17.9.08

Sombras

Uma narrativa sombria escrita por Maria Helena Bandeira com arte de Leonor Fini

Antes que eu me esqueça de tudo, vou digitando este documento.

Fui um dos primeiros candidatos ao programa de implante de memórias para pacientes de Alzheimer Minor .

Como todos os outros, perdi meu passado e vivo um eterno estar aqui, o que me torna um ser onipotente e solitário. Esqueço todos os que se aproximam de mim no momento em que somem de minha presença e sei que existem apenas por causa do meu implante, ao qual agreguei este aspecto importantíssimo.

Pessoas me dão comida, pois não saberei o que fazer ao sentir fome, na verdade nem conhecerei o que é fome em termos abstratos, apenas a sentirei, como qualquer necessidade fisiológica, quando se corromperem as memórias implantadas. A única coisa que os Minor mantém e os distingue é a capacidade de ler e escrever. Porque acontece este fenômeno, que região do cérebro permanece intacta é algo para os pesquisadores – sei apenas que é assim. Vejo, ouço, digito e leio - estas capacidades não perdi.. Mas como não tenho lembranças originais, de nada adiantará sem o implante. Por isto me candidatei assim que soube da abertura do programa e do meu diagnóstico irreversível.

Roubei, subornei, gastei quase tudo que tinha para recapturar e implantar minhas próprias memórias e algumas alheias.

Consegui ser o primeiro candidato. Misturei acontecidos e desejados, criei um passado que me satisfaz. Já que pude escolher a doença, fui o meu próprio Deus neste resgate.

E te revejo, linda, em Paris, tomando chá enquanto chove - há gotas nos vidros das janelas ...

...e já não sei o que vivi e o que comprei... mas na memória implantada eu te amo, talvez tenha te amado sempre, não importa.

O implante não é confiável, sinto que as lembranças estão se corrompendo... confundo datas, lugares.. foi em Veneza que nos encontramos? Chovia em Londres naquele verão? Ou foi Paris? revejo sua boca, cada vez menos nítida, olhos misteriosos de marzipan... o que é marzipan? Lembro da frase, mas não do rosto ou dos motivos.


Meu terror é voltar a viver apenas nesta clínica onde estou encerrado. Eu e o micro que me deram para relatar as sensações e experiências - sou uma cobaia humana.

Memórias são minha única viagem - por elas saio daqui... mas cada vez mais me distancio das lembranças. Vivo um eterno presente sem sombras... fui implantado ou inventei?

Releio o que escrevi - Veneza?... Olhos de marzipan?... Chuva em Paris?.. implante.. não sei mais o que significam..... tudo parece absurdo, confuso...

Estranho texto... quem terá escrito? Às vezes penso que existem outros como eu em algum lugar, mas é uma impressão fugidia. Meu mundo é aqui e neste micro onde leio coisas que não compreendo.

... Vivo um eterno presente sem sombras.... Gosto desta frase. Mas, por algum motivo que não consigo recapturar, parece triste.

E repito: você, na chuva, em Paris, para me consolar. Embora não tenha a menor noção do significado.
Há vidros em Veneza no verão...


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10 comentários:

Anônimo disse...

Muito bonito esse texto, Mhel.

Embora seja difícil dizer o que exatamente nos atrai nele.

Creio que seja um conjunto de fatores:

Há uma atmosfera intimista que confere uma grande sensação de realidade à narrativa; há o voyeurismo de conhecer o mundo de alguém que sofre de uma doença mental, e numa versão futurista...

Mas creio que o mais fascinante mesmo seja o jogo desorientador que a Mhel apronta com a nossa noção de tempo. Ela é nossa especialista nisto.

Anônimo disse...

E eu que achei que já tinha comentado o seu "O espelho do rei".

Comentei agora lá.

Estou caducando mesmo.

Antes eu não sofria disso não! É tudo culpa da OE!

Helena disse...

hehehe AGB, só você mesmo! E tem razão, sou fascinada pelo tema tempo, tanto quanto identidade e percepção. E todos estão um pouco aqui. É um conto sombrio, mas tentei que fosse salvo pelo clima poético. Vou lá olhar o seu comentário no Espelho do Rei.

beijão e obrigada,

Mhel

PS - Você está fazendo falta na Oficina

Anônimo disse...

Sim, sim. O primeiro adjetivo que usei para o conto foi "bonito". E não foi à toa. A história foi lindamente abordada.

Oh, sim. O conto trata de muitas coisas, não apenas de tempo. Mas creio que esse tenha sido o aspecto que mais me incomodou (no bom sentido).

Também sou fã desse tema. E às vezes me aventuro por ele, como fiz na minha primeira rap. É uma questão que, quando bem usada, mexe mesmo com a gente.

O que é raro é ver esse bom uso. Ainda mais de forma sempre inovadora, como faz a Mhel.

Romeu Martins disse...

O que eu gosto na MHell é que além de textos e imagens ótimos ela agrega leitores atentos ao blog.

Grato aos dois ;-)

Fernando Carvalho disse...

Beleza, Mhel!
Li e gostei.Muito boa sua literatura, a gente se coloca na pele do Alzheimer Minor e fica desesperado. Só não me estendo mais porque não é a minha praia.
Beijos
Fernando

Anônimo disse...

Tudo menos atento, Romeu.

Hehehehe

Tudo, tudo...

Abração,

AGB

Giseli Ramos disse...

Interessante se sentir na pele de alguém sem passado. Isso me lembra um relato do Oliver Sacks sobre um paciente dele, também sem passado, mas não por causa da doença de A. e sim outra coisa. Deve ser meio duro isso... :/

Romeu Martins disse...

Hehe, como preferir, Golden :>)

Helena disse...

Que coincidência, Giseli, um amigo meu na OE comentou exatamente sobre um paciente do Sacks ao ler este conto - até falei com o Romeu. Era um cara que escrevia várias vezes: acho que acabei de acordar. E na última anotação: apesar do que escrevi acho que acabei de acordar agora. Angustiante. Eu nunca li o Sacks quero muito ler.

beijão e obrigada pelo comentário,

Mhel

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