25.9.08

Estupidez Artificial

Uma desventura cyberbeat por Ludimila Hashimoto

– Nunca parei para pensar no processo que cria vida artificial (ou sentimento, ou inteligência) a partir da carne (ou barro, ou silício).

Acho que foi a última resposta que dei na entrevista na antesala do laboratório.

A última lembrança é que não fui perdoada por alguém. E nesse estado foi fácil me entregar aos experimentos de um cientista decadente e ignorado pela comunidade. Seu objetivo era me transformar num objeto, num ser sem medo de cair, uma criatura de Frankenstein invertida, comatosa, cujo contato mais sutil com a vida seria especificamente delimitado.

Ao fim do experimento (que envolvia sedativos, lobotomias e detonação de redes neuronais específicas), fui colocada numa prateleira.

Muito tempo depois, fui pendurada num gancho e entendi que poderia ficar ali por uma eternidade. Entendi, também, que o cientista que me modificara não era ignorado sem razão.

Com o pouco de afetividade e cognição que me restara, criei uma nova razão para viver, totalmente louvável, perfeita! Com as pernas balançando como sempre, articulei um sorriso num movimento labial intermitente e abri um olho. O cientista decadente, nada descabelado, detectou o sinal que aguardara por anos no laboratório empoeirado.

– Está pronta para sair?

Meu sorriso cresceu, num deslocamento muscular ainda não contínuo.

O gancho foi virado. Bati no chão com tudo, como um saco de areia. Não duvidei que, de fato, houvesse areia dentro de mim. Enquanto levantava, vi a tatuagem acima do tornozelo. Um nome, possivelmente um apelido, e uma espécie de logotipo: um planeta Terra num formato que lembrava, de leve, um coração.

Saí para a rua, dando passos aos trancos e a cabeça ainda compensando a oscilação pendular que embalara minhas pernas durante tempo indiscriminado.

A nova vida que eu criara consistia em seguir andando e perdoar todas as pessoas e todas as coisas. Comecei perdoando o cientista que anulara meu rico mundo interior, que reduziu minha individualidade a um ser humano menos capaz e a um ciborgue ridiculamente obsoleto. Grande sorriso estroboscópico.

Se algum dia encontrarem uma razão para me perdoar, talvez eu crie uma nova razão para viver.

Este texto foi inspirado pela música "I believe in miracles", dos Ramones, e foi originalmente publicado no site Letra e Vídeo.

5 comentários:

Helena disse...

Eu adoro este conto. Ele é tão lindo e tão perverso e triste ao mesmo tempo. Cada vez que leio me identifico, me emociono.

beijão,

Merrel

Helena disse...

Ah, li sua entrevista sobre A Voz do Fogo e fiquei curiosa de ler. O que me enlouquece é a quantidade de coisas que desejo para o tempo disponível, me sinto sempre o coelho da Alice

beijão dois, a missão,

merrel

Romeu Martins disse...

Abandone outras leituras se for preciso, merrel, mas não deixe de conferir A voz do fogo na extraordinária recriação da Ludi.

Anônimo disse...

Nossa, Merrel, que incrível o modo como você entende as coisas que eu escrevo.

Quanto à entrevista, na época, achei tão inusitado que alguém quisesse me entrevistar que tratei mais de me divertir que de responder às perguntas direito.

Obrigada por me deixar tão feliz, beijos 1, 2 e 3.

(obrigada, Romeu ;))

Romeu Martins disse...

Ah, Lud, precisa agardecer, não. Você sabe que é sincero. Piscadela pra você, também.

Ibope