21.8.08
Diabólica Perséfone
Uma nova visão do conto "A Diabólica Comédia" por Ludimila Hashimoto
Pareça a flor inocente. Mas seja a serpente que é você.
Perséfone pensou com o olhar sorridente. Deitada sobre mantas de lã e veludo, espreguiçando-se a irradiar beleza pelas sombras carregadas do Inferno, ela não tinha pressa. Os mundos esperariam quanto fosse preciso. O corpo alvo de luz se estendia sinuoso, rico em formas arredondadas. O cabelo em cachos rijos, antes vermelho vivo, agora refletia o brilho do cobre mais escuro, sinalizando mais uma transformação evidente.
O vulto de seu consorte se aproxima, mais do que interrompendo, distorcendo seus suaves pensamentos. Hades, antes um deus de poucas palavras, era agora repetitivo e sempre transtornado:
- Adônis! Um menino! Essa é uma ousadia que não posso relevar, nem deixar que resolvam por mim! Ingênuo, não sabe que cobiçar meu reino é se colocar no meu caminho...
Pela segunda vez em sua curta vida, Perséfone foi abordada por Hades enquanto descansava perto de águas. Da primeira vez, para raptá-la e causar nela surpresa e tensão. E, agora, pela segunda vez o encontro lhe fez revirar o estômago. E os olhos. A história se repete até nascer alguém com vontade e imaginação suficientes para escrever uma alternativa. Quando e como seria a terceira vez?
– Parece inconformado, querido – ela diz, olhar ainda sorrindo, lábios apertados. – Não consigo encontrar em você o equilíbrio que sempre apreciei.
– Responde: posso ficar indiferente?! O atrevimento dos jovens! São ridículos! Um ser angelical com pretensões de reinar nas trevas, nas minhas trevas.
O deus do mundo subterrâneo de fato salivava. Veias, suores e face rubra formavam o desenho de seu desespero.
– Ria dele – sugeriu Perséfone. – Seja o que você sempre foi... Por favor?
Dito isso, baixou a cabeça, e os cabelos grossos e brilhantes cobriram de sombra o olhar, pela primeira vez, sem sinal de esperança.
Como não amar e respeitar o senhor do mundo obscuro dos mortos e perdidos, o senhor de sua nova vida e de seu novo nome? Que sempre fora calmo, mesmo quando austero, e suave, mesmo quando abrigava tempestades no coração. Passivo, jamais cruel. E como amá-lo, quando ele insistia estupidamente, estranhamente, em se envolver com a política dos mundos e das raças, sabendo que sua natureza jamais seria capaz de suportar uma verdadeira guerra.
Seu desejo amoroso e feminino era ser capaz de tranqüilizá-lo, de usar sua beleza e palavras precisas para mudar a figura lamentável e irascível que tinha ataques agora freqüentes diante dela. Poderia dizer, com a voz mais doce:
Sim, está certo! Seja o leão, vigoroso, impetuoso. Não importa a vaidade dos pretensiosos, a inquietação dos revoltosos ou onde estão os verdadeiros conspiradores: Lúcifer jamais será derrotado, muito menos por um menino inexperiente que anda gritando que seu mundo é muito opressor.
Mas ela não era capaz de incoerências. Fechou os olhos e respirou fundo. Pensou em sua mãe com sentimento de apelo pela primeira vez desde que descera ali, aparentemente vencida pelo desgaste em que se tornara sua existência desde o início dos rumores da invasão de seu reino. Desde que se tornara deusa e rainha das trevas, guardiã dos mistérios do mundo infernal.
Deméter ouviu. A terra se abriu depois de muito definhar. E a filha retornou.
Seja a flor, seja a criança, o anjo e a serpente. Não pense no que irá parecer no final.
Pensou Coré, apenas para concluir suas reflexões e ouvir com toda atenção os planos e sonhos do amigo que a visitava infalivelmente todos os dias nas pradarias cheias de narcisos. Ele falava bem, sentia prazer em se exprimir, enfático, mas sem afetação. Apenas com sinceridade e o frescor dos jovens que vivem para multiplicar sua própria felicidade.
A cada dia, as conversas prosaicas se tornavam reveladoras de um objetivo maior. Para o novo amigo, o futuro o convidava para conquistas, uma inquietude o fazia negar tudo o que parecesse falso e obscurecesse sua visão. Para Coré, um mundo mais intenso, com mais cores, formas e palavras se traçava diante dela, dentro dela, e a fazia conhecer tudo melhor.
