31.8.08

Folha Imperial

O que aconteceria se a conspiração republicana tivesse falhado? Por Ataide Tartari

Devia ser umas onze horas da noite, ou até mais tarde do que isso, quando o figura arrombou a porta da redação e entrou xingando todo mundo. Quer dizer, na verdade ele não arrombou nada. E nem conseguiria; o cara não é mais forte do que um pardalzinho com fome. Quem entrou chutando tudo foi o seu guarda-costas. Agora que ele tinha conseguido o título de barão, Barão do Dona Marta, ele só andava com guarda-costas. Para a nobreza carioca, ter um guarda-costas era tão importante quando o título em si, era uma espécie de complemento indispensável. O que não deixa de ser um bom negócio para os guarda-costas.

Mas esse barão, não se sabe exatamente por quê, estava irado com um dos mais novos talentos jornalísticos a serviço de Sua Majestade Imperial, o repórter Ronaldo Cetro. Cetro tinha escrito, é verdade, um artigo sobre a outorga do título ao Barão do Dona Marta devido aos serviços por ele prestados ao Império por ocasião da visita do pop star plebeu Michael Jackson. O Barão cedeu sua casa no morro Dona Marta, aquela favela, como camarim para o astro plebeu. Em vista disso, o título lhe foi outorgado às pressas para evitar que o astro plebeu fosse hospedado por um favelado igualmente plebeu. Agora ele era favelado, sim, mas não obstante um membro da nobreza imperial brasileira!

Era natural, portanto, que a Folha Imperial, um jornal sempre a serviço de Sua Majestade Imperial, colocasse o novo barão na primeira página, deixando o visitante estrangeiro, um plebeu, na página interna. A manchete, é claro, era tipicamente Folha Imperial, exaltando o talento que preenche todas as suas páginas:


NOBREZA FAVELADA:
NOVO BARÃO QUER O SEU EM CACHAÇA


E, abaixo dessa manchete, cobrindo a outra metade da página, uma foto do novo barão segurando o título de nobreza impresso em letras góticas com uma das mãos e um copo de cachaça com a outra. A legenda da foto dizia: "Posso trocar esse troço por um vale-cachaça?"

Obviamente o barão, na sua nobre ignorância, não sabia apreciar o verdadeiro talento jornalístico. Ao invés de ficar grato por sua recém-adquirida notoriedade, o barão preferiu investir contra Cetro e a Folha Imperial.

A bem da verdade, Cetro não ficou sabendo de todos os detalhes do que aconteceu naquela noite na redação da Folha, mesmo porque nesta mesma hora ele estava passando mais uma noite em frente ao Paço Imperial. Um dos camelôs que ocupam esta praça durante o dia tinha cedido as instalações de sua barraca para Cetro passar a noite na vigília.

Desde que Sua Alteza Imperial Príncipe do Grão-Pará, herdeiro do trono, tinha retornado ao Paço Imperial no Rio de Janeiro após alguns meses de descanso no Palácio Imperial de Petrópolis, vários jornalistas faziam plantão em frente ao Paço, tentando flagrar o príncipe saindo para mais uma de suas grandes noitadas. Já era a quarta noite seguida que Cetro e Dida, o fotógrafo, passavam sentados atrás da droga da barraquinha do camelô.

Quando deu meia noite o fotógrafo já não aguentava mais:

-- Mas que porra, Cetro! O Joãozinho não vai sair mais hoje. Eu acho melhor a gente ir dormir em casa, só pra variar um pouco.

-- Tu tá duvidando? Boêmio que é boêmio não aguenta passar quatro noites seguidas em casa.

Sentado num banquinho e com uma cópia da agenda imperial na frente, Dida apontou pra página que descrevia o dia de Sua Alteza:

-- Olha aqui. O Joãozinho não vai inaugurar nenhuma casa nova do Ricardo Amaral hoje. A agenda dele terminou às oito da noite e ele voltou pro Paço. Eu não acredito muito nessa coisa de fugir escondido. Ele não é invisível e ele sabe disso. Quando ele tem compromisso à noite ele aproveita pra dar uma esticada, mas quando não tem ele não pode fazer nada porque tá todo mundo de olho nele.

