26.8.08

Em camadas

Uma experiência sinestésica por Fábio Fernandes


Começa com o rádio: Ivan está trabalhando no computador quando, subitamente, dois comerciais diferentes invadem a mesma freqüência. O ruído irritante dos dois locutores, anunciando em vozes diametralmente opostas produtos que Ivan não consegue e nem quer saber quais são, o desconcentra. Tenta voltar ao trabalho.
Minutos depois, a mesma zoeira. Estaçãozinha de merda, pensa. Tem que se levantar para rodar o dial à procura de outra melhor. Um jazz suave sai pelas caixas de som. Volta ao trabalho.
Vinte minutos depois, quando uma dupla sertaneja atropela o piano de Michel Petrucianni, é impossível continuar. Desliga o rádio.


Naquela noite, Ivan prefere não fazer nenhum programa fora: pega uma fita de vídeo na locadora, uma cerveja na geladeira e se acomoda na poltrona.
O filme é Os Imorais, e Ivan está justo na parte em que um big boss queima a mão de Anjelica Huston com um charuto, ela solta um berro e Keir Dullea é ejetado contra a comporta externa da Discovery e aí Ivan pensa, que merda...?
Anjelica Huston ainda grita.
Puta que pariu, trabalhei demais, conclui. Na televisão, o filme prossegue normalmente. Meia hora depois, Annette Bening atravessa nua o corredor até o apartamento de John Cusack e diz “Hasta la vista, baby”, e Arnold Schwarzenegger...
Ivan se levanta. Desta vez não é impressão sua: um trecho de O Exterminador do Futuro 2 está passando diante de seus olhos.
Ivan ejeta a fita.


Na tarde seguinte, a locadora está cheia. Todos têm a mesma reclamação: os filmes estão com trechos de outras películas gravados por cima. Uma garota à sua frente na fila dá uns tapinhas irritados em seu walkman.
- Está com defeito? - pergunta Ivan. Ele não entende nada de eletrônica, mas a menina é bonita, não custa arriscar.
- Acho que sim - ela responde. A voz é um pouco grave demais, não parece combinar com o perfil delicado da garota, mas Ivan não tem preconceito.
- Deixa eu ouvir?
Ela dá de ombros e estende os fones de ouvido.
O som é estranho, mas Ivan acaba conseguindo discernir: heavy metal e algo que lembra Mozart. Dá para ouvir mais alguma coisa ao fundo. Parece Bob Marley. Procura o controle do dial. Só então percebe que a garota estava ouvindo uma fita cassete.


Na volta da locadora, ele ouve as pessoas na rua falando do mesmo tipo de problema que ele teve no dia anterior. O casal de portugueses da floricultura, o espanhol do bar, o maranhense guardador de carros. E mais vozes, em outros idiomas que não consegue reconhecer. Perto de seu prédio, ele olha por acaso para uma senhora que conversa em português com um homem
mais novo. De repente, é como se a cena estivesse passando em sua TV e ele apertasse a tecla SAP: as palavras que saem da boca da velha não casam mais, e sequer são do seu idioma. Parecem ditas em japonês ou chinês. E a voz é de homem. Aperta o passo.


Por via das dúvidas, não liga o rádio nem a televisão. Abre a geladeira, apanha uma garrafa de coca-cola - nada de álcool hoje - e se senta na poltrona com um livro: Microfísica do Poder, de Michel Foucault.
No fundo da prática científica - diz o trecho em que ele abre o livro - existe um discurso que diz “nem tudo é verdadeiro; mas em todo lugar e a todo momento existe um meteorito de ferro tungstênio e arsenito encontrei em minha trajetória -”
Ivan fecha o livro.


No dia seguinte, preparando o almoço, Ivan descasca uma cebola na pia da cozinha, e é então que a imagem lhe vem à cabeça: camadas. É como se tudo no universo existisse em camadas, e agora elas estão se interpondo umas no meio das outras, invadindo os espaços alheios, acelerando a entropia, antecipando um novo Big Bang. Será?
Arrisca ligar a TV portátil da cozinha, mas agora as imagens e sons se interpõem a uma velocidade ainda não insuportável, mas perigosamente irritante. Ivan ainda consegue ouvir e ver uma cena inteira de uma novela, ou de um desenho animado, mas mesmo isso fica difícil a cada minuto. Num dos canais, um cientista estava justamente começando a ensaiar uma explicação para o que está acontecendo quando a imagem de um filme japonês e o som de um programa evangélico tomam a tela de assalto, para serem substituídos por uma marchinha de carnaval acompanhando um velho faroeste de Audie Murphy, e depois um clip da MTV com a voz do Jô Soares ao fundo, e assim por diante, ad infinitum, ad nauseam. A essa altura Ivan já acabou de preparar a comida - um bife acebolado com arroz - mas após a terceira garfada com gosto de sabão de coco, põe o prato de lado.


Liga para a mãe, para saber se ela está bem. Espera dois minutos até que atendem do outro lado.
- Alô? - atende uma voz idosa.
- Mãe?
E então um estalo tremendo quase arrebenta seu tímpano. O impacto no ouvido interno é tão violento que seu corpo convulsiona e ele vomita a pouca comida que tinha no estômago. Do fone caído no carpete, ainda ouve uma voz dizendo alguma coisa. Em alemão.