Os dois se desejavam com uma certeza axiomática. A vontade de um era compreendida pelo outro. A compreensão do outro parecia satisfazer todas as exigências para o exercício da liberdade.
E por meio de sua mobilidade e de seu destino, Coré retornava a Hades sempre que necessário. Para vê-lo balançar a cabeça, socar portas e falar com ela, sem vê-la, de todos aqueles que suspeitava serem capazes de traí-lo, de fugir de seus domínios, roubar almas de seu reino ou tentar enganar a morte. Nada mais importava, nada mais existia além das intrigas e ameaças veladas.
Se antes, às margens de Lethe, o rio do esquecimento, Perséfone era capaz de elaborar pensamentos pacientes e suaves como:
Abra os olhos! Seja digno, honesto e sábio. Não há que se preocupar com nenhum desses crimes, meu amor, seu reino será seu enquanto for forte e digno o suficiente para nele reinar. E não há que preocupar a mim tampouco, pois confio em você e com você desejo crescer.
Mas ela não era capaz de negar a si mesma, de matar a si mesma, de viver sem liberdade. A esperança de vida para Perséfone rolou entre seus dedos alongados em forma de uma semente cristalina de romã. E ela assistiu enquanto afundava para o fim distante e negro do rio, seus cabelos em ondas acobreadas desbotando-se através da água diáfana. Era apenas a imagem de seu pensamento, a ilustração de seu desejo de desaparecer naquele instante. Lembrou-se da voz de anjo do amigo que buscava o que queria e sabia aceitar o que dele não dependia, e seu peito ardeu e seu corpo se curvou para dentro das águas de Lethe, o rio que dava passagem ao Paraíso.
Curvou o dorso apenas o necessário para mergulhar o braço no rio e agarrar a semente de volta, a garantia de ter que retornar a Hades mesmo se viesse a perder completamente a vontade de voltar.
Meu cabelo. Negro no reflexo do Lethe. Vejo ainda um ou outro brilho rubro em flashes ocasionais.
Perséfone não pensava. Não pensava em ser mais coisa alguma. Olhava. Constatava apenas. Sua visão mostrava que agora não contava o tempo em dias, noites ou tardes, mas em pensamentos não revelados.
A cada segredo imensurável que passava, sabia menos sobre o que queria, fantasiava menos. A única coisa que sabia era que Hermes demorava a chegar com as mensagens de Adônis, o Gabriel que desejava deixar o posto de anjo. Não recebia notícias, esqueceu-se da voz. Tudo o que sabia sobre a prometida invasão procedia de rumores entre os poucos mortos cansados de viver em Hades.
Pensamentos infinitamente lentos a afastavam da necessidade de existir. E o exército revolto, mais buliçoso que bélico, chegaria enfim?
No momento em que o exército improvisado de Gabriel chegou às portas do Inferno, Perséfone estava ao lado, porém distante, de Hades, encoberta, escondida como se habituara a viver ali, enfeitada, deturpada. Constatou o que já sabia, que seu próprio exército era muito maior e de força insuperável. De fora da liteira era possível ouvir seus suspiros, um ruído contínuo, rouco, desesperado. A única alternativa à força opressora era a admiração que o povo das trevas cultivava por ela, nascida da afinidade. Num impulso, com a última energia física que lhe restara, apelou, entre lágrimas:
– Tragam a cabeça de Lúcifer, em uma bandeja, para mim.
Pareça a flor inocente. Mas seja a serpente que é você.
Perséfone pensou com o olhar sorridente. Deitada sobre mantas de lã e veludo, espreguiçando-se a irradiar beleza pelas sombras carregadas do Inferno, ela não tinha pressa. Os mundos esperariam quanto fosse preciso. O corpo alvo de luz se estendia sinuoso, rico em formas arredondadas. O cabelo em cachos rijos, antes vermelho vivo, agora refletia o brilho do cobre mais escuro, sinalizando mais uma transformação evidente.
O vulto de seu consorte se aproxima, mais do que interrompendo, distorcendo seus suaves pensamentos. Hades, antes um deus de poucas palavras, era agora repetitivo e sempre transtornado:
- Adônis! Um menino! Essa é uma ousadia que não posso relevar, nem deixar que resolvam por mim! Ingênuo, não sabe que cobiçar meu reino é se colocar no meu caminho...