-- Cala a boca e olha pr'aquela janela lá -- disse Cetro, apontando pro Paço.

Dida olhou pela teleobjetiva da máquina: -- Num tô vendo ninguém.

-- Mas a cortina abriu...Se liga. Fica com o dedo no botão.

De repente Cetro viu um vulto passando pela janela.

Dida clicou. Ele não usava flash à noite, só filme sensível.

-- Quem era? -- Cetro perguntou.

-- A Terezinha; acho.

Cetro pegou a agenda imperial para ver se a Terezinha,

Sua Majestade Imperial d. Maria Teresa I, Imperatriz do Brasil, estava mesmo no Paço. Ele tinha certeza de que o príncipe herdeiro estava, mas não a atual chefe de Estado.

-- Não, Dida, não pode ser ela. Ela tá junto com o Visconde de Higienópolis e o Duque de Pinel numa festa na embaixada britânica. Ela e o corno consorte.

O assim-chamado corno consorte, primo do rei da Espanha e esposo de d. Maria Teresa, era uma pobre vítima do humor brasileiro desde o casamento. D. Maria Teresa nunca tinha escondido de ninguém sua queda pelos astros estrangeiros que visitavam o Brasil no carnaval e que brilhavam nos cassinos cariocas. Seu novo alvo, diziam, seria Mel Gibson, apesar de ela ser mais velha do que a mãe dele. Ninguém nunca provou nada, mas que o Príncipe do Grão-Pará tinha a cara do Marcelo Mastroiani, tinha.

-- Festa?! Então por que que não mandaram a gente pra lá?

-- Porque não tem nada pra gente lá. Além da Terezinha, do primeiro-ministro e do prefeito do Rio não tem mais nenhum nobre por lá. Eles tão comemorando a chegada do novo embaixador britânico, que nem sangue azul tem.

-- É ruim...Bem que a Lady Di podia ter vindo junto...

Cetro riu: -- Se ela tivesse aqui, o Joãozinho tava colado nela.

Meses antes, a Folha Imperial tinha lançado a nova bomba: o príncipe estava a fim da Lady Di. Eles tinham sido vistos--e fotografados!--juntos numa praia do Caribe. Ambos vestidos, infelizmente. E acompanhados por outras pessoas.

Mas isso não era importante; o importante era que a idéia estava lançada, a semente estava plantada. A partir daquela foto centenas de páginas da Folha puderam ser preenchidas durante meses. Graças à Folha não se falava em outra coisa no Império; as pessoas discutiam por causa dos preparativos imaginários do casamento, dos nomes que teriam seus filhos (se em português ou inglês), das implicações constitucionais para ambas as monarquias (sendo ela princesa de Gales e do Grão-Pará ao mesmo tempo), e até por causa da imaginária fusão do Reino Unido ao Império do Brasil. E tudo isso por causa de uma foto! O poder da Folha Imperial espantava até aos seus próprios autores.

E era de uma nova e poderosa bomba como esta que a Folha estava precisando. Barões favelados não duram mais do que duas manchetes. Era preciso algo realmente grande, e de preferência apresentado e monopolizado por este jovem e leal súdito de Sua Majestade, Ronaldo Cetro.

Dida mirava sua teleobjetiva para o pequeno estacionamento ao lado do Paço quando viu o portão ser aberto. Ele virou pro Cetro e perguntou:

-- Os funcionários do Paço não saem às cinco?

-- Quando não tem nenhuma solenidade à noite, sim.

-- É que tem uma loira saindo num chevetinho podre. Só pode ser funcionária.

-- Então é.

Cetro não estava muito interessado.

O chevetinho podre passou em frente à barraquinha onde eles estavam. O escapamento estava detonado. Cetro então olhou pro chevette e pra loira:

-- Nossa! Que coisa horrível! Parece um travesti!

A loira acelerou fundo e, quando chegou na esquina, reduziu a marcha antes de fazer a curva cantando os pneus.

Cetro deu um pulo: -- Putaquepariu! Corre pro carro!

