– Nunca parei para pensar no processo que cria vida artificial (ou sentimento, ou inteligência) a partir da carne (ou barro, ou silício).
Muito tempo depois, fui pendurada num gancho e entendi que poderia ficar ali por uma eternidade. Entendi, também, que o cientista que me modificara não era ignorado sem razão.
Com o pouco de afetividade e cognição que me restara, criei uma nova razão para viver, totalmente louvável, perfeita! Com as pernas balançando como sempre, articulei um sorriso num movimento labial intermitente e abri um olho. O cientista decadente, nada descabelado, detectou o sinal que aguardara por anos no laboratório empoeirado.
– Está pronta para sair?
O gancho foi virado. Bati no chão com tudo, como um saco de areia. Não duvidei que, de fato, houvesse areia dentro de mim. Enquanto levantava, vi a tatuagem acima do tornozelo. Um nome, possivelmente um apelido, e uma espécie de logotipo: um planeta Terra num formato que lembrava, de leve, um coração.
A nova vida que eu criara consistia em seguir andando e perdoar todas as pessoas e todas as coisas. Comecei perdoando o cientista que anulara meu rico mundo interior, que reduziu minha individualidade a um ser humano menos capaz e a um ciborgue ridiculamente obsoleto. Grande sorriso estroboscópico.
Este texto foi inspirado pela música "I believe in miracles", dos Ramones, e foi originalmente publicado no site Letra e Vídeo.
5 comentários:
Eu adoro este conto. Ele é tão lindo e tão perverso e triste ao mesmo tempo. Cada vez que leio me identifico, me emociono.
beijão,
Merrel
Ah, li sua entrevista sobre A Voz do Fogo e fiquei curiosa de ler. O que me enlouquece é a quantidade de coisas que desejo para o tempo disponível, me sinto sempre o coelho da Alice
beijão dois, a missão,
merrel
Abandone outras leituras se for preciso, merrel, mas não deixe de conferir A voz do fogo na extraordinária recriação da Ludi.
Nossa, Merrel, que incrível o modo como você entende as coisas que eu escrevo.
Quanto à entrevista, na época, achei tão inusitado que alguém quisesse me entrevistar que tratei mais de me divertir que de responder às perguntas direito.
Obrigada por me deixar tão feliz, beijos 1, 2 e 3.
(obrigada, Romeu ;))
Ah, Lud, precisa agardecer, não. Você sabe que é sincero. Piscadela pra você, também.
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