17.9.08

É foda existir

Uma ficção fantástica sobre o amor por Camila Fernandes


Existir é isso: beber-se a si próprio sem sede.
A Idade da Razão
- Jean-Paul Sartre

Eu soube quando te vi passar, séria como um genocídio, no seu casaco preto e saia curta demais. Soube por seus cabelos cortados com tesoura cega, sua palidez enferma, sua beleza tristonha, seus olhos que ainda sonhavam apesar da vida. Sonhavam? Engano meu: habitavam pesadelos, e não tinham medo de nenhum.

Eu soube. Do quê? Você sabe. Acredita em amor à primeira vista, esse consolo dos medíocres solitários? Nem eu. Mas os olhares se cruzaram mesmo assim, e você sorriu amarga como se também soubesse – também sabia – que só podia ser fatal.

Nós.

Não demorou nada, uns dias, quantos? Nem sei, te chamei, você pegou na minha mão, te pedi um beijo, me levou pra cama. E falou quase sem voz: me faz mulher. Louca, com quê? Com o dedo e o desejo.

E com a mão me conduziu num caminho novo, coxas adentro, lábios por todos os lados, te fiz mulher e fui sua mulher, brega e desvairada. Virgem, você? Percebi com o gosto de sangue que ficou nos meus dedos. Você sentiu dor, eu sei, mas não me deixou parar, nem eu quis. Um estupro consentido que rasgou seu corpo e minha alma. Eu era sua e chorei por isso.

Você é tão linda que dói, falei, e você, sem me olhar, respondeu: menina, é foda existir.

Escreveu esse mantra no meu ventre, como um berço para o umbigo. Eu, o mesmo na folha branca da sua coxa esquerda. Tatuamos no dia seguinte. Ficou horrível, não ficou?

Ouvi demais isso de você, ouvi demais também da minha própria boca, eu, seu papagaio humano, a repetir seu estilo de vida. Aprendi de você a ser quem sou, a ser melhor quem eu já era: seu reflexo. Você, meu espelho no teto, imagem de mim mesma eternamente em repouso na cama que também era eu. Nós.

Nas festas – e como era absurdo estarmos em festas –, julgavam-nos irmãs, e era perverso confirmarmos isso. Perversas, sim, por que não? É só mais uma palavra feia. Em casa, ninguém sabia, e era gostoso não dizer. Proibição é fermento para o desejo, segredo é calda de chocolate, torna doce e molhado o que já é delicioso. Vez por outra havia brigas, eu mentia só para te ver frágil, você me deixava só para ser forte. Eu tinha outras. Outros. Mas continuava sendo sua, de coração eu era sua, e você sabia, chorava só para me enlouquecer, já estando louca. Você me arranhou, me disse não volto mais, nunca mais, foi triste e engraçada. Mas voltou, porque quando eu chamava você só sabia voltar. Recua-avança, estapeia-beija. Nosso caso era um tango. Nossa loucura, um meio de vida.

Mas eu te amava, e se para ser sua eu não podia ser de outros, que fazer? Jurei fidelidade, parei mesmo, fiquei séria. Mesmo assim você jurou vingança. Contou tudo em casa e achou lindo ser tão corajosa e gostar de confusão. Ninguém concordou. Não os olhos decepcionados da sua mãe, ó coitada, aquela vai morrer sonhando com netos, não vai?, dizíamos. Nem os berros do meu pai, para fazer isso com sua família, sua sem-vergonha, era melhor não ter nascido, ele falava. E o engraçado, menina, é que eles ainda não tinham visto nada.

Mas de que importava a família, se encontráramos numa esquina do bairro aquilo que boa parte de toda a gente roda o mundo a procurar e passa a vida sem ter visto – amor?