-- Que foi?

-- Corre pro carro, caralho!

Dida nem tinha fechado a porta do passageiro quando Cetro arrancou pra ir atrás do chevette.

-- Tu tá achando que aquela loira é ele?

-- É só um pressentimento...

-- Mas ele ia se arriscar saindo assim, sem guarda-costas nem nada?

-- Tu ouviu a reduzida que ela deu antes de fazer a curva?

-- Ouvi, e daí? Tu acha que mulher não faz isso?

-- Não, não é isso. Acontece que aquela não foi uma reduzida comum; foi um "taco".

-- Um o quê?

-- Taco. Punta-taco. Isso é coisa de piloto. Antes de fazer uma curva, todo piloto freia e acelera ao mesmo tempo, com o mesmo pé, enquanto reduz a marcha. Se ele não der essa acelerada na redução, o cambio estoura.

-- O meu nunca estourou...

-- Eu tô falando de pista, alta velocidade, rotação máxima, essas coisas; é claro que isso não vai acontecer na rua...

-- Pode parar, Cetro. Eu num tô entendendo nada.

-- Tudo bem. Eu só tô te dizendo que esse "taco" é um vício de piloto. É isso. Tu acha que o Paço tem alguma funcionária pilota?

-- Bom, o Joãozinho é piloto, mas isso não quer dizer nada. Ele é um piloto de merda. Quer dizer, ele nunca chegou aos pés do falecido Conde de Interlagos.

E nem o Ronaldo Cetro. O que não o impedia de tentar.

Neste exato momento Cetro pilotava pelas ruas da capital do Império como se fosse o próprio Conde fugindo de Schumacher no circuito de Ímola. A esperança de Dida era de que não houvesse uma curva Tamburelo no seu caminho.

Para alívio de Dida, a perseguição não durou muito. O chevetinho podre parou em frente à casa noturna do Sargentelli e os manobristas de repente não sabiam o que fazer com aquela poluição visual na porta da casa. Eles deram risada do carro antes que um deles fosse falar com a loira. Enquanto isso, Cetro parou do outro lado da rua.

Dida e sua teleobjetiva voltaram a ver a loira de perto: -- A loira tá saindo do carro...

-- Tu tá vendo ela direito?

-- Tô, mas...ela é um cara! Um cara de boné!

-- Isso eu também tô vendo...Olha! O manobrista se curvou pro cara!

O drive da máquina fotográfica do Dida estava rodando sem parar; ele deve ter tirado mais de vinte fotos de uma vez. Cetro estava louco pela confirmação:

-- E aí? É ele?

-- É, é o Joãozinho.

-- Nossa! Que demais, cara! Que flagra!

A cabeça de Cetro estava a mil. Todas as conclusões naturais daquilo apareciam de uma vez só: Sargentelli... mulatas...sexo!...devassidão imperial na primeira página!

Ele abriu a porta do carro, virou pro Dida e disse:

-- Eu vou até lá. Continua fotografando tudo. Se acontecer alguma coisa comigo, fotografa tudo.

O porteiro da casa perguntou se ele ia entrar e ele disse que não, que estava apenas esperando uma pessoa. Ele sabia que o príncipe não ia demorar muito porque os manobristas tinham deixado o chevetinho bem na porta, com poluição visual e tudo.

Cetro chegou mais perto de um dos manobristas: -- Tu sabe de quem é esse carro? -- ele perguntou, apontando pro Chevette.

-- É de um amigo da casa. O carro principal dele deve tá quebrado.

-- Tu conhece ele?

-- Já falei: ele é amigo da casa.

-- Então ele vem sempre aqui...

-- Não muito...

Cetro tirou um documento do bolso e mostrou pro manobrista: -- Olha, eu sou repórter da Folha Imperial e eu tô sabendo que foi o príncipe que chegou aqui neste carro. Será que tu não poderia me dizer com quem é que ele tá saindo...

Ele olhou pro lado e disse: -- Eu num sei de nada.

Cetro tirou os quarenta réis que ele tinha no bolso e ofereceu pro manobrista. Ele pegou e disse:

-- Ele tá saindo com a Rosinete.

