28.8.08

Franco-atirador

Reflexões edipianas de um fuzileiro por Tibor Moricz

Ergueu o visor, coçou o bigode, soltou um bocejo e rearrumou as pernas, descruzando-as e voltando a cruzá-las noutra posição. Olhou para lá embaixo. Ainda não era mais que um pontinho no horizonte. Avançava pouco a pouco.

As botas estavam sujas de terra. Um rasgo longitudinal numa delas deixava à mostra um pedaço da meia. O uniforme em petição de miséria. Maus tratos num planetinha inóspito. Areia e pedras. Fungos. Sol inclemente. Dias quentes e noites frias. Olhou para o céu e perscrutou as nuvens azul-esverdeadas e através delas... Como se pudesse. Soprava uma brisa suave e morna. O vale se descortinava diante dele. Ravinas e nenhuma vegetação. O pó na língua formava torrões que cuspia a pequenos intervalos.

Pensar na mãe foi simultâneo. Pensar nela era obrigatório. Todos os dias e noites, sob o sol, sob a chuva ou sob o fogo inimigo. Era uma figura renitente que, teimosa, não o abandonava. Mesmo que ele a tivesse abandonado há tempos.

Mãe... Senhora imponente em sua suposta majestade. Isso. Toda mãe se sente majestade. Seu reino: O lar. Seus súditos: Os filhos. Era quase impossível não sentir o travo amargo na garganta. Quando fora? Quando? Quando foi que lhe gritou na cara para que o deixasse seguir a própria vida? Quando foi que, em meio a impropérios – que hoje lamenta não terem sido mais virulentos –, enfiou-lhe o dedo na cara e lhe disse, em alto e bom som, que era mais e melhor do que ela jamais poderia supor?

É... Quando?

Havia o quando ela reunia amigos e familiares para lhe fazer uma festa surpresa de aniversário... Mas eram eventos que preferia esquecer. Ocorriam sazonalmente, uma vez ao ano, discretamente camuflados entre um dia e outro.

Balançou a cabeça e esticou o olhar mais uma vez. O pontinho ao longe já se tornara distinguível. Era uma pessoa – claro que sim, sabia desde o princípio –, homem ou mulher; caminhava de maneira cautelosa. Procurava abrigo entre as rochas. Carregava petrechos que o faziam avançar com dificuldade. O que um idiota como esse estaria fazendo ali, sozinho? Não era dos dele. Esse era o posto avançado. Para além, apenas a incógnita. Apenas o inimigo. Posicionou o fuzil fazendo mira. A distância era ainda grande para arriscar.

Lá vinha a mãe de novo. O olhar arguto atravessando-lhe a carne como faca afiada. Passinhos sempre curtos, mas fortes. Cada passada como se quisesse fazer o mundo entender que estava ali, poderosa como nunca.

E estava.

Sempre acima deles. Mesmo sendo de estatura média, mesmo tendo que erguer o olhar para encará-los. Ele e ao irmão, que já não era, mas um dia foi. Não a sete palmos de fundura, que estaria muito bom. Mas espalhado em fragmentos ensangüentados. Um obus dentro da trincheira. Sem tempo para fugir. Nem para pensar. Nem para um “ai”.

Era ela a responsável... A maldita.

Claro que sim. Quem mais poderia? Ela iniciou a guerra, os alistou, os fez atravessar a galáxia, reuniu o inimigo, indicou a trincheira, fabricou o obus, deu as coordenadas, disparou e gargalhou a morte do próprio filho... Maldita.

Descruzou as pernas e bateu com as botas no chão, fazendo levantar uma pequena nuvem de poeira. Colocou-se de joelhos e projetou o corpo para frente, procurando o futuro defunto que caminhava no vale. Lá estava ele. Era homem. Talvez uns vinte anos de idade. Três a menos que ele. Aparelhado. Uma mochila larga às costas. Um fuzil pendurado no ombro, olhar compenetrado no caminho.

O destino o aguardava nas alturas.

Sentou-se sobre os calcanhares, abriu o cantil e bebeu um gole d’água. E a maldita voltou a lhe ocupar as lembranças. Como no dia em que enfiou o cabo do guarda-chuva na garganta do senhor Pickelton. Queria defendê-lo, a idiota. Acabou por colocá-lo em maus lençóis. Ou quando teimou que Susan não era mulher para ele. E não era mesmo, mas ela jamais poderia ter se metido nisso. Ou quando disse a Joe, seu irmão despedaçado, que jamais permitiria que ele se alistasse no exército. Que era o caçula, o desprotegido, o incauto, aquele que deveria ser um modelo dentro de casa. Que não deveria seguir maus exemplos.

Claro que ele disse a ela pra não se meter.

E da vez quando o pai, completamente bêbado, começou a quebrar os móveis da sala. Ela, de certa forma, o ajudou. Pegou um vaso e o colocou pra dormir em meio aos cacos. Fora horrível, de uma agressividade desnecessária.

