (SC), Cascavel (PR), Ribeirão Preto (SP) e Alto Paraíso (GO).


Este texto foi publicado originalmente no jornal-laboratório Zero do curso de Jornalismo da UFSC e mais tarde republicado no e-zine Marca Diabo.

25.9.08

Estupidez Artificial

Uma desventura cyberbeat por Ludimila Hashimoto

– Nunca parei para pensar no processo que cria vida artificial (ou sentimento, ou inteligência) a partir da carne (ou barro, ou silício).

Acho que foi a última resposta que dei na entrevista na antesala do laboratório.

A última lembrança é que não fui perdoada por alguém. E nesse estado foi fácil me entregar aos experimentos de um cientista decadente e ignorado pela comunidade. Seu objetivo era me transformar num objeto, num ser sem medo de cair, uma criatura de Frankenstein invertida, comatosa, cujo contato mais sutil com a vida seria especificamente delimitado.

Ao fim do experimento (que envolvia sedativos, lobotomias e detonação de redes neuronais específicas), fui colocada numa prateleira.

Muito tempo depois, fui pendurada num gancho e entendi que poderia ficar ali por uma eternidade. Entendi, também, que o cientista que me modificara não era ignorado sem razão.

Com o pouco de afetividade e cognição que me restara, criei uma nova razão para viver, totalmente louvável, perfeita! Com as pernas balançando como sempre, articulei um sorriso num movimento labial intermitente e abri um olho. O cientista decadente, nada descabelado, detectou o sinal que aguardara por anos no laboratório empoeirado.

– Está pronta para sair?

Meu sorriso cresceu, num deslocamento muscular ainda não contínuo.

O gancho foi virado. Bati no chão com tudo, como um saco de areia. Não duvidei que, de fato, houvesse areia dentro de mim. Enquanto levantava, vi a tatuagem acima do tornozelo. Um nome, possivelmente um apelido, e uma espécie de logotipo: um planeta Terra num formato que lembrava, de leve, um coração.

Saí para a rua, dando passos aos trancos e a cabeça ainda compensando a oscilação pendular que embalara minhas pernas durante tempo indiscriminado.

A nova vida que eu criara consistia em seguir andando e perdoar todas as pessoas e todas as coisas. Comecei perdoando o cientista que anulara meu rico mundo interior, que reduziu minha individualidade a um ser humano menos capaz e a um ciborgue ridiculamente obsoleto. Grande sorriso estroboscópico.

Se algum dia encontrarem uma razão para me perdoar, talvez eu crie uma nova razão para viver.

Este texto foi inspirado pela música "I believe in miracles", dos Ramones, e foi originalmente publicado no site Letra e Vídeo.

Hiroshima Acelerada

A prequel do conto "Estupidez artificial" por Ludimila Hashimoto



Para o Aurisson, obrigada por ter ficado “meio no ar”.

Cheguei ao ponto. Olho o relógio de pulso. 11:54.

Em Hiroshima, os pontos de ônibus têm placas com o horário exato em que cada ônibus vai passar. Exato.

Verifico. Ônibus Hiroden número 5. Naquele ponto às 11h56.

Olho de novo o relógio. 11:55. Tenho pouco tempo. Mesmo assim, tiro um livro da bolsa e começo a ler com as mãos trêmulas.

Página marcada com um rasgo, sempre um pecado num livro do autor que já deu tanto trabalho à minha mente. Tenho tempo de ler, na página 17: “Já se disse que, se o tempo é infinito, o número infinito de vidas, rumo ao passado, é uma contradição. Se o número é infinito, como algo infinito pode ter chegado até o presente? Se um tempo é infinito, creio eu, esse tempo infinito tem que abranger todos os presentes e, em todos os presentes, por que não este presente, em Belgrano, na Universidade de Belgrano, vocês comigo, aqui, juntos? Por que não esse tempo também? Se o tempo é infinito, em qualquer instante estamos no centro do tempo. Pascal pensava que, se o universo é infinito, o universo é uma esfera cuja circunferência está em todas as partes e o centro em nenhuma. Por que não dizer que este momento tem atrás de si um passado infinito, um ontem infinito?” Obrigada, Borges, e desculpe os rasgos, mas não tenho uma bolsa do tamanho suficiente pra carregar todos os livros.

Olho o relógio. 11:56. Meu Deus. Meu ônibus acaba de passar. Não sei o que fazer. Corro.




Vejo a traseira do ônibus que, indiferente, comunga com a minha própria indiferença em relação a tudo. Corro com toda força para alcançar o desinteresse que segue a 47 km/h. Tudo ficará perfeito assim que eu embarcar na nau urbana da doce apatia coletiva.

Só sei que cometi um erro e, embora tenha elaborado todos os argumentos em minha defesa, meus princípios guardados no quartinho de fundos da personalidade mais coerente possível ainda me dizem que relativizar um erro é errar duas vezes. Por isso não relativizo, não justifico e não revelo. Mas o leitor entenderá, pensará por si mesmo no erro mais atual, mais significativo que se possa cometer sem precisar se esconder da polícia. Minha polícia é interna. Minha consciência é a esposa que dorme comigo, como a heroína nas veias de Lou Reed.

