20.8.08

Correndo nas sombras

Uma saída feminina para uma cybercaçada por Ana Cristina Rodrigues

Ele parecia ser um cara normal. Até bonitinho, com seu jeito tímido de se aproximar. Como eu ia saber que era mais um dos mercenários contratados por meu pai para me capturar de volta? Geralmente os “corredores das sombras” têm feições sombrias e não freqüentam lugares sociais. Um rapaz da minha idade, de cara limpa, bem vestido e simpático era justamente o oposto do que eu esperava.

Maldizendo-me por não ter feito um ciber-implante acelerador, dobrei uma esquina. Escondida atrás de um container de lixo, recuperei o fôlego enquanto pensava. Ele provavelmente não ia desistir fácil, já que papai oferecera uma recompensa de mais de 500000 nuiens para me ter de volta viva. Morta, acho que eu valho um pouco menos. Só por causa das aparências. A filha do presidente da Renraku Corporação perdida no meio das ruas de Seattle, vivendo de trabalhos mercenários? Isso não podia acontecer. E por isso, estou com a metade dos mercenários da Costa Oeste em meu encalço.

Uma sensação de perigo sacudiu o meu corpo. Eram os meus sentidos aguçados cirurgicamente avisando que o estranho estava vindo. E só então me dei conta de que estava em um beco sem saída. Ótimo, e agora? Olhei para cima e vi uma sacada. A parte velha da cidade ainda mantém alguns prédios antigos, o que estava sendo providencial neste instante.

Torcendo para que minhas pernas reforçadas com prótese de silício orgânico dessem conta do recado, pulei. Consegui a custo me pendurar e subir. Logo depois, meu perseguidor surgiu e pareceu surpreso ao não me encontrar. Sorri em silêncio, buscando estar o mais parada possível, para que ele não percebesse. Não sabia quais implantes ele teria, mas não deviam ser poucos. Ele parecia muito diferente dos corredores que eu conhecia, contando os nuiens para cada mísero implante de ligação neural. Provavelmente, era empregado de alguma corporação. Provavelmente da Renraku mesmo. Com certeza, ele tinha visão aprimorada, pois conseguira ver a arma no meu bolso esquerdo... E reflexos acelerados também, pois desviara, com calma, da faca que eu joguei quando ainda estávamos no bar.

Ele sumiu. Não o via mais lá embaixo, será que desistira? Levantei-me devagarinho, porém estaquei surpresa ao ouvir uma voz ao meu lado.

– Procurando alguém, docinho? Eu pude ouvir sua respiração lá de baixo.

Ele estava flutuando ao meu lado. Botas antigravitacionais, um absurdo de caras e só disponíveis em catálogos secretos. E obviamente também comprara sentidos aguçados. Entreguei-me, e descemos juntos.

– Muito bem. Agora vamos, que seu pai está ansioso por vê-la.

O sorriso cínico dele me irritou. Eu parecia derrotada, né? Estava andando na frente, parei. Olhei nos olhos dele, e em um movimento rápido, o beijei profundamente na boca.

Uma das regras para a sobrevivência na rua é jamais misturar negócios com prazer. Não é uma questão de simples ética. Elevação de adrenalina e libido não combinam com certos ciber-implantes ligados. Principalmente, reflexos acelerados e sentidos aguçados. O resultado é uma pane no sistema.

Meu captor caiu no chão, os circuitos em choque. Ele pensou que eu era uma menininha mimada que fugiu de casa por rebeldia. Não sabia que as aparências enganam? Não me preocupei mais. Em pouco tempo, alguém viria socorrê-lo. E voltei para o mundo das sombras, que eu escolhera como lar.

Este texto é uma homenagem – praticamente uma fanfic – ao sistema de jogos ShadowRun, do qual nos apropriamos da ilustração acima.

5 comentários:

Anônimo disse...

Gostei muito.
As implicações mais profundas ficam todas espremidinhas no final, extraídas por sucção precisa e eficaz.

Sempre que leio algo da Ana me surpreendo.

Romeu Martins disse...

Também gosto muito deste conto... É o tipo de sacada que dificilmente ocorreria a um marmanjão.

Helena disse...

Também gostei, senhora de Borgonha, não conhecia esta sua faceta sombria na FC embora a ironia seja bem sua. A frase final ficou perfeita.

Romeu Martins disse...

Obrigadão (de novo) pelo comentário, Mhell.

Espero ter mais contos e quadros seus publicados por aqui.

Anônimo disse...

Ótimo conto Ana!
Parabéns! Me lembrou os tempos de jogo com Shadowrun ... bons tempos ...

Tiago Castro

Ibope