E se você me amava como ninguém antes e eu te amava como ninguém nunca, e se éramos perfeição nos olhos uma da outra, e se ninguém duvidava que éramos doidas de matar ou morrer por isso – por que éramos infelizes? Por que não uma vida menos egoísta, eu te perguntava, por que não salvar as baleias ou servir sopa aos pobres? Por que viver só para nós e não um pouquinho para os outros? Por que não buscar alegria lá fora?

Menina, isso tudo é tão prosaico, você decretava. Eu te amo, e o amor é egoísta, só dá quando quer de volta, só cuida para possuir, só possui para não dar aos outros. Não querer mais que bem querer é balela de poeta, e ninguém sabe menos de amor do que os poetas. Egoísta, eu sou, tu és, ele é, o amor. Os outros? Também. Para que toda essa luta se amanhã vamos embora? Foda-se o jardim, vamos sapatear nas flores.

Só na sua boca impiedosa algo tão errado podia ser tão certo. Mas talvez nos falte propósito, eu te dizia. E você, entre beijos e cigarros, baforava: ninguém tem propósito, nem nunca terá. Enquanto os outros procuram, nós trepamos.

Não me envergonho de dizer que você reinava na minha terra. Deveria? O amor é assim, egoísta ou como seja, põe um demônio no nosso trono, nos obriga a adorá-lo e nos escraviza ao prazer e ao desprazer. Fez da sua tristeza as minhas lágrimas, da sua desgraça o meu ódio, do seu riso, ah, tão pouco riso, a minha delícia. Você me domou. Não te culpo. Eu disse, e já sabia, o amor é isso, e nós o quisemos. Éramos infelizes porque assim decidíramos. Declináramos a ilusão pelo direito de ter culpa, de viver no erro, no pecado, talvez, segundo uns, no prazer, segundo outros, para quem a tristeza é apenas a ausência do prazer e a alegria, a sua presença constante. Hedonistas? Não, não éramos. Incapacidade natural, talvez. Achávamos foda existir – e isso nos dava um gozo descomunal, doente, orgástico, como se, detentoras de uma verdade só nossa, olhássemos para os outros de cima de um prédio e apontássemos quem iria morrer.

Quem vai morrer hoje?, eu brincava lá de cima, até que um dia te fiz chorar. Já não suportávamos... o quê? Uma à outra. Não. A vida? É provável. O mundo era feio e nós, sem vontade de mudá-lo. Nossas famílias nos odiavam e nosso amor era sujo, egocêntrico, fadado aos êxtases amargos, noites sem sono, dias sem sentido. Viver pra quê?, você perguntou um dia, e eu tive medo de verdade pela primeira vez. Não vá me deixar, falei. Eu te mato, entendeu? E você sorriu para mim, flor, menina, patricinha rebelde, você sorriu e me disse: sim, por favor.

Não! Por que não? Porque a gente se ama. E de que vale isso? Eu não tive resposta.

A vida é uma coisa besta, você me revelou. A nossa, principalmente. A gente sempre soube e nunca fez nada pra mudar. Mas por que agora? Eu quero sair, amor, quero sair daqui, no mundo, da vida, disso, de você, até. Não! Então vem comigo.

E eu fui.

Se a vida era uma bobagem, ao menos a morte tinha de ser um evento sofisticado. Questão de estilo, você não podia morrer como viveu, apagada e sem propósito. A morte tinha de ser grande, bonita, solene. Um imenso alívio, sem dor nem convulsões nem caretas nem sangue. Por isso, pílulas e algo bem forte pra beber antes de ir. Pílulas para dormir e nunca mais acordar.

No meu quarto ou no seu? Sua cama é maior. Conhaque e comprimidos, um brinde a nós, querida. Durma. Pus minha mão na sua e meu olhar no seu até perder o foco, devagar, suave... não lembro se sorria. Terminava nossa história com o fim que escolhemos, não o que os outros queriam, e assim tinha que ser. Bons sonhos.

