31.8.08
A revolução dos bichos
Um novo tour pelas ruas de Big Field por R. R. Londero
2055. Big Field. Cidade-corredor. Aqui tudo passa: gringo, contrabando, pirataria, drogas, remédios ilegais. Se tudo passa, é cidade-de-ninguém. Faroeste dos magnatas da bio-pecuária, boi cultivado geneticamente. Big Field é a cidade-das-saídas: saída para Cuiabá, saída para São Paulo, saída para a puta que te pariu. É desespero dos sem-saídas é Big Field.
Minha história começa perto do Bariloche, residencial periférico com nome de balneário glacial. Mas aqui, bugrinho, faz muito calor, mesmo de noite. Pela enésima vez, Enéias me descolou o material de trabalho, restos de algum holocausto ecológico. Agora espero o bonde, 508 ou 509. De longe avisto a gangue dos guaicurus motorizados realizando manobras ancestrais: encurvados em suas motos, eles rasgam o chão com lanças artesanais. Índios motoqueiros com jeitão de Akira.
Não demora, pego o Rita Vieira. Desço na Rui Barbosa, subo a Afonso Pena, chego na Praça do Rádio. Rasantes corujões me fazem lembrar que, apesar da cicatriz na testa, não sou Harry Potter. Minha mágica não é bruxaria, mas cirurgia plástica ecológica. Sou especialista na última moda big-fieldense. Cansada de vestir pele de onça, cansada de ver pintura de boi, cansada de ler romance de tuiuiú, a elite big-fieldense radicalizou: querem costurar pele de onça em seus corpos, querem chifres de boi em suas cabeças, querem bicos de tuiuiú em suas bocas. Aberrações saídas de uma versão pantanal da Ilha do Dr. Moreau. Então, bugrinho, é fácil ver madames com penas de arara azul em volta dos braços, com pêlos de lobo-guará saltando do busto, com escamas de jacaré cobrindo as mãos.
Chego no consultório. Quarto de pensionato. Abaporu sétima série abençoa o recinto enquanto baratinhas se escondem. O doutor já espera do lado de fora. “Olhos de jacaré, chifres e cascos de boi, está tudo aqui”. O doutor sorri imaginando o novo visual. Faço o serviço sem demora. Quando tudo termina, ele diz: “Sensacional! Sensacional! Você realmente é o Pitanguy do Pantanal”. “Obrigado, doutor! Em que mais posso servir?”. Daí surge a proposta: “Anca de anta para minha esposa”. Caralho, é bicho raro! Mas acerto o trato com o otário.
Preciso ligar para o Enéias. Lembro daquele maldito jingle das Pernambucanas: “Cadê meu celular?”. Acho no meio dos livros (entre Graham Bell: uma biografia e Iniciação à telepatia). Menu, Agenda e 3 duas vezes: Enéias. Túúúúú-iúiúúúúú (norma governamental do novo toque telefônico). Enéias atende: “Fala, brother”. “Anca de anta! Preciso de anca de anta!”. “Puta merda, isso tá foda, brother!”. “E agora?”. “Improvisa com capivara, ninguém sabe a diferença”. “Boa idéia!”. “Beleza, brother. Até mais!”. Desligou, obviamente. Ninguém precisa do Enéias para achar capivara. Existem milhares no antigo campus da UFMS. Depois dos experimentos nucleares do Dr. Alberto Estevão, PhDeus em Física Canônica, a população de capivaras cresceu absurdamente, obrigando os discentes, docentes e doentes do HU (sobreviventes do incêndio na Santa Casas Bahia) abandonarem o campus.
De manhã, aguardo o 061 enquanto vejo imagens ininterruptas no telão da Praça Ari Coelho. Parte 84 da famosa série trash big-fieldense A Matança do Jacinto. Não demora, pego o Branquinhas–Shopping (nome alterado após trágico acidente nas indústrias de cal). De longe avisto o Paliteiro com cabeças empaladas de ousadas pessoas que invadiram o território das capivaras. Frio na espinha dorsal, mas boçal como sou sigo adiante. Desço em frente ao Estádio Morenão, carrego minha flecheira Molly com dardos envenenados. Voz de videogame na cabeça: “Are you ready? Go!”. Mato uma, duas, três, quatro... São 26 capivaras até o final do dia. “New record! Register your name”. Madame vai ter muita anca para escolher.
Agora mereço descanso, comer sobá na feirinha com visual Blade Runner. Enquanto como, vejo aquele garoto numa mesa distante, conversando com amigos. Menino maluquinho imaginando mundos paralelos, universo cyberpunk em Campo Grande. Levanta e se despede dos amigos. Precisa terminar a dissertação de mestrado... Mas antes escreve o epílogo de “A revolução dos bichos”:
2056. Big Field. Cidade deserta. Não restou ninguém após a mega-epidemia de dengue.
2055. Big Field. Cidade-corredor. Aqui tudo passa: gringo, contrabando, pirataria, drogas, remédios ilegais. Se tudo passa, é cidade-de-ninguém. Faroeste dos magnatas da bio-pecuária, boi cultivado geneticamente. Big Field é a cidade-das-saídas: saída para Cuiabá, saída para São Paulo, saída para a puta que te pariu. É desespero dos sem-saídas é Big Field.