Corro. Nunca corri tão rápido. O vento na cara, o esquecimento do relógio, o objetivo único isolado de tudo, estar inteira no presente do asfalto e da fumaça, tudo isso transforma meus músculos em mangueiras sugando o resto de combustível da reserva. Correr no meio da cidade causa uma sensação libertadora.

Chego ao ponto seguinte segundos depois do ônibus número 5, mas por sorte, aqui em Hiroshima se entra pela porta de trás, em que bato, gritando:

O-negai shimasu!!

A porta se abre, subo, tropeço feio no degrau e caio pra trás. Caio com a base do crânio no meio-fio. Apesar da dor cortante, acho graça e, arfando, evito desmaiar.
O ônibus não segue. Os passageiros soltam coros de interjeições assustadas. Se fosse no Rio, o ônibus estaria longe, mas aqui é diferente.

Daqui a pouco a ambulância chega, penso, me divertindo com a educada organização. Mas enquanto perco tempo comparando culturas incomparáveis, estou sendo carregada numa maca para dentro da ambulância parada, colada atrás do ônibus.

Dentro da ambulância, uma unidade de resgate mais completa que alguns hospitais em que passei as manhãs do primeiro dia de alguns anos me impressiona. Meu paramédico é ninguém menos que Haruki Murakami, o autor do surrealismo pop que já deu tanto trabalho à minha mente.

– Ninguém vai perdoar o seu erro, mas correr é um bom começo – ele diz.

O tratamento já começou. Vocês são eficientes mesmo, penso, por não saber em que língua me falar.

Deitada no lençol branco, vejo o asfalto indo embora constantemente entre meus pés em V. Meu enfermeiro está sentado ao lado da minha cabeça, é difícil ver seu rosto.

– Para onde você estava indo com tanta pressa?

– Eu… sigo uma seqüência aleatória de ônibus todo dia. Hoje é quarta, ônibus #8, 5, 30…

– Ao correr atrás de um ônibus específico e já perdido, você estava respeitando o acaso? – questiona meu escritor com ironia socrática, a que serve para evidenciar a ignorância do interlocutor.

– Se o acaso não é levado a sério, pode facilmente deixar de ser acaso. E o último ônibus pra Osaka parte às 23 horas, o Sanyo Dream Osaka. E o Venus do terminal Namba sai antes ainda. Tenho passagens de ida e volta que…

– Você quer parar um pouco?

– Quê?

– Esses questionamentos sem conexão e dilemas constantes não estão te fazendo bem mais – prosseguiu a voz sem idioma definido. – Que tal um pouco de estupidez?

– Estupidez? Grosseria ou falta de inteligência? – tento esclarecer.

– A segunda, por favor. Mantenha a delicadeza.

– É, nem os revolucionários mais apaixonados dispensam a ternura – perco o foco.

– Um pouco de estupidez vai ajudá-la. E já estão sintetizando esse tipo de talento em laboratórios clandestinos no subúrbio de Hiroshima.

Ele mostra o cartão do laboratório por cima da minha testa. Leio, estendo a mão para pegá-lo, mas fico no ar.

– Só tenho esse, desculpa.

– Tá ótimo, então. Me deixa lá?

– Não quer nenhuma informação sobre o cientista responsável? Histórico? Currículo? Certidão negativa de antecedentes criminais?

Estico o pescoço pela primeira vez para encarar o único membro da equipe de resgate. Dou um sorriso socrático.

Ele dá de ombros:

– Boa sorte, então.

“…E por que não pensar que este passado passa também por este presente? Em qualquer momento estamos no centro de uma linha infinita…” Interrompo a leitura para olhar o relógio laranja. 11:56. Estranho, parece que já li e pensei tanto. Encaro fixamente o visor no meu pulso. Por um segundo, acredito que o relógio havia quebrado. Ouço o barulho do freio do Hiroden #5 e o suspiro grave da suspensão traseira pneumática fazendo o ônibus ajoelhar para que os passageiros não tenham dificuldade para subir os degraus. Os mais atrapalhados continuam tendo, mesmo assim.

Entro no ônibus, pego o tíquete que saiu da maquininha e sento antes que o motorista me avise que é preciso sentar para manter a segurança do trajeto.

Olhando a cidade cinza e branca pela janela, decido visitar o laboratório que um amigo mencionou numa conversa na noite anterior. O responsável pelos experimentos era um pesquisador excêntrico, filho de sobreviventes da bomba de Hiroshima. Estava recrutando voluntários.

Quando meu amigo tentou explicar o objetivo do projeto, não ouvi direito por causa dos ruídos no ambiente de festa.

Olho o número no tíquete, vejo no mostrador acima do motorista o valor da tarifa referente ao ponto em que pretendo descer. Troco minha nota de mil ienes na outra maquininha, retiro as moedas. Aperto o botão para anunciar a parada.

Coloco o tíquete com o valor certo da tarifa numa caixa ao lado do motorista. Salto do ônibus. Olho o visor. 12:36. Hora de parar de pensar. Antes disso, uma última reflexão saideira e mais um rasgo milimétrico nas páginas 17/ 18.

“Sócrates recorreu à doutrina de Platão acerca da transmigração das almas como seu último argumento. Nesse momento, não queria se despedir dos amigos de forma patética. Desejava conversar tranqüilamente; simplesmente, continuar conversando, continuar pensando. Por que ia beber cicuta?”

