27.7.08

A Diabólica Comédia

Uma conspirata apocalíptica por Romeu Martins


– Nunca mais um eunuco do senhor!

Aquilo foi dito com tamanha determinação, ainda no interior do palácio real, que não deixou dúvidas quanto à seriedade do momento. O guerreiro deu as costas a seu antigo comandante e mais à frente, quase na saída daquele ambiente opressor, se voltou para tornar a gritar, agora batendo o punho direito contra o peito largo:

– Deste dia em diante exerço a força em meu nome, estás ouvindo? Apenas em meu nome.

Já na rua, não houve necessidade de outras demonstrações tão enérgicas. Aos descontentes que o esperavam, só um sinal de cabeça já bastou; eles o seguiriam para onde quer que ele fosse, sem hesitações. Assim foi feito. Das mãos de um serviçal que o aguardava, subserviente, o guerreiro pegou a espada flamejante, responsável por tanta desgraça e destruição evocadas em nome do mestre que acabara de abandonar.

Novamente armado, ele rumou com passadas largas às estrebarias do reino. A multidão de seus seguidores se limitou a observá-lo de longe. O soldado amotinado escolheu, entre os garanhões ali guardados, o de cor vermelha, o mais vigoroso e indócil de todos. O cavaleiro, dono daquele animal, se aproximou para tentar entender a situação e ouviu a voz que não pode ser desobedecida.

– Vou levar tua montaria como símbolo dos meus intentos. Mas esperai, tu e teus irmãos, pois voltarei aqui em breve para pôr fim a esta ociosidade que atormenta a todos que não suportam mais os desmandos deste déspota. Será o dia em que a guerra saciará a fome e a sede com recompensas por tanto tempo adiadas em nome da covardia.

O cavaleiro não demonstrou nenhuma objeção, pelo contrário; abriu passagem ao revoltoso com um sorriso nos lábios, só escondido pela barba grossa. Depois, tomou o caminho de casa para avisar os três outros gêmeos: os dias de glória, há tanto anunciados, não tardariam a chegar.

Espada nas costas, montaria entre as pernas, o soldado se retirou do reino escoltado por uma legião de guerreiros fiéis. Muitos outros o teriam seguido, mas o temor de desagradar a ira do senhor daqueles domínios não permitiu tamanha ousadia. Porém, mesmo o mais inocente dos querubins sabia que os dias nunca mais seriam os mesmos. A semente da dúvida, naquele momento semeada, logo geraria frutos. As noites das Grandes Fogueiras voltariam a produzir muitas vítimas.

A jornada dos revolucionários que abandonaram as Terras Altas não seria rápida nem seria fácil. Antes de chegar a seu objetivo, eles passaram por cidades intermediárias, na nação em eterno litígio entre as duas potências da época. Mesmo sabendo da importância da disciplina entre as tropas, o general do exército rebelado permitiu o saque àqueles lugares durante a longa travessia. Pilhagem, bebidas e mulheres fariam bem ao moral da soldadesca, há tanto tempo vivendo sob regras que a todos incomodavam e que, ao fim e ao cabo, foram o motivo fundamental para terem escolhido seguir um novo líder. O intervalo seria útil também para que o guerreiro pudesse mandar batedores avançados ao destino final da marcha, com isso adiantaria os planos que tinha em mente e que compartilhara com bem poucos de seus legionários. Usaria o tempo ainda para escrever e reler cartas que falavam de promessas de amor macio como flor cheia de mel, de uvas negras, de festas e flores, de corpos e dores, de incensos e odores.

Nestas horas, ele, o veterano de tantas e tão sanguinoletas batalhas, se pegava suspirando como um reles poeta apaixonado.

Quando finalmente chegaram às portas do Reino Inferior, para a surpresa de muitos dos comandados, já havia um exército para recepcioná-los. As forças locais excediam em muito o contingente dos visitantes, tanto em número de soldados, quanto na força das armas. Um único disparo daqueles arqueiros era o suficiente para matar mil aves no ar. Além disso, os defensores estavam muito mais bem posicionados, num ponto elevado de uma escarpa inexpugnável. Tantas vantagens deram coragem ao soberano para acompanhar pessoalmente esta campanha, ao contrário do esperado de um ser conhecido por operar nos bastidores e por evitar, quando possível, embates físicos. Lá estava ele, à frente de seus muitos generais, olhando com ar zombeteiro os recém-chegados. Certamente, ele iria exigir que todos depusessem armas e lhe jurassem fidelidade e lhe prestassem honras para só então serem admitidos em seus domínios.