-- Só com essa?

-- É. Só com a Rosinete.

-- Quantos anos ela tem?

-- Dezoito -- ele disse e riu.

Cetro riu também: -- Já entendi...Faz tempo?

-- Uns dois meses, acho.

-- Mas ele tava em Petrópolis!

-- Eu sei. Todas as meninas foram fazer um show lá e ele escolheu a Rosinete.

-- Ela é bonita?

-- A Rosinete é a mais bonita de todas; é uma princesinha.

Neste momento, o motorista do Chevette, ainda usando um boné, saiu correndo em direção ao seu carro com uma mulata ao lado. Cetro levantou a voz:

-- Vossa Alteza!

O príncipe parou e olhou pra ele: -- Pois não?

Cetro ficou surpreso com a sua cordialidade. Ele estava até sorrindo!

-- Perdoe-me por esta intromissão, Alteza, mas eu sou o repórter Ronaldo Cetro da Folha Imperial...

O príncipe estendeu a mão: -- Ah, sim, muito prazer.

-- O prazer é todo meu, Alteza. Eu só estava interessado em saber, em nome da Folha Imperial, quais são os seus planos com relação a esta jovem dama, dona Rosinete.

O príncipe deu uma gargalhada. Obviamente ele não esperava que este jovem e talentoso repórter estivesse tão bem informado. Cetro tinha conseguido impressionar Sua Alteza!

-- Posso lhe pedir um favor, Ronaldo?

-- Sem dúvida. Será uma honra, Alteza.

-- Não se deixe levar por especulações sórdidas. Dona Rosinete é uma moça séria e que merece o maior respeito por parte de todos os súditos do Império. Se tudo suceder como espero, eu farei um anúncio oficial no momento oportuno.

Cetro ainda estava meio atordoado pela cordialidade imperial de d. João quando voltou pro carro.

-- E aí? O que é que ele te disse? -- o Dida perguntou.

-- "Muito prazer".

* * *

A redação da Folha Imperial nunca tinha sido um lugar muito especial para ele. Quer dizer, ela não era aquele tipo de lugar em que, logo quando você entra nele, você sente que é o lugar onde você quer passar o resto da sua vida.

Bom, mas não era isso o que ele estava sentindo hoje; hoje a redação da Folha era o melhor lugar do mundo. Cetro entrou nela com o peito estufado e com um dos exemplares da Folha de hoje nas mãos. A manchete, em letras garrafais, dizia:


PLACAR IMPERIAL:
LADY DI 0 x 1 MULATA DO SARGENTO


E, logo abaixo, a foto tirada por Dida. Cetro pôs o jornal mais perto do seu rosto pra ver os detalhes: a foto mostrava Sua Alteza o cumprimentando, com a Rosinete no primeiro plano, prestes a entrar no carro. Graças à nova tecnologia, o chevetinho podre já era; em seu lugar aparecia um Omega novinho. O mesmo tinha acontecido com o boné que Sua Alteza usava naquela noite; ele tinha sido banido da foto. De resto, era uma foto 100% autêntica. Sua legenda dizia: "Ladeado por sua nova paixão, Sua Alteza Imperial cumprimenta Ronaldo Cetro."

O artigo--na verdade uma narrativa na primeira pessoa por Ronaldo Cetro--descrevia tanto a aventura daquela noite como a nobre e incansável luta de Sua Alteza em busca da futura imperatriz e mãe de seu herdeiro. Em respeito ao pedido de seu novo amigo, o príncipe, Cetro não exagerou no detalhamento das atividades profissionais de uma mulata do Sargentelli. Ao mesmo tempo, ele não afirmou--ao menos não categoricamente--que ela era menor de idade.

Ao chegar à sua mesa de trabalho, Cetro encontrou uma folha impressa em cima do seu teclado. Preso à folha, havia um bilhete que dizia: "busque confirmação sobre isto". A folha era um rascunho para o editorial do dia seguinte, escrito pelo editor, um velho monarquista, fanático e tradicionalista. Neste editorial em particular, ele se protegia muito mal de qualquer futura alegação de preconceito ao chamar Rosinete de "jovem mestiça"...jovem mestiça!