Só que eles vieram. Claro que não vimos. Mas eles derrubaram a porta, já sabiam, não sei como, você por acaso deixou um bilhete, tonta? Arrombaram a porta, roubaram depressa nossos corpos da cama, eu e você em macas rumo ao pronto-socorro. Lavagem estomacal? Quem sabe o que fizeram. O que sei é que arruinaram nosso momento. Era para sermos apenas nós duas, mãos dadas, nuas sob os lençóis em nossas núpcias de morte, rumo à luz ou às trevas, juntas, sem vínculos, mágoas, arrependimentos. Mas tiraram isso de nós. Eles não tinham o direito!

O que na vida não souberam fazer, na morte tiveram sucesso. Eles nos separaram. Tentaram nos trazer de volta. E conseguiram, mas só com uma de nós.

Quando acordei, não estava mais ao seu lado e soube que nunca mais íamos nos ver.

Bem, não exatamente. Eu vejo você. Todo dia.

Vejo que se tranca no quarto, passa dias sem comer ou dizer palavra, abraça uma foto e lembra de mim, como deve ser. Depois você sai. Adquire novos costumes na sala. Vê pessoas. Elas conversam com você e sorriem. Mostram coisas diferentes. Até te levam à igreja. Você usa um vestido florido. Você se transforma. Consegue sorrir para quem se lembra da tragédia – ah, então é assim que eles chamam, a tragédia? Depois, você joga fora nossos discos. Nossos livros também.

Algo deu errado, tão errado, menina, seu corpo te traiu, traiu a nós duas quando resistiu à decisão, estragou tudo... Eles te tiraram de mim. Eu fui, e te prenderam aqui. Você ficou, e a morte não me remediou.

E o mais errado de tudo, querida, é o meu retrato agora esquecido no fundo da gaveta. E esse cara, quem é ele? Por que você o traz para o quarto? Quando te pergunta quem é a garota na foto, você diz: uma amiga, já morreu, a pobre... era meio doida, sabe?

Mas eu ainda existo, e isso é foda.

12 comentários:

Camila Fernandes disse...

Romeu,
A pintura casou legal com o texto. Many thanx!

Romeu Martins disse...

Que bom que você, excelente ilustradora que é, gostou do Rubens, Mila.

Beijão e obrigado por liberar este conto tão bacana, sensível e lindo :)

tibor disse...

Um texto maravilhoso, pungente, arrebatador. Adorei de verdade. Só não sei onde está a FC. Mas não faz mal. Textos assim estão acima dos rótulos, acima de classificações... Eles sublimam e se transformam em pura literatura.
Parabéns, Mila.

Helena disse...

Noches,querida,

É um prazer encontrar você aqui. Com um conto denso, dramático e de final surpreendente.

Parabéns novamente ao Romeu pela publicação,

merrel, helena

Romeu Martins disse...

Tibor, Tibor, eu disse que era ficção *fantástica* - e é -e não necessariamente FC - o que não é. Mas acima de tudo, concordo contigo: o que a Mila fez, e faz, é literatura da boa.

Brigado de novo, Merrel.

tibor disse...

Romeu, Romeu... pois é... não li direito. Mas concordamos em tudo. Sabemos reconhecer literatura da boa. Ponto pra nós.

Romeu Martins disse...

Beleza, Tibor.

É que pensei que que vc ia querer começar uma discussão sobre toxonomia ou epistemologia literária, hehehe.

tibor disse...

Eeerrr... não seria 'taxonomia'? rsrs

Octavio Aragão disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Octavio Aragão disse...

Muito, muito bom. Muito mesmo. Lindo. Na tradição de Shirley Jackson, mas com um toque a lá Álvares de Azevedo.

Parabéns à Mila e ao Romeu.

Anônimo disse...

É, "toxonomia" sou eu escrevendo comentários de pé e equilibrando a xícara de café em uma das mãos...

Valeu, Octavio. Aguardo seu conto:)

Camila Fernandes disse...

Obrigada, pessoal! Fico feliz que a leitura os tenha agradado. ;-)

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