Porém, antes de qualquer um dos dois comandantes das frentes antagônicas proferir palavra, uma voz se fez ouvir vinda da liteira de aspecto frágil que seguia os defensores do Reino Inferior. Era a voz da mulher que já era rainha de lá antes mesmo da chegada do atual mandatário, o usurpador que matou seu primeiro marido, tomou a coroa ensanguentada e ela mesma como despojos de batalha.

– Tragam a cabeça de Lúcifer, em uma bandeja, para mim.

Acostumado a trair, o Príncipe das Mentiras não esperava por aquele golpe. Não teve nem tempo de esboçar reação quando as mãos daqueles que, ele esperava, fossem seus mais fiéis servidores o agarraram e o puxaram para uma sessão de torturas cruéis. Garras rasgaram a carne que não é carne e fizeram jorrar o sangue que não é sangue. Muitas vinganças ansiosamente aguardadas foram saciadas naqueles momentos de fúria.

Foi Belzebu o demônio encarregado de cumprir os detalhes da ordem pronunciada a partir daquela liteira. Mas Perséfone não se encontrava mais no objeto luxuosamente decorado. Agora que não precisavam mais se preocupar em não serem vistos juntos, a rainha estava ao lado de seu amante, montada com ele no cavalo encarnado excitado com o cheiro de sangue vindo da cabeça de olhos arregalados e boca entreaberta que jazia entre seus cascos. Não se sabe ao certo quem puxou o coro, mas ele logo foi acompanhado pelas milhares de vozes dos anjos e demônios ali reunidos, a tal ponto de o brado ser ouvido nitidamente por todos os habitantes dos três reinos:

- Ave, Gabriel, novo Imperador do Inferno! Nos guie na vitória final contra Deus e a Humanidade!

13 comentários:

Anônimo disse...

A versão ampliada me lembrou a primeira resenha escrita pra esse conto, que era, se não me engano, hiperbólica, exagerada e linda. E que reconhecia um verdadeiro artista.

Romeu Martins disse...

Nossa! :-)

Anônimo disse...

exagerada, não. enfática, né?

Romeu Martins disse...

Ótima memória: foi enfática, sim, o termo.

Rafael "Lupo" Monteiro disse...

Muito bom, Romeu! Mas deve ter sido difícil pra você ter sido corno... Mas quem um dia não foi? :-)

Romeu Martins disse...

Hehe, Lupo. É por essas e outras que eu uso este avatar.

Camila Fernandes disse...

Romeu,
Confesso que, quando comecei a ler, me senti um tanto perdida, diante de um fragmento de uma história maior que eu ainda não conhecia, e isso foi desconfortável. Aos poucos, tudo se esclareceu. E a sensação foi bem essa, a de uma luz clareando meu raciocínio através das informações que você dispôs nos lugares certos, sem pressa nem situações forçadas. Essa fantasia mitológica, misturando temas cristãos e pré-pagãos, promete. Mandou bem!

Romeu Martins disse...

Oh, Mila!

Seu comentário me deixou muito feliz.

Brigadão!

Cirilo S. Lemos disse...

Seus contos sempre são bons, R. Parabéns.

Romeu Martins disse...

Opa, obrigado pelo retorno, Cirilo. E te garanto que a versão em inglês, que acabei de postar, é melhor, por competência da tradutora.

Nery disse...

Conto sensacional.

No começo fiquei perdido, como se caísse de paraquedas no meio da trama, mas tudo foi explicado à medida em que a ação se desenrolou.

Muito legal mesmo. Parabéns!

Paulo Fodra disse...

Fantástico, Romeu!
Adoro histórias que exploram ângulos incomuns sobre personagens conhecidos!

Bom saber que a noveleta da Deus Ex Machina partiu desse conto! Conseguiu me deixar ainda mais ansioso para lê-la. E ainda mais orgulhoso por participar da mesma coletânea!

Abraço!

Romeu Martins disse...

Opa, Paulo, Neri, meus caros colegas da futura Deus Ex Machina: que ótimo que gostaram do conto! Tenho um certo carinho por este cenário e é muito bom poder revisitá-lo.

Obrigado pelos comentários :-)

Ibope