Diante da porta do laboratório, decido que devo entrar, seguir em frente, movimentar-me em alguma direção. Por pior que seja o resultado do experimento, sei que meu destino é sempre a suavidade e a serenidade.

Nota da autora: Os trechos citados foram retirados do livro Cinco Visões Pessoais, de Jorge Luiz Borges, publicado pela Editora Universidade de Brasília, fruto de palestras proferidas por Borges em junho de 1978.


Nota do editor: Este texto foi inspirado na música "Poison heart", dos Ramones, e originalmente publicado no site Letra e Vídeo


Oh... Crianças!

Um conto sobre molecagens no espaço por Rita Maria Felix da Silva


Sholovat Yrkyalum era funcionária da Corporação Malkin, o grupo responsável pela produção de quase metade dos artigos consumidos na Galáxia, desde alimentos sapientes (moda entre os habitantes dos braços espirais galácticos) a implantes oníricos — usados, principalmente, pelos Farinads (“sonhos e pesadelos, a seu gosto!”, dizia a propaganda na OminiRede, vendidos para uma raça que há 1213 gerações perdera a capacidade de sonhar). Sendo telepata, foi colocada no setor encarregado de produzir e monitorar software psíquico inteligente, que compunha a própria base da OmniRede. Era tarefa penosa, mas pagava bem e dava status.


Naquela vez, após cinqüenta e dois turnos seguidos, Sholovat conseguiu uma folga. Transferiu sua mente, que ficava na OmniRede enquanto ela trabalhava, e baixou-a para um dos trinta e dois corpos que utilizava. Escolheu o mais adequado para descansar.

O cansaço atingiu-a impiedosamente e ela adormeceu contra a vontade. Ao despertar, sentia-se revigorada. Como ainda lhe restava três fases-de-tempo antes de voltar ao serviço, decidiu visitar sua casa. Sentia saudades do lar e, acima de tudo, de seus quinhentos e doze filhos. Sholovat jogou sua mente de volta à OmniRede e buscou outro corpo, um que havia deixado preparado em casa. O modo mais prático era esse: pela transferência mental chegou a sua residência quase instantaneamente. Se tivesse de usar uma espaçonave, enfrentaria uma viagem de, pelo menos, uma centena de fases-de-tempo. Numa galáxia dividida em castas, tinha pena das multidões de párias, incapazes de acessar a OmniRede, rejeitados por todos os outros grupos e condenados a viajar apenas fisicamente pelo universo.


Ela morava em Plactos-Zero-X, um dos trinta e dois mundos artificiais orbitando a estrela também artificial de Plondaxos-IX na área mais povoada da Galáxia. Logo, abriu os olhos em sua cama, no cubo de habitação que dividia com os filhos e outras vinte famílias. Era um corpo adorável aquele. Seu favorito. Uma obra-prima da engenharia genética. A sensação de estar nele era quase orgásmica. Se pudesse, passaria a vida toda ali dentro.


Cumprimentou um dos robôs que lhe servia de escravo. Fazia tempo que desistira dos servos orgânicos. Caros, frágeis e desobedientes. Achava uma estupidez a insistência daqueles liberais do Núcleo Galáctico nesse assunto.


Caminhou pela casa e foi até o quarto de Kyrlycrux, seu filho número 419. Seu preferido também. Ansiava muito abraçar aquela criança.



Mas logo, após cruzar a porta do quarto (feita de gelatina sapiente esverdeada, que se encolheu para dentro das paredes, deixando-a passar), pisou em algo mole e cheio de sangue. Muitas daquelas pequenas coisas estavam espalhadas pelo recinto. Contou mais de cinqüenta criaturas, algumas com braços ou pernas arrancados, diversas sem a cabeça e, em várias outras, todas essas partes estavam faltando. E havia muito sangue pelo chão e paredes, aquele sangue avermelhado fedendo a ferro. Um dos seres ainda estava respirando. Sem as pernas e braços e com um olho esmagado, ele gritava naquela língua estranha e incômoda. Numa mistura de pena e raiva, ela o esmagou com um pé.


Foi até Kyrlycrux. Sentou-se na cama e questionou com ternura o filho:


— Meu amor, por que você faz essas coisas com seus brinquedos? São caros, sabia?


A criança olhou para ela, com aqueles olhos grandes, redondos e alaranjados, que Sholovat tanto adorava, e apenas abraçou-a sem saber responder.


Nem a mãe sabia. Conversara com psicólogos, mas ninguém conseguiu explicar porque toda aquela hostilidade de Kyrlycrux. A ausência da mãe, querer chamar atenção... Uma centena de teorias e nenhuma resposta. Num povo pacífico, que abandonara o crime, a violência e as guerras, como era o dela, as atitudes do filho pareciam inexplicáveis.


A babá-robô veio e desculpou-se por ter deixado o pequeno fazer aquela bagunça no quarto. Sholovat vociferou que o autômato mandasse alguém limpar a sujeira. Decidiu que, pela manhã, a babá seria desmontada e vendida para a reciclagem. “O universo é um lugar injusto”, pensou “mesmo escravos robóticos não são perfeitos”.


Continuou abraçada a Kyrlycrux, enquanto cantalorava uma antiga música de ninar. Passou os olhos pelo quarto mais uma vez, para todas aquelas coisinhas nojentas sem braços, pernas ou cabeça.