Bom, mas a alegação do velho era outra; era sobre velhas regras e tradições. Como ela certamente era plebéia, não havia possibilidade de casamento e ponto final. O velho, por conveniência, tinha esquecido o fato de que na monarquia brasileira títulos de nobreza eram distribuídos a granel. A confirmação de que o velho precisava era a de que Rosinete não tinha nenhum ancestral nobre. Isso ia ser fácil; alguns telefonemas iam resolver esse assunto.

Mas a redação da Folha estava mais do que agitada nesta manhã. Depois de ter ligado pra casa noturna do Sargentelli, conseguido o telefone da Rosinete, ligado pra ela e ter sido aconselhado por sua mãe a ligar para um certo advogado que esclareceria tudo, Cetro parou tudo para receber a visita do dia, uma senadora do PTR, junto com os seus deodoros.

Era incrível como os deodoros adoravam essas visitas de provocação! E, dentre todos os deodoros, os do Partido dos Trabalhadores Republicanos eram os mais radicais. Eles até achavam que o Deodoro em pessoa, Deodoro da Fonseca, o traidor dos traidores, condenado à morte pela tentativa de golpe contra d. Pedro II e anistiado pelo mesmo -- eles até achavam que essa desprezível figura histórica, origem do apelido dos republicanos brasileiros, devia ser homenageado como herói. Que insolência!

Cetro não fez mais nada além de levantar de sua cadeira enquanto os deodoros passavam; eles não mereciam mais do que isso. Depois que eles entraram na sala do editor, Cetro voltou ao seu telefone e ligou para o tal advogado de Rosinete para saber o quê, afinal de contas, ele tinha a esclarecer.

* * *

A sala do editor estava lotada, mas o Cetro entrou assim mesmo. O que foi um alívio pro velho, que já não estava mais aguentando aquela velha cantilena dos deodoros. No meio de todos aqueles deodoros, ele deu um sorriso de orelha a orelha e levantou a voz pra dizer pro editor:

-- Eu não consegui a confirmação daquilo que o senhor pediu. Pelo contrário, o advogado dela me disse que tem um processo de paternidade correndo na justiça. A mãe dela é solteira.

O velho não entendeu nada: -- E o que é que isso tem a ver com o fato de ela ser plebéia ou não?

-- Segundo o advogado, o exame de DNA vai provar que ela é filha do Marquês de Santos.

O Marquês de Santos e atual ministro extraordinário dos esportes no gabinete do Visconde de Higienópolis tinha namorado várias mulheres, tanto famosas como desconhecidas, de misses a rainhas de baixinhos, e por isso processos de paternidade não eram surpresa em sua vida. O negrão já tinha comido todas!

Antes de sair daquela sala infestada de deodoros, Cetro virou pro velho editor monarquista, ergueu o punho direito, e gritou:

-- A monarquia está salva! Viva o Império!

Ao ouvir isso, o sangue do velho ferveu. Ele se levantou, ergueu o punho, e gritou:

-- Abaixo os deodoros! Viva o Império do Brasil!

Bom, no final das contas esses deodoros acabaram colhendo o que plantaram. Onde já se viu uma coisa dessas, querer transformar o Império, com todo esse agito saudável, esse charme internacional e esse alto astral, numa republiqueta violenta e miserável como tantas outras...

Esses deodoros são ridículos!

Este texto foi publicado, entre outros lugares, na coletânea de história alternativa Phantastica Brasiliana.

A revolução dos bichos

Um novo tour pelas ruas de Big Field por R. R. Londero

2055. Big Field. Cidade-corredor. Aqui tudo passa: gringo, contrabando, pirataria, drogas, remédios ilegais. Se tudo passa, é cidade-de-ninguém. Faroeste dos magnatas da bio-pecuária, boi cultivado geneticamente. Big Field é a cidade-das-saídas: saída para Cuiabá, saída para São Paulo, saída para a puta que te pariu. É desespero dos sem-saídas é Big Field.