Pela segunda vez em sua curta vida, Perséfone foi abordada por Hades enquanto descansava perto de águas. Da primeira vez, para raptá-la e causar nela surpresa e tensão. E, agora, pela segunda vez o encontro lhe fez revirar o estômago. E os olhos. A história se repete até nascer alguém com vontade e imaginação suficientes para escrever uma alternativa. Quando e como seria a terceira vez?
– Parece inconformado, querido – ela diz, olhar ainda sorrindo, lábios apertados. – Não consigo encontrar em você o equilíbrio que sempre apreciei.
– Responde: posso ficar indiferente?! O atrevimento dos jovens! São ridículos! Um ser angelical com pretensões de reinar nas trevas, nas minhas trevas.
O deus do mundo subterrâneo de fato salivava. Veias, suores e face rubra formavam o desenho de seu desespero.
– Ria dele – sugeriu Perséfone. – Seja o que você sempre foi... Por favor?
Dito isso, baixou a cabeça, e os cabelos grossos e brilhantes cobriram de sombra o olhar, pela primeira vez, sem sinal de esperança.
Como não amar e respeitar o senhor do mundo obscuro dos mortos e perdidos, o senhor de sua nova vida e de seu novo nome? Que sempre fora calmo, mesmo quando austero, e suave, mesmo quando abrigava tempestades no coração. Passivo, jamais cruel. E como amá-lo, quando ele insistia estupidamente, estranhamente, em se envolver com a política dos mundos e das raças, sabendo que sua natureza jamais seria capaz de suportar uma verdadeira guerra.
Seu desejo amoroso e feminino era ser capaz de tranqüilizá-lo, de usar sua beleza e palavras precisas para mudar a figura lamentável e irascível que tinha ataques agora freqüentes diante dela. Poderia dizer, com a voz mais doce:
Sim, está certo! Seja o leão, vigoroso, impetuoso. Não importa a vaidade dos pretensiosos, a inquietação dos revoltosos ou onde estão os verdadeiros conspiradores: Lúcifer jamais será derrotado, muito menos por um menino inexperiente que anda gritando que seu mundo é muito opressor.
Mas ela não era capaz de incoerências. Fechou os olhos e respirou fundo. Pensou em sua mãe com sentimento de apelo pela primeira vez desde que descera ali, aparentemente vencida pelo desgaste em que se tornara sua existência desde o início dos rumores da invasão de seu reino. Desde que se tornara deusa e rainha das trevas, guardiã dos mistérios do mundo infernal.
Deméter ouviu. A terra se abriu depois de muito definhar. E a filha retornou.
Seja a flor, seja a criança, o anjo e a serpente. Não pense no que irá parecer no final.
Pensou Coré, apenas para concluir suas reflexões e ouvir com toda atenção os planos e sonhos do amigo que a visitava infalivelmente todos os dias nas pradarias cheias de narcisos. Ele falava bem, sentia prazer em se exprimir, enfático, mas sem afetação. Apenas com sinceridade e o frescor dos jovens que vivem para multiplicar sua própria felicidade.
A cada dia, as conversas prosaicas se tornavam reveladoras de um objetivo maior. Para o novo amigo, o futuro o convidava para conquistas, uma inquietude o fazia negar tudo o que parecesse falso e obscurecesse sua visão. Para Coré, um mundo mais intenso, com mais cores, formas e palavras se traçava diante dela, dentro dela, e a fazia conhecer tudo melhor.
Os dois se desejavam com uma certeza axiomática. A vontade de um era compreendida pelo outro. A compreensão do outro parecia satisfazer todas as exigências para o exercício da liberdade.
E por meio de sua mobilidade e de seu destino, Coré retornava a Hades sempre que necessário. Para vê-lo balançar a cabeça, socar portas e falar com ela, sem vê-la, de todos aqueles que suspeitava serem capazes de traí-lo, de fugir de seus domínios, roubar almas de seu reino ou tentar enganar a morte. Nada mais importava, nada mais existia além das intrigas e ameaças veladas.