Ele e Joe assistiram a tudo, encolhidos num canto. Cabelos desgrenhados, marcas pelo corpo, sangue escapando dos lábios. Atônitos após a surra que levaram dele, atônitos pela reação da mãe. Atônitos por terem sido tão veementemente defendidos sem que pudessem demonstrar sua força.

Tudo bem... Eram crianças. Mas crianças com opinião própria. Tinham braços e pernas. Tinham cérebro. Tinham vontade.

“Vão morrer, os dois!... Vão morrer!”, gritou a mãe quando foram chamados ao front. Os perdigotos espirraram-lhes nas faces. O rosto dela, sempre tão forte, tão vigoroso, desmoronava diante deles. Viram o veneno escorrer. Ou teria sido medo?

Nunca tiveram chances de voltar a vê-la. Morreu naquele mesmo verão. Falência múltipla dos órgãos. Metástase. Câncer de pâncreas não detectado até que fosse tarde demais. Morreu antes de Joe. Morreu depois do pai.

Jamais abriu as suas cartas. Para quê? Para ter que enfrentar uma sabedoria sempre indiscutível? Para ter que engolir sem chances de resposta as súplicas, as recomendações?

Respirou fundo e elevou os pensamentos a Joe. Onde quer que estivesse. Talvez no inferno. Claro que a mãe estaria lá, se assim fosse. Enfiando o cabo do guarda-chuva na garganta do diabo e colocando Joe em ainda piores lençóis.

Aprumou o corpo. Recolheu duas lágrimas teimosas e posicionou o fuzil. Mamãe... Ainda tinham assuntos a acertar. Conversas a tecer. Posições a discutir. Projetou o corpo para frente e procurou o alvo, arma engatilhada.

Lá estava ele.

Agachado próximo a uma rocha. Ajoelhado. A arma empunhada, o cano erguido. Quase um reflexo seu. Um espelho bizarro posicionado no vale, refletindo mais que a sua pessoa... Quase a sua alma.

Afrouxou o aperto no gatilho e sorriu com alguma ansiedade. Pensou em Joe e na mãe. Deu uma risadinha nervosa. “Vamos aproveitar a chance, certo? É isso aí. Vamos aproveitar...”

O estampido ecoou pelo vale, desaparecendo ao longe.

Manteve a posição. Arma nas mãos, cano apontado para baixo, dedo trêmulo no gatilho. Nos olhos a opacidade. Antes de cair do penhasco ainda conseguiu concatenar um breve pensamento. Alguma coisa a ver com a mãe.

Algo indistinto, como um vago sorriso de boas vindas.

9 comentários:

Helena disse...

Belo conto, Tibor, o lado humano da guerra e uma personagem indireta que domina tudo - a super-mãe, super protetora, super destrutiva.

No enfoque psicológico dentro do horror da destruição, me lembrou um conto russo do sec XIX - Quatro Dias. Narra as reflexões e o desespero de um soldado ferido e abandonado entre os mortos.

um abraço,

Helena

Romeu Martins disse...

Engraçado, MHell. Eu não cheguei a escrever na resenha que fiz de Síndrome de Cérbero, mas comentei com outra escritora o quanto o trabalho do Tibor me lembra o de autores russos, como Tolstói e Gógol.

Mas não conheço o conto do qual você fala, "Quatro dias".

Obrigado pelo comentário.

Helena disse...

O autor do conto, Vsievolod Garshin, é pouco conhecido suicidou-se aos trinta e poucos anos. Mas este conto Quatro Dias é uma obra prima.

Engraçado a gente ter sentido a mesma coisa - efeito free hehe

beijão,

merrel

Romeu Martins disse...

Pois agora,MHell...

E eu nem fumo, hehe. Mas tinha comentado com a Cristina Lasaitis sobre como os textos do Tibor,que é descendente de húngaros, me lembravam os russos do novecentos...

tibor disse...

Tolstói e Gógol. Comparado a escritores de alta literatura. Isso muito de lisonjeia, embora esteja ainda longe de ser verdade. Agradeço aos dois pelas palavras elogiosas. Gosto de escrever contos que mexam com as pessoas. Eu não escrevo para olhos ou para ouvidos, escrevo para as vísceras. Vem delas as respostas mais intensas. Obrigado Mhel, obrigado Romeu.

tibor disse...

Ia me esquecendo de Vsievolod Garshin... também nunca ouvi falar, mas teria imenso prazer em ler alguma coisa dele.

Anônimo disse...

Pois agora, vou procurar algo do Garshin também... Pelo menos na literatura, sou verdadeiramente fã dos russos.

(Romeu, anônimo no próprio blog)

Helena disse...

Romeu e Tibor,

Eu li o conto num livro excelente
que deve existir em sebos: Maravilhas do Conto Russo. Lá estão também três dos contos que eu mais adoro na literatura universal - O sonho de Makar,do Korolenko, O Capote, do Gogol e A Conversão do Diabo, do Andreiev

beijos,

merrel

Romeu Martins disse...

Desses, só li O Capote, do qual gosto muitíssimo.

Um escritor radicado aqui em Santa Catarina fez uma releitura do conto, chamada "Uliano Torres, de curto porém vistoso reinado". Muito interessante, mas difícil de se achar...

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