Minha história começa perto do Bariloche, residencial periférico com nome de balneário glacial. Mas aqui, bugrinho, faz muito calor, mesmo de noite. Pela enésima vez, Enéias me descolou o material de trabalho, restos de algum holocausto ecológico. Agora espero o bonde, 508 ou 509. De longe avisto a gangue dos guaicurus motorizados realizando manobras ancestrais: encurvados em suas motos, eles rasgam o chão com lanças artesanais. Índios motoqueiros com jeitão de Akira.

Não demora, pego o Rita Vieira. Desço na Rui Barbosa, subo a Afonso Pena, chego na Praça do Rádio. Rasantes corujões me fazem lembrar que, apesar da cicatriz na testa, não sou Harry Potter. Minha mágica não é bruxaria, mas cirurgia plástica ecológica. Sou especialista na última moda big-fieldense. Cansada de vestir pele de onça, cansada de ver pintura de boi, cansada de ler romance de tuiuiú, a elite big-fieldense radicalizou: querem costurar pele de onça em seus corpos, querem chifres de boi em suas cabeças, querem bicos de tuiuiú em suas bocas. Aberrações saídas de uma versão pantanal da Ilha do Dr. Moreau. Então, bugrinho, é fácil ver madames com penas de arara azul em volta dos braços, com pêlos de lobo-guará saltando do busto, com escamas de jacaré cobrindo as mãos.

Chego no consultório. Quarto de pensionato. Abaporu sétima série abençoa o recinto enquanto baratinhas se escondem. O doutor já espera do lado de fora. “Olhos de jacaré, chifres e cascos de boi, está tudo aqui”. O doutor sorri imaginando o novo visual. Faço o serviço sem demora. Quando tudo termina, ele diz: “Sensacional! Sensacional! Você realmente é o Pitanguy do Pantanal”. “Obrigado, doutor! Em que mais posso servir?”. Daí surge a proposta: “Anca de anta para minha esposa”. Caralho, é bicho raro! Mas acerto o trato com o otário.

Preciso ligar para o Enéias. Lembro daquele maldito jingle das Pernambucanas: “Cadê meu celular?”. Acho no meio dos livros (entre Graham Bell: uma biografia e Iniciação à telepatia). Menu, Agenda e 3 duas vezes: Enéias. Túúúúú-iúiúúúúú (norma governamental do novo toque telefônico). Enéias atende: “Fala, brother”. “Anca de anta! Preciso de anca de anta!”. “Puta merda, isso tá foda, brother!”. “E agora?”. “Improvisa com capivara, ninguém sabe a diferença”. “Boa idéia!”. “Beleza, brother. Até mais!”. Desligou, obviamente. Ninguém precisa do Enéias para achar capivara. Existem milhares no antigo campus da UFMS. Depois dos experimentos nucleares do Dr. Alberto Estevão, PhDeus em Física Canônica, a população de capivaras cresceu absurdamente, obrigando os discentes, docentes e doentes do HU (sobreviventes do incêndio na Santa Casas Bahia) abandonarem o campus.

De manhã, aguardo o 061 enquanto vejo imagens ininterruptas no telão da Praça Ari Coelho. Parte 84 da famosa série trash big-fieldense A Matança do Jacinto. Não demora, pego o Branquinhas–Shopping (nome alterado após trágico acidente nas indústrias de cal). De longe avisto o Paliteiro com cabeças empaladas de ousadas pessoas que invadiram o território das capivaras. Frio na espinha dorsal, mas boçal como sou sigo adiante. Desço em frente ao Estádio Morenão, carrego minha flecheira Molly com dardos envenenados. Voz de videogame na cabeça: “Are you ready? Go!”. Mato uma, duas, três, quatro... São 26 capivaras até o final do dia. “New record! Register your name”. Madame vai ter muita anca para escolher.

