31.8.08

O espelho do rei

Uma trama niilista escrita e com projeto visual de Maria Helena Bandeira


O príncipe herdeiro de Aleph, na constelação Azul à leste de Andrômeda, tinha uma peculiaridade – era um obsessivo buscador. Ao contrário dos irmãos que procuravam aproveitar a vida, percorrendo bordeis da galáxia e entornando todas as combinações etílicas, Malthus só se interessava por descobrir o sentido da existência. Para isto vinha gastando o tesouro do reino em viagens às mais distantes partes do Universo.

No terceiro planeta, que orbitava a estrela amarela de uma galáxia distante, ele, finalmente, encontrou uma resposta. Malthus percorreu planícies e montanhas, navegou por mares azuis e suportou temperaturas geladas sobre seu corpo adaptado. Em algum lugar na Terra, diziam os livros antigos de Aleph, se escondia o maior sábio do universo - Ibn Al Said, o simples.

E ele o encontrou.

O deserto parecia escaldante mesmo aos sentidos adaptados do navegador corporal. Uma fina neblina de areia se levantava sob o sol, excessivamente próximo para os padrões alephianos, onde a noite se alongava por ciclos gigantes, o que favorecia a proliferação de adivinhos e magos.

Estava próximo de encontrar aquele que lhe daria a resposta esperada e seu coração batia.

A gruta era apenas um amontoado de pedras e sentado em frente a elas, o velho permanecia absolutamente imóvel.

Ligou o intercomunicador e perguntou com voz trêmula:

- Mestre?

O ancião não moveu um músculo. Repetiu a pergunta:

- Mestre? Ibn Al Said?

Nenhuma manifestação de vida. O príncipe sabia que esta não era a atitude habitual dos habitantes daquele planeta e ficou indeciso. Mas em Aleph paciência é virtude e Malthus era um obsessivo buscador.

Sentou-se ao lado dele e esperou.

Muitas luas cruzaram o céu noturno e o sol se levantou sobre a areia incontáveis vezes antes que o mestre respondesse:

- Sou eu

O príncipe, cuja nutrição, realimentada pelo navegador corporal, começava a ficar em estado de colapso, respondeu animado:

- Mestre, há anos eu o procuro, por milhares de planetas nesta galáxia, para fazer uma simples pergunta, que é a mais importante de todas – qual o significado da vida?

O mestre levou outras muitas luas para responder e quando o príncipe já quase desistia, no limite de seu traje adaptador, abriu a boca desdentada e emitiu apenas uma frase.

Depois, recaiu na posição de estátua, da qual não saiu mais durante todo o tempo em que o príncipe permaneceu lá, tentando entender.

O que significaria aquilo? Sabia que o mestre não iria explicar nada, cabia a ele descobrir.

Voltou para seu planeta e durante o resto da vida, mesmo após assumir o trono, dedicou-se a decifrar aquelas palavras enigmáticas. Consultou astrólogos de Júpiter, magos de Andrômeda, bruxas de Ashtar XIX, as mais poderosas do Universo. Penetrou nos domínios tenebrosos da bruxa de Pher, em fragmentos temporais distantes, onde quase perdeu a razão. Navegou pelo tempo e pelo espaço, procurou lingüistas de idiomas estranhos, até mesmo os tradutores dos guturais sons reptilíneos de Alighator. Nada. Ninguém sabia decifrar o significado da frase, muito menos o sentido da vida.

Quando, depois de quinhentos anos, sua própria existência estava no fim, continuava com a mesma interrogação sem resposta, a mesma angústia infinita.

Resolveu fazer uma última e desesperada tentativa, usando todos os recursos da ciência e da cosmetologia. Reformou seu aparelho biológico e apoiado por um ultra-sofisticado navegador corporal, viajou até o pequeno planeta, Terra, o terceiro a partir da estrela daquela galáxia distante.

Com suas últimas forças, atravessou o deserto e conseguiu chegar à gruta onde encontrou o mestre exatamente na mesma posição.

Sentou-se lado do velho e permaneceu calado algumas luas, as derradeira que lhe restavam na contabilidade do futuro.