Se antes, às margens de Lethe, o rio do esquecimento, Perséfone era capaz de elaborar pensamentos pacientes e suaves como:
Abra os olhos! Seja digno, honesto e sábio. Não há que se preocupar com nenhum desses crimes, meu amor, seu reino será seu enquanto for forte e digno o suficiente para nele reinar. E não há que preocupar a mim tampouco, pois confio em você e com você desejo crescer.
Mas ela não era capaz de negar a si mesma, de matar a si mesma, de viver sem liberdade. A esperança de vida para Perséfone rolou entre seus dedos alongados em forma de uma semente cristalina de romã. E ela assistiu enquanto afundava para o fim distante e negro do rio, seus cabelos em ondas acobreadas desbotando-se através da água diáfana. Era apenas a imagem de seu pensamento, a ilustração de seu desejo de desaparecer naquele instante. Lembrou-se da voz de anjo do amigo que buscava o que queria e sabia aceitar o que dele não dependia, e seu peito ardeu e seu corpo se curvou para dentro das águas de Lethe, o rio que dava passagem ao Paraíso.
Curvou o dorso apenas o necessário para mergulhar o braço no rio e agarrar a semente de volta, a garantia de ter que retornar a Hades mesmo se viesse a perder completamente a vontade de voltar.
Meu cabelo. Negro no reflexo do Lethe. Vejo ainda um ou outro brilho rubro em flashes ocasionais.
Perséfone não pensava. Não pensava em ser mais coisa alguma. Olhava. Constatava apenas. Sua visão mostrava que agora não contava o tempo em dias, noites ou tardes, mas em pensamentos não revelados.
A cada segredo imensurável que passava, sabia menos sobre o que queria, fantasiava menos. A única coisa que sabia era que Hermes demorava a chegar com as mensagens de Adônis, o Gabriel que desejava deixar o posto de anjo. Não recebia notícias, esqueceu-se da voz. Tudo o que sabia sobre a prometida invasão procedia de rumores entre os poucos mortos cansados de viver em Hades.
Pensamentos infinitamente lentos a afastavam da necessidade de existir. E o exército revolto, mais buliçoso que bélico, chegaria enfim?
No momento em que o exército improvisado de Gabriel chegou às portas do Inferno, Perséfone estava ao lado, porém distante, de Hades, encoberta, escondida como se habituara a viver ali, enfeitada, deturpada. Constatou o que já sabia, que seu próprio exército era muito maior e de força insuperável. De fora da liteira era possível ouvir seus suspiros, um ruído contínuo, rouco, desesperado. A única alternativa à força opressora era a admiração que o povo das trevas cultivava por ela, nascida da afinidade. Num impulso, com a última energia física que lhe restara, apelou, entre lágrimas:
– Tragam a cabeça de Lúcifer, em uma bandeja, para mim.
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7 comentários:
Incrível. Sensibilidade singular. Trama bem construída e dramática. Parabéns.
Obrigado pelo comentário, seguidor do Leminsky
Obrigada pelo comentário, escritor de um único (e belo) haikai.
A visão feminina ( nos dois sentidos) contrastando com a masculina - Eros e Tanatus, amor e guerra. O subtexto da mulher.
Lindo como sempre, Ludi, com a sua inteligência e sensibilidade especiais. Um belo contraponto para a comédia infernal.
beijos aos dois, parabens pela dupla afinada,
merrel
PS - Eu sou apaixonada pela figura de Demeter, por sua saga de mãe aflita que jamais desistiu de recuperar a filha, pelos seus mistérios de Elêusis. Gostei de vê-la citada, lembro sempre dela quando se fala em Perséfone
Muito obrigado pela parte tanatosiana que me cabe, Merrel.
Também gosto muito do mito de Perséfone e de tudo o que o cerca. É uma das mais belas e trágicas histórias que os gregos nos deixaram e eu acho sempre prazeroso revisitar tais mitos.
Beijão
Merrel, fico muito feliz com seu comentário.
Pois é, a Demeter foi citada aparentemente de passagem, mas com um destaque intencional.
O primeiro apelo a ela, o segundo, ao povo.
Por falar em dupla, obrigada, Romeu por ter encomendado a visão feminina.
Beijos aos dois.
Eu quem agadeço por você ter aceitado a encomenda, Ludi, e é sempre um prazer formar dupla contigo, desde o Ponto de Convergência e agora aqui, neste blog.
Beijão
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