Agora mereço descanso, comer sobá na feirinha com visual Blade Runner. Enquanto como, vejo aquele garoto numa mesa distante, conversando com amigos. Menino maluquinho imaginando mundos paralelos, universo cyberpunk em Campo Grande. Levanta e se despede dos amigos. Precisa terminar a dissertação de mestrado... Mas antes escreve o epílogo de “A revolução dos bichos”:

2056. Big Field. Cidade deserta. Não restou ninguém após a mega-epidemia de dengue.

O espelho do rei

Uma trama niilista escrita e com projeto visual de Maria Helena Bandeira


O príncipe herdeiro de Aleph, na constelação Azul à leste de Andrômeda, tinha uma peculiaridade – era um obsessivo buscador. Ao contrário dos irmãos que procuravam aproveitar a vida, percorrendo bordeis da galáxia e entornando todas as combinações etílicas, Malthus só se interessava por descobrir o sentido da existência. Para isto vinha gastando o tesouro do reino em viagens às mais distantes partes do Universo.

No terceiro planeta, que orbitava a estrela amarela de uma galáxia distante, ele, finalmente, encontrou uma resposta. Malthus percorreu planícies e montanhas, navegou por mares azuis e suportou temperaturas geladas sobre seu corpo adaptado. Em algum lugar na Terra, diziam os livros antigos de Aleph, se escondia o maior sábio do universo - Ibn Al Said, o simples.

E ele o encontrou.

O deserto parecia escaldante mesmo aos sentidos adaptados do navegador corporal. Uma fina neblina de areia se levantava sob o sol, excessivamente próximo para os padrões alephianos, onde a noite se alongava por ciclos gigantes, o que favorecia a proliferação de adivinhos e magos.

Estava próximo de encontrar aquele que lhe daria a resposta esperada e seu coração batia.

A gruta era apenas um amontoado de pedras e sentado em frente a elas, o velho permanecia absolutamente imóvel.

Ligou o intercomunicador e perguntou com voz trêmula:

- Mestre?

O ancião não moveu um músculo. Repetiu a pergunta:

- Mestre? Ibn Al Said?

Nenhuma manifestação de vida. O príncipe sabia que esta não era a atitude habitual dos habitantes daquele planeta e ficou indeciso. Mas em Aleph paciência é virtude e Malthus era um obsessivo buscador.

Sentou-se ao lado dele e esperou.

Muitas luas cruzaram o céu noturno e o sol se levantou sobre a areia incontáveis vezes antes que o mestre respondesse:

- Sou eu

O príncipe, cuja nutrição, realimentada pelo navegador corporal, começava a ficar em estado de colapso, respondeu animado:

- Mestre, há anos eu o procuro, por milhares de planetas nesta galáxia, para fazer uma simples pergunta, que é a mais importante de todas – qual o significado da vida?

O mestre levou outras muitas luas para responder e quando o príncipe já quase desistia, no limite de seu traje adaptador, abriu a boca desdentada e emitiu apenas uma frase.

Depois, recaiu na posição de estátua, da qual não saiu mais durante todo o tempo em que o príncipe permaneceu lá, tentando entender.

O que significaria aquilo? Sabia que o mestre não iria explicar nada, cabia a ele descobrir.

Voltou para seu planeta e durante o resto da vida, mesmo após assumir o trono, dedicou-se a decifrar aquelas palavras enigmáticas. Consultou astrólogos de Júpiter, magos de Andrômeda, bruxas de Ashtar XIX, as mais poderosas do Universo. Penetrou nos domínios tenebrosos da bruxa de Pher, em fragmentos temporais distantes, onde quase perdeu a razão. Navegou pelo tempo e pelo espaço, procurou lingüistas de idiomas estranhos, até mesmo os tradutores dos guturais sons reptilíneos de Alighator. Nada. Ninguém sabia decifrar o significado da frase, muito menos o sentido da vida.

Quando, depois de quinhentos anos, sua própria existência estava no fim, continuava com a mesma interrogação sem resposta, a mesma angústia infinita.

Resolveu fazer uma última e desesperada tentativa, usando todos os recursos da ciência e da cosmetologia. Reformou seu aparelho biológico e apoiado por um ultra-sofisticado navegador corporal, viajou até o pequeno planeta, Terra, o terceiro a partir da estrela daquela galáxia distante.

Com suas últimas forças, atravessou o deserto e conseguiu chegar à gruta onde encontrou o mestre exatamente