Já mal conseguindo articular as palavras, finalmente se atreveu a perguntar:

- Mestre, passei a vida toda procurando, viajei pelos confins do universo, conheci seres de todas as espécies e gêneros, mas nunca, ninguém, conseguiu decifrar a frase que me ensinaria o significado da vida. E repetiu reverente: “ da escada de alcebíades ao aeroplano romântico.”

As palavras ressoaram, através do intercomunicador, no deserto silencioso e estrelado.
- Gastei fortunas, subindo e descendo escadas, das simples às mais estranhas do universo. Através de pesquisa arqueológica aqui na Terra, consegui fórmulas da construção de aeroplanos diversos e neles procurei viver românticas noites e dias.

Tudo em vão. Jamais descobri o significado.

Agora que estou chegando ao fim da jornada, acho que mereço a resposta. Por favor, mestre, me diga o significado de tal frase.

Pela primeira vez, o mestre se moveu em direção a ele, uma silhueta escura contra as estrelas

- Querido rei, você olhou para o lado errado do espelho, ignorando o real pela imagem. Gastou o tempo de sua existência procurando o sentido das palavras e voltou sobre os próprios passos. No entanto, elas significam o mesmo que a vida.

E fechando os olhos do velho rei que agonizava:

- Nada.



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11 comentários:

John disse...

Nietzsche, Kafka e Borges num texto de Herman Hesse. Interessantíssimo.

Helena disse...

Obrigada, John. Valeu. Ainda mais porque sei que um elogio seu é raro.

beijão,

merrel

Day disse...

Muito bom, Mhel!
o projeto gráfico é seu, certo?

o quadro é seu?

hummm...to pensando na Pedra de Toque...rs

beijos

Helena disse...

Obrigda, querida. Não, o quadro é de um autor que capturei na Net e modifiquei as cores mas posso conseguir o nome, é um pintor interessante para ilustrações Usei no Ovo com a foto original.

Romeu Martins disse...

Mas o toque pessoal da MHell deixou a ilustração perfeita,não é mesmo?

Só posso agradecê-la por compartilhar o seu talento com a gente.

Anônimo disse...

Gostei muito, muito...
Você é genial!
Eu não teria a paciência de Malthus, nem sua curiosidade.
Cada um de nós dá à vida o significado que quer, mas se alguém me perguntasse sobre o que ela significa, eu não diria nada.
Beijo,
Nédier

Helena disse...

Obrigada, querida Nedinha. E eu não sou o mestre Ibn. Sobre o significado da vida responderia: Não sei.

O português é uma lingua complicada. Fiquei sem saber se você não responderia nada mesmo ou não responderia o mesmo que o mestre: nada.

hehe

beijão,

merrel

Anônimo disse...

Ler esse conto me remeteu ao Dr. Fantástico do Kubrick.

Não que as histórias tenham alguma relação. Não têm nenhuma. Mas creio que elas despertam algo semelhante no leitor/espectador.

Em ambos os casos temos um enredo com bastante humor, mas, por trás da comédia, há uma questão muito séria sendo discutida.

No Dr. Fantástico, a possibilidade do início de uma guerra nuclear de modo involuntário; nesse conto, o conflito que vive o ser humano em sua incansável busca por respostas e a possibilidade delas nem mesmo existirem.

Trata-se de um humor nervoso, permeado por medo.

Uma combinação que, racionalmente falando, ninguém diria que dá certo.

Mas está aí a prova.

Helena disse...

Você foi no nervo, AGB. O medo da morte, na verdade, o medo da inutilidade da vida.

O humor é ainda a melhor forma de driblar nossa incapacidade de entender.

beijão e obrigada por visitar e comentar,

Mhel

Anônimo disse...

Sister...
Você coloca na boca do mestre uma resposta verdadeiramente sábia.
Porque liquida a pergunta, mas não enecrra o assunto.
Antes, enriquece o que aparenta simplificar.
As palavras significam o mesmo que a vida...e são tudo o que temos.
Essa leitura (nos 2 sentidos)me deixa muito feliz.
Beijo grandão,
Ludi.

Helena disse...

Ludi, querida,

É isto aí. O mestre não encerra a questão. Nem eu.
Você, como sempre, descobrindo o significado oculto por trás das aparências.

gande beijo e obrigada,

merrel

Ibope