Minha história começa perto do Bariloche, residencial periférico com nome de balneário glacial. Mas aqui, bugrinho, faz muito calor, mesmo de noite. Pela enésima vez, Enéias me descolou o material de trabalho, restos de algum holocausto ecológico. Agora espero o bonde, 508 ou 509. De longe avisto a gangue dos guaicurus motorizados realizando manobras ancestrais: encurvados em suas motos, eles rasgam o chão com lanças artesanais. Índios motoqueiros com jeitão de Akira.
Não demora, pego o Rita Vieira. Desço na Rui Barbosa, subo a Afonso Pena, chego na Praça do Rádio. Rasantes corujões me fazem lembrar que, apesar da cicatriz na testa, não sou Harry Potter. Minha mágica não é bruxaria, mas cirurgia plástica ecológica. Sou especialista na última moda big-fieldense. Cansada de vestir pele de onça, cansada de ver pintura de boi, cansada de ler romance de tuiuiú, a elite big-fieldense radicalizou: querem costurar pele de onça em seus corpos, querem chifres de boi em suas cabeças, querem bicos de tuiuiú em suas bocas. Aberrações saídas de uma versão pantanal da Ilha do Dr. Moreau. Então, bugrinho, é fácil ver madames com penas de arara azul em volta dos braços, com pêlos de lobo-guará saltando do busto, com escamas de jacaré cobrindo as mãos.
Chego no consultório. Quarto de pensionato. Abaporu sétima série abençoa o recinto enquanto baratinhas se escondem. O doutor já espera do lado de fora. “Olhos de jacaré, chifres e cascos de boi, está tudo aqui”. O doutor sorri imaginando o novo visual. Faço o serviço sem demora. Quando tudo termina, ele diz: “Sensacional! Sensacional! Você realmente é o Pitanguy do Pantanal”. “Obrigado, doutor! Em que mais posso servir?”. Daí surge a proposta: “Anca de anta para minha esposa”. Caralho, é bicho raro! Mas acerto o trato com o otário.
Preciso ligar para o Enéias. Lembro daquele maldito jingle das Pernambucanas: “Cadê meu celular?”. Acho no meio dos livros (entre Graham Bell: uma biografia e Iniciação à telepatia). Menu, Agenda e 3 duas vezes: Enéias. Túúúúú-iúiúúúúú (norma governamental do novo toque telefônico). Enéias atende: “Fala, brother”. “Anca de anta! Preciso de anca de anta!”. “Puta merda, isso tá foda, brother!”. “E agora?”. “Improvisa com capivara, ninguém sabe a diferença”. “Boa idéia!”. “Beleza, brother. Até mais!”. Desligou, obviamente. Ninguém precisa do Enéias para achar capivara. Existem milhares no antigo campus da UFMS. Depois dos experimentos nucleares do Dr. Alberto Estevão, PhDeus em Física Canônica, a população de capivaras cresceu absurdamente, obrigando os discentes, docentes e doentes do HU (sobreviventes do incêndio na Santa Casas Bahia) abandonarem o campus.
De manhã, aguardo o 061 enquanto vejo imagens ininterruptas no telão da Praça Ari Coelho. Parte 84 da famosa série trash big-fieldense A Matança do Jacinto. Não demora, pego o Branquinhas–Shopping (nome alterado após trágico acidente nas indústrias de cal). De longe avisto o Paliteiro com cabeças empaladas de ousadas pessoas que invadiram o território das capivaras. Frio na espinha dorsal, mas boçal como sou sigo adiante. Desço em frente ao Estádio Morenão, carrego minha flecheira Molly com dardos envenenados. Voz de videogame na cabeça: “Are you ready? Go!”. Mato uma, duas, três, quatro... São 26 capivaras até o final do dia. “New record! Register your name”. Madame vai ter muita anca para escolher.
Agora mereço descanso, comer sobá na feirinha com visual Blade Runner. Enquanto como, vejo aquele garoto numa mesa distante, conversando com amigos. Menino maluquinho imaginando mundos paralelos, universo cyberpunk em Campo Grande. Levanta e se despede dos amigos. Precisa terminar a dissertação de mestrado... Mas antes escreve o epílogo de “A revolução dos bichos”:
2056. Big Field. Cidade deserta. Não restou ninguém após a mega-epidemia de dengue.
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2 comentários:
Realmente é ótimo. Lembra muito o trabalho do Fausto Fawcett – e isso é um elogio.
Também gostei bastante dos contos do Rodolfo. Pareque que por enquanto ele só produziu esses dois, espero que venham mais...
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