Ia parar de gastar dinheiro à toa – jurou para si mesma. Nunca mais compraria humanos para Kyrlycrux brincar.


FIM



Dedicado a Davi Mello

23.9.08

Fatalidade

Uma comédia de humor negro por Cristina Lasaitis

O carrilhão deu seis horas da tarde. O encosto da poltrona rangia contra a carcaça do velho Dr. Aristeu Salgado.

– Como assim, Dona Maria?

– Ela me persegue, doutor!

– Quem a persegue?

– Aquela facínora! – A velhinha tinha o vocabulário da novela na ponta da língua. – Aquela que todo mundo têm medo: a moça da foice!

– A “morte”, a senhora quis dizer?

– Essa mesma, doutor!

Era um caso muito curioso. O Dr. Aristeu viu-se subitamente remetido aos seus remotos tempos de Juqueri, quando tinha sob sua responsabilidade toda uma enfermaria de pobres diabos psicóticos. Quantos delírios de perseguição! Os desditados fugiam de Deus e do demônio, do papa e de Elvis Presley, do presidente e da polícia, das vozes e das sombras… Mas alguém perseguido pela morte em pessoa? Essa era novidade!

– Quantos anos a senhora tem, Dona Maria?

– 81, Doutor.

– 81… – Repetiu ele.

O psiquiatra, dois anos mais velho que a paciente, levantou sua múmia da poltrona e foi buscar alguma coisa numa estante arruinada pelos cupins. Os malditos siriris começavam a invadir a cidade àquela hora, e o velho médico foi obrigado a trancar as labaredas de calor do lado de fora do consultório. As tesourinhas e as traças assustaram com o estalo seco da janela e fugiram pela fresta da porta. A sala não tinha ar condicionado, e no ambiente abafado o carpete fedia, fermentando a sujeira acumulada de muitas décadas.

O psiquiatra pegou uma caixinha e voltou para se sentar à mesa.

– Este era um paciente meu. Dona Maria, Zé Miolo. Zé Miolo, Dona Maria. – Ele os apresentou.Era um cérebro em conserva numa caixinha de acrílico com formol, cinzento e feio como uma uva passa mofada; no hemisfério esquerdo, um rombo do tamanho de uma laranja indicava a causa provável da morte.

– Se eu não me engano, o Zé Miolo tinha seus 44 anos quando esta tragédia lhe aconteceu. Praticamente um menino. – Lamentou ele. – Ele viveu alguns meses como um vegetal, hoje é um peso de papel muito bom. Pobre rapaz!

A velhinha apertou a risquinha vermelha que ela tinha por lábios. Que importava a morte do Zé Miolo?

– O que eu quero dizer, Dona Maria, é que na sua idade a senhora já devia saber que também vai morrer. – Ele profetizou com toda a delicadeza que não tinha. – A morte é um privilégio de todos! Diga, o que a senhora acha que tem de tão especial?

Os olhos da velhinha viraram olhões por trás das rodelinhas das lentes bifocais.

– Está desdenhando de mim, doutor! O senhor não está entendendo nada! Pois eu vou lhe contar o que eu tenho passado esses anos todos, tim tim por tim tim!

O Dr. Aristeu se acomodou. Alguma coisa estalou, talvez a poltrona, talvez o esqueleto.

– A primeira coisa que eu me lembro aconteceu quando eu era menina, na década de 30. Foi numa tarde cinzenta com cheiro de tempestade. Quando o aguaceiro desmoronou, minha mãe correu para cobrir os espelhos, meu pai correu para fechar as janelas, e eu escapuli pela lavanderia para buscar a boneca que tinha esquecido no quintal. Lembro que de ter ouvido a porta batendo, papai correndo atrás de mim com a cinta na mão, um estrondo do tamanho do mundo, um clarão, uma explosão, fogo e cheiro de queimado. Quando eu me virei para dar uma olhadela, papai tinha virado churrasquinho! O raio o levou.

– Foi um trauma para a senhora, eu imagino.

– Mas foi só o começo! Alguns anos depois, em 1938, foi a minha irmã Zulmira. Naquela época nós morávamos na Mooca, e mamãe sempre nos levava nas matinês do Cine Oberdan, aquele do Brás. Eu era bem nova, tinha 12 anos, e – o senhor sabe – naquela época as pessoas iam ao cinema de terno e gravata, as mulheres iam de chapéu, luva, bolsa… Eu lembro que nós entramos no cinema, sentamos, o filme começou, mas eu não consegui assistir, doutor. Eu não podia assistir porque a mulher que estava sentada na minha frente usava um chapéu deste tamanho! – Ela sacudiu um metro de vazio com as mãozinhas encarquilhadas. – E eu fiquei com raiva e comecei a desfolhar as flores do chapéu dela. Foi quando mamãe me deu um beliscão, gritando: “Pára, Maria! Você é fogo, menina!” Aí o senhor já viu! Alguém assustou e começou a gritar: “fogo!” E deu naquela correria toda, as pessoas sendo pisoteadas… Um horror! Trinta crianças morreram esmagadas como baratas. Trinta e mais minha irmã Zulmira.

O psiquiatra ficou olhando para ela em silêncio, as duas taturanas grisalhas estremecendo no limiar da testa.