Naquela noite, o sono custa a chegar. Estranhos sonhos invadem os olhos de sua mente: fantasias sexuais com uma instrutora de ginástica olímpica tcheca, lembranças de um passeio ao pé do monte Fuji, um vaso de cerâmica marajoara de um amigo morto recentemente. Sonhos que não são seus. Mesmo assim, Ivan se recusa a ficar acordado; no fundo, sabe que ainda poderá encontrar alguma paz no sono.


Quando nasce o dia, Ivan acorda. Por um instante é como se tudo tivesse sido um sonho. Ele se senta, esfrega os olhos, se espreguiça. Está morrendo de sede. Só então levanta a cabeça.
O quarto não é mais o seu. O que Ivan vê agora é um claustro pequeno, escuro, sem janelas. Mas as nádegas ainda sentem o contato familiar do seu próprio colchão. O coração dispara. Ele fecha os olhos, pensando que na pior das hipóteses poderá encontrar o caminho tateando. Mas ainda pode enxergar. Enxergar outras coisas, coisas inteiramente diferente, até mesmo visões de outros mundo, onde naves metálicas cruzam céus com duas, três luas, mas ele não tem certeza de que essas imagens sejam reais. Não que isso importe a essa altura. Ivan acaba preferindo manter os olhos abertos e deixar os dedos orientarem seu caminho.

Do lado de fora, ele ouve gritos, gemidos, xingamentos. Em francês. Em italiano. Numa língua que ele identifica vagamente como holandês. Ou dinamarquês. Até em português eles gritam.

Devagar, com muito cuidado, ele descobre a saída do quarto, e passa para o que deveria ser o corredor. Não é o que seus olhos lhe dizem: sobre um morro verdejante, o sol da manhã brilha preguiçoso, tentando romper a neblina que começa a se dissipar. Sente cheiro de plástico queimado.
As pontas dos dedos ainda conseguem reconhecer a presença das paredes ao seu redor. Tudo o que Ivan precisa é seguir em frente, e num instante estará na cozinha. Lá, ele encontrará a única coisa de que realmente precisa agora.
Sente gosto de água salgada, e só então Ivan se dá conta de que está chorando, na verdade não pára de chorar desde que pulou da cama. Não consegue se controlar. E nem quer.
Depois de uma eternidade tentando atravessar o imenso espaço, através de uma vastidão ártica, um bar clandestino na Chicago dos anos 20, um arrozal chinês e um vácuo escuro cheio de estrelas - sem contar o que seus outros sentidos estavam registrando - os pés descalços finalmente tocam os azulejos frios do chão da cozinha. Azulejos pegajosos, esponjosos. Não eram os que ele estava acostumado a pisar.
Ivan começa a entrar em pânico. O tato não, ele implora, não agora. Começa a andar mais rápido. Fazendo um movimento de varredura com as mãos à sua frente, ele esbarra na geladeira.
Não está mais com sede, mas é bom assim mesmo, pois agora ele sabe onde está. Numa fração de segundo ele alcança a pia de alumínio, e descobre o que estava procurando. Segura com vontade a faca e, sem pensar, leva a ponta ao coração. No último instante, seus olhos vêem o interior enorme, cintilante, apaziguador, de uma catedral. Não podia ser um fim melhor.

Se desse certo. O impacto de um objeto rombudo em seu peito não provoca qualquer resultado.
Confuso, Ivan tenta sentir o que tem nas mãos. Uma chave. Um charuto. Uma serpente. Com um grito, ele larga a coisa. Ouve um som de trovão. Ivan sente seu mundo desmoronar, e finalmente a pressão dos últimos dias explode em seus pulmões. Ele chora como nunca chorou em sua vida. Mas tudo o que consegue ouvir são gargalhadas.


Para Philip K. Dick e Ivan Carlos Regina


Este texto faz parte da coletânea Interface com o vampiro e outras histórias, que pode ser adquirida gratuitamente aqui.


9 comentários:

Helena disse...

Impressionante, Fabio! Adorei. adorei. Bem o estilo que eu gosto, as interferências kadickeanas e surreais no cotidiano.
Obrigada ao Romeu por postar.

beijos aos dois,

merrel

Giseli Ramos disse...

Ah, é um dos contos da coletânea do Fábio! De fato, um conto bem psicodélico... e não sei porquê, mas depois da onda toda com o LHC, vai que o FF previu o fim do mundo sem querer? rs

Romeu Martins disse...

Obrigado, Merrel por prestigiar.

E a Gi também por comparecer ao nosso modesto espaço de comentários.

Anônimo disse...

Obrigado, Merrel! Fico feliz mesmo que tenha gostado! :-)

Anônimo disse...

Pois é, Gi, e olhe que eu escrevi esse conto já tem pra mais de dez anos.

De repente, como o PKD já escreveu várias vezes, vai que o mundo JÁ ACABOU e a gente está num grande flashback sinestésico, hein, hein?
:-D

Anônimo disse...

Romeu, obrigado mais uma vez por prestigiar meus trabalhos. Servimos melhor para servir sempre!
:-)

Romeu Martins disse...

O prazer é meu em poder publicar contos de que gosto por aqui, Fábio.

Giseli Ramos disse...

Fábio, um flashback infinito seria terrível! Oo
É, vai que nós já viramos sopa de strangelets... hehe Quando é que vamos ler mais coisas de você, hein? hein?
E Romeu, também devo agradecer por disponibilizar periodicamente uma safra de contos, oras! :)

Romeu Martins disse...

Agradecimento recebido e agradecido

Ibope