– Bom, e o senhor vai me perguntar: o quê vem depois? Depois eu virei moça, comecei a trabalhar, juntei dinheiro para comprar nossa primeira televisão no Mappin, em vinte e quatro prestações – a mesma TV que matou mamãe alguns anos depois, quando caiu da estante. E eu me casei, doutor. Casei com o meu finado marido em 1950, na Igreja de São Paulo Apóstolo, no Belenzinho. No fim da cerimônia, minha sogra tropeçou na cauda do meu vestido e saiu rolando escadaria abaixo. Na semana seguinte, estávamos todos lá na Igreja de novo, para a missa de sétimo dia da dita cuja. Depois disso não aconteceu nada realmente catastrófico, nada que eu me lembre. Eu tive dois filhos e trabalhei como secretária por muitos anos. E nesses anos as tragédias foram só pequenas tragédias: alguém que morria atropelado logo atrás de mim, alguma pedra que caía da construção e acertava a cabeça de alguém andando ao lado, um carro que batia no poste pelo qual eu acabava de passar; coisas assim…

– E então vieram grandes tragédias?

– Pois é doutor! Eu quero mostrar ao senhor a minha carteira de trabalho.

E ela tirou da sua bolsinha preta com fecho de bolinhas uma carteira azul carcomida pelas traças. O Dr. Aristeu deixou os óculos escorrerem até a ponta do nariz para analisar as folhas amareladas com seus olhinhos opacos de catarata.

– Secretária das Casas Pirani até 1972.

– Avenida São João com a Rua Pedro Américo. – Confirmou a velhinha, sorridente.O nome do prédio estava na ponta da língua, mas o psiquiatra sofria para encontrá-lo em seus arquivos mnemônicos de 83 anos.

– Edifício Andraus. Eu estava lá quando começou o incêndio, doutor. Mas não é tudo, vire a página.

Ele virou.

– E depois trabalhou em um escritório na… na Rua Santo Antônio!

– Edifício Joelma.

As taturanas arquearam em espanto.

– A senhora tem uma biografia notável, Dona Maria!

Ela assentiu com um riso triste.

– Eu não sei que coincidências são essas, doutor, mas é tragédia demais perto de uma pessoa só. Foram dezesseis mortos no Andraus, quase duzentos no Joelma! Eu vi tudo acontecendo muito de perto, e algo me diz que a primeira fagulha, de um jeito ou de outro, partiu de mim. Eu fumava naquela época.

– A senhora se sente culpada?

Uma lágrima intrometida saiu rolando sem pedir licença.

– Ah, doutor… No começo eu achava que o problema era meu, mas chega a ser tão absurdo que hoje eu me sinto a maior vítima de todo esse azar.

Ela limpou a lágrima, fungou, suspirou, assoou o nariz e prosseguiu:

– Depois disso eu resolvi me aposentar, me afastei de tudo: da igreja, das festas da vizinhança, das reuniões de família, deixei de ir ao supermercado, deixei de ir à feira, deixei de sair… Eu me sepultei em casa. Fui uma morta-viva por anos e anos! Mas ela vinha atrás de mim, doutor! Aquela salafrária estava sempre me rondando! Eu não precisava sair de casa para a desgraça acontecer: era a panela de pressão que caía em cima do cachorro, era a vizinha que tropeçava e batia a cabeça no meu portão, uma criança que despencava da árvore e se estatelava na minha calçada, um carro que batia bem em frente à minha casa… Por anos e anos! Até que eu cheguei à conclusão de que não adiantava eu me trancar, ela viria atrás de mim onde eu estivesse.

Zé Miolo e o Dr. Aristeu estavam absorvidos na narrativa. Tanto que o psiquiatra nem se deu conta quando um siriri caiu e ficou grudado no suor de sua careca.

– Até que a vida me deu netos, doutor! E os netos, os netos nos obrigam a viver!

Dona Maria buscou na bolsinha as fotos das crianças e deixou-as orgulhosamente em cima da mesa para que o médico as visse.

– Depois que os meus netos nasceram, eu passei a sair mais do meu esconderijo e ir à casa da minha filha em Osasco para ver as crianças. E o senhor sabe como são essas crianças da cidade, elas querem ir passear no shopping! Pois bem, um dia nós fomos ao shopping na hora do almoço. Pra quê? Aquele estrondo, aquela correria, o susto, o teto caindo… – Ela fez o sinal da cruz. – Acho que o senhor já sabe do que eu estou falando, não é?

– A senhora não vai me dizer que também estava lá!

– Pois é, doutor! Nessa foram mais de 40 pessoas, meu Deus! As crianças ficaram terrivelmente assustadas, mas estão bem, estão bem. Minha filha não entendeu porque eu nunca mais fui visitá-la. Ela deve ter ficado triste de ver a mãe fugindo das visitas de família. Eu só não queria que nada ruim acontecesse aos meus netos.

Zé Miolo deixou escapar uma bolhinha de piedade por ela.

– Mas as coisas pioraram muito depois disso, doutor! Um dia, poucos meses depois do acidente com o shopping, eu me aventurei a sair de casa para ir comprar pão na padaria da esquina. Enquanto eu comprava os meus pãezinhos, ouvi um estrondo horrível! Um estrondo que até me lembrou o raio que matou papai. E quando eu voltei pra casa, eu não tinha mais casa, o sobradinho no Jabaquara em que eu morei durante 45 anos da minha vida não existia mais! Um avião caiu bem em cima dele e matou o meu Alonso e outras cem pessoas!

Nesse ponto ela parou. Uma romaria de lágrimas cedeu sob o nome do marido. O Dr. Aristeu estava compungido, tão penalizado que sentiu amolecer aquela coisinha palpitante ligada ao marca-passo. Inadvertidamente, o doutor rabugento revelou-se um velhinho babão, e esboçou um gesto inédito nos seus 60 anos de psiquiatria: segurou a mão da paciente! Dona Maria se emocionou com a gentileza e sorriu para o médico, tímida.

– Eu fui vivendo, como o senhor vê. Todas essas tragédias passaram por mim como uma tempestade, levando centenas de pessoas embora, sem me deixar um único arranhão! Às vezes eu acho que essa malfeitora da foice gosta de brincar comigo, doutor. Eu arrumei outra casinha, bem pequenininha, e nela eu me escondo do mundo tentando evitar outros estragos. A gente chega numa idade que ninguém mais liga pra gente; a família esquece, a sociedade ignora, a gente fica invisível e nem o atendente do INSS enxerga. Eu tinha esperanças de que aquela destrambelhada fosse me esquecer também, mas parece que ela não quer deixar essa velha em paz! Há algumas semanas atrás minha filha foi me levar para fazer uns exames lá na zona oeste. Da janela da clínica nós vimos as ambulâncias chegando, os bombeiros, a polícia, a multidão… Uma cratera gigante apareceu no lugar onde eu tinha passado quinze minutos antes e tragou as pessoas que andavam na rua! Foi triste, doutor.

A velhinha estava cabisbaixa, sua mãozinha encrespada apertando a mão fria do médico. Zé Miolo apreciava a cena, comovido.

– Por isso eu me chamo Maria das Cruzes, e vou carregando a cruz até que a cruz me carregue. Eu não entendo que sorte é essa que a vida me deu, mas com certeza não é sorte alguma, é um tremendo de um azar, uma maldição! Eu sei que aquela desgraçada vai me pegar um dia, eu não tenho delírios de imortalidade como o senhor pensou. Eu estou bem lúcida! Ela vai me pegar e eu até torço para que seja logo, porque dói muito no coração ver essas catástrofes acontecendo debaixo do meu nariz, ver as pessoas sofrendo, e saber que é essa minha sorte infeliz desgraçando tudo! Nesses 81 anos eu nunca contei minha história a ninguém, nem ao padre da paróquia, só ao senhor, doutor. Eu sei que estou no fim, sei que não vou muito longe, mas até que a maledeta me encontre ela vai continuar aprontando das suas! Por isso, enquanto o Alzheimer não vem, tudo o que eu queria do senhor é um remedinho que me ajudasse a esquecer. É estranho, quando a gente fica velho tem medo de perder a memória, ficar gagá, e essa velha vem aqui pedir justamente pra ficar desmemoriada! Mas entenda que eu só quero um pouquinho de sossego no fim da vida. Então, se o senhor puder, por obséquio, me receitar um remedinho pra dormir em paz, doutor… doutor?…….. doutor?……………………………..



Este texto foi originalmente publicado no site Novas Visões de São Paulo.

17.9.08

Sombras

Uma narrativa sombria escrita por Maria Helena Bandeira com arte de Leonor Fini

Antes que eu me esqueça de tudo, vou digitando este documento.

Fui um dos primeiros candidatos ao programa de implante de memórias para pacientes de Alzheimer Minor .

Como todos os outros, perdi meu passado e vivo um eterno estar aqui, o que me torna um ser onipotente e solitário. Esqueço todos os que se aproximam de mim no momento em que somem de minha presença e sei que existem apenas por causa do meu implante, ao qual agreguei este aspecto importantíssimo.

Pessoas me dão comida, pois não saberei o que fazer ao sentir fome, na verdade nem conhecerei o que é fome em termos abstratos, apenas a sentirei, como qualquer necessidade fisiológica, quando se corromperem as memórias implantadas. A única coisa que os Minor mantém e os distingue é a capacidade de ler e escrever. Porque acontece este fenômeno, que região do cérebro permanece intacta é algo para os pesquisadores – sei apenas que é assim. Vejo, ouço, digito e leio - estas capacidades não perdi.. Mas como não tenho lembranças originais, de nada adiantará sem o implante. Por isto me candidatei assim que soube da abertura do programa e do meu diagnóstico irreversível.

Roubei, subornei, gastei quase tudo que tinha para recapturar e implantar minhas próprias memórias e algumas alheias.

Consegui ser o primeiro candidato. Misturei acontecidos e desejados, criei um passado que me satisfaz. Já que pude escolher a doença, fui o meu próprio Deus neste resgate.

E te revejo, linda, em Paris, tomando chá enquanto chove - há gotas nos vidros das janelas ...

...e já não sei o que vivi e o que comprei... mas na memória implantada eu te amo, talvez tenha te amado sempre, não importa.

O implante não é confiável, sinto que as lembranças estão se corrompendo... confundo datas, lugares.. foi em Veneza que nos encontramos? Chovia em Londres naquele verão? Ou foi Paris? revejo sua boca, cada vez menos nítida, olhos misteriosos de marzipan... o que é marzipan? Lembro da frase, mas não do rosto ou dos motivos.


Meu terror é voltar a viver apenas nesta clínica onde estou encerrado. Eu e o micro que me deram para relatar as sensações e experiências - sou uma cobaia humana.

Memórias são minha única viagem - por elas saio daqui... mas cada vez mais me distancio das lembranças. Vivo um eterno presente sem sombras... fui implantado ou inventei?

Releio o que escrevi - Veneza?... Olhos de marzipan?... Chuva em Paris?.. implante.. não sei mais o que significam..... tudo parece absurdo, confuso...

Estranho texto... quem terá escrito? Às vezes penso que existem outros como eu em algum lugar, mas é uma impressão fugidia. Meu mundo é aqui e neste micro onde leio coisas que não compreendo.

... Vivo um eterno presente sem sombras.... Gosto desta frase. Mas, por algum motivo que não consigo recapturar, parece triste.

E repito: você, na chuva, em Paris, para me consolar. Embora não tenha a menor noção do significado.
Há vidros em Veneza no verão...


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É foda existir

Uma ficção fantástica sobre o amor por Camila Fernandes


Existir é isso: beber-se a si próprio sem sede.
A Idade da Razão
- Jean-Paul Sartre

Eu soube quando te vi passar, séria como um genocídio, no seu casaco preto e saia curta demais. Soube por seus cabelos cortados com tesoura cega, sua palidez enferma, sua beleza tristonha, seus olhos que ainda sonhavam apesar da vida. Sonhavam? Engano meu: habitavam pesadelos, e não tinham medo de nenhum.

Eu soube. Do quê? Você sabe. Acredita em amor à primeira vista, esse consolo dos medíocres solitários? Nem eu. Mas os olhares se cruzaram mesmo assim, e você sorriu amarga como se também soubesse – também sabia – que só podia ser fatal.

Nós.

Não demorou nada, uns dias, quantos? Nem sei, te chamei, você pegou na minha mão, te pedi um beijo, me levou pra cama. E falou quase sem voz: me faz mulher. Louca, com quê? Com o dedo e o desejo.

E com a mão me conduziu num caminho novo, coxas adentro, lábios por todos os lados, te fiz mulher e fui sua mulher, brega e desvairada. Virgem, você? Percebi com o gosto de sangue que ficou nos meus dedos. Você sentiu dor, eu sei, mas não me deixou parar, nem eu quis. Um estupro consentido que rasgou seu corpo e minha alma. Eu era sua e chorei por isso.

Você é tão linda que dói, falei, e você, sem me olhar, respondeu: menina, é foda existir.

Escreveu esse mantra no meu ventre, como um berço para o umbigo. Eu, o mesmo na folha branca da sua coxa esquerda. Tatuamos no dia seguinte. Ficou horrível, não ficou?

Ouvi demais isso de você, ouvi demais também da minha própria boca, eu, seu papagaio humano, a repetir seu estilo de vida. Aprendi de você a ser quem sou, a ser melhor quem eu já era: seu reflexo. Você, meu espelho no teto, imagem de mim mesma eternamente em repouso na cama que também era eu. Nós.

Nas festas – e como era absurdo estarmos em festas –, julgavam-nos irmãs, e era perverso confirmarmos isso. Perversas, sim, por que não? É só mais uma palavra feia. Em casa, ninguém sabia, e era gostoso não dizer. Proibição é fermento para o desejo, segredo é calda de chocolate, torna doce e molhado o que já é delicioso. Vez por outra havia brigas, eu mentia só para te ver frágil, você me deixava só para ser forte. Eu tinha outras. Outros. Mas continuava sendo sua, de coração eu era sua, e você sabia, chorava só para me enlouquecer, já estando louca. Você me arranhou, me disse não volto mais, nunca mais, foi triste e engraçada. Mas voltou, porque quando eu chamava você só sabia voltar. Recua-avança, estapeia-beija. Nosso caso era um tango. Nossa loucura, um meio de vida.

Mas eu te amava, e se para ser sua eu não podia ser de outros, que fazer? Jurei fidelidade, parei mesmo, fiquei séria. Mesmo assim você jurou vingança. Contou tudo em casa e achou lindo ser tão corajosa e gostar de confusão. Ninguém concordou. Não os olhos decepcionados da sua mãe, ó coitada, aquela vai morrer sonhando com netos, não vai?, dizíamos. Nem os berros do meu pai, para fazer isso com sua família, sua sem-vergonha, era melhor não ter nascido, ele falava. E o engraçado, menina, é que eles ainda não tinham visto nada.

Mas de que importava a família, se encontráramos numa esquina do bairro aquilo que boa parte de toda a gente roda o mundo a procurar e passa a vida sem ter visto – amor?

E se você me amava como ninguém antes e eu te amava como ninguém nunca, e se éramos perfeição nos olhos uma da outra, e se ninguém duvidava que éramos doidas de matar ou morrer por isso – por que éramos infelizes? Por que não uma vida menos egoísta, eu te perguntava, por que não salvar as baleias ou servir sopa aos pobres? Por que viver só para nós e não um pouquinho para os outros? Por que não buscar alegria lá fora?

Menina, isso tudo é tão prosaico, você decretava. Eu te amo, e o amor é egoísta, só dá quando quer de volta, só cuida para possuir, só possui para não dar aos outros. Não querer mais que bem querer é balela de poeta, e ninguém sabe menos de amor do que os poetas. Egoísta, eu sou, tu és, ele é, o amor. Os outros? Também. Para que toda essa luta se amanhã vamos embora? Foda-se o jardim, vamos sapatear nas flores.

Só na sua boca impiedosa algo tão errado podia ser tão certo. Mas talvez nos falte propósito, eu te dizia. E você, entre beijos e cigarros, baforava: ninguém tem propósito, nem nunca terá. Enquanto os outros procuram, nós trepamos.

Não me envergonho de dizer que você reinava na minha terra. Deveria? O amor é assim, egoísta ou como seja, põe um demônio no nosso trono, nos obriga a adorá-lo e nos escraviza ao prazer e ao desprazer. Fez da sua tristeza as minhas lágrimas, da sua desgraça o meu ódio, do seu riso, ah, tão pouco riso, a minha delícia. Você me domou. Não te culpo. Eu disse, e já sabia, o amor é isso, e nós o quisemos. Éramos infelizes porque assim decidíramos. Declináramos a ilusão pelo direito de ter culpa, de viver no erro, no pecado, talvez, segundo uns, no prazer, segundo outros, para quem a tristeza é apenas a ausência do prazer e a alegria, a sua presença constante. Hedonistas? Não, não éramos. Incapacidade natural, talvez. Achávamos foda existir – e isso nos dava um gozo descomunal, doente, orgástico, como se, detentoras de uma verdade só nossa, olhássemos para os outros de cima de um prédio e apontássemos quem iria morrer.

Quem vai morrer hoje?, eu brincava lá de cima, até que um dia te fiz chorar. Já não suportávamos... o quê? Uma à outra. Não. A vida? É provável. O mundo era feio e nós, sem vontade de mudá-lo. Nossas famílias nos odiavam e nosso amor era sujo, egocêntrico, fadado aos êxtases amargos, noites sem sono, dias sem sentido. Viver pra quê?, você perguntou um dia, e eu tive medo de verdade pela primeira vez. Não vá me deixar, falei. Eu te mato, entendeu? E você sorriu para mim, flor, menina, patricinha rebelde, você sorriu e me disse: sim, por favor.

Não! Por que não? Porque a gente se ama. E de que vale isso? Eu não tive resposta.

A vida é uma coisa besta, você me revelou. A nossa, principalmente. A gente sempre soube e nunca fez nada pra mudar. Mas por que agora? Eu quero sair, amor, quero sair daqui, no mundo, da vida, disso, de você, até. Não! Então vem comigo.

E eu fui.

Se a vida era uma bobagem, ao menos a morte tinha de ser um evento sofisticado. Questão de estilo, você não podia morrer como viveu, apagada e sem propósito. A morte tinha de ser grande, bonita, solene. Um imenso alívio, sem dor nem convulsões nem caretas nem sangue. Por isso, pílulas e algo bem forte pra beber antes de ir. Pílulas para dormir e nunca mais acordar.

No meu quarto ou no seu? Sua cama é maior. Conhaque e comprimidos, um brinde a nós, querida. Durma. Pus minha mão na sua e meu olhar no seu até perder o foco, devagar, suave... não lembro se sorria. Terminava nossa história com o fim que escolhemos, não o que os outros queriam, e assim tinha que ser. Bons sonhos.

Só que eles vieram. Claro que não vimos. Mas eles derrubaram a porta, já sabiam, não sei como, você por acaso deixou um bilhete, tonta? Arrombaram a porta, roubaram depressa nossos corpos da cama, eu e você em macas rumo ao pronto-socorro. Lavagem estomacal? Quem sabe o que fizeram. O que sei é que arruinaram nosso momento. Era para sermos apenas nós duas, mãos dadas, nuas sob os lençóis em nossas núpcias de morte, rumo à luz ou às trevas, juntas, sem vínculos, mágoas, arrependimentos. Mas tiraram isso de nós. Eles não tinham o direito!

O que na vida não souberam fazer, na morte tiveram sucesso. Eles nos separaram. Tentaram nos trazer de volta. E conseguiram, mas só com uma de nós.

Quando acordei, não estava mais ao seu lado e soube que nunca mais íamos nos ver.

Bem, não exatamente. Eu vejo você. Todo dia.

Vejo que se tranca no quarto, passa dias sem comer ou dizer palavra, abraça uma foto e lembra de mim, como deve ser. Depois você sai. Adquire novos costumes na sala. Vê pessoas. Elas conversam com você e sorriem. Mostram coisas diferentes. Até te levam à igreja. Você usa um vestido florido. Você se transforma. Consegue sorrir para quem se lembra da tragédia – ah, então é assim que eles chamam, a tragédia? Depois, você joga fora nossos discos. Nossos livros também.

Algo deu errado, tão errado, menina, seu corpo te traiu, traiu a nós duas quando resistiu à decisão, estragou tudo... Eles te tiraram de mim. Eu fui, e te prenderam aqui. Você ficou, e a morte não me remediou.

E o mais errado de tudo, querida, é o meu retrato agora esquecido no fundo da gaveta. E esse cara, quem é ele? Por que você o traz para o quarto? Quando te pergunta quem é a garota na foto, você diz: uma amiga, já morreu, a pobre... era meio doida, sabe?

Mas eu ainda existo, e isso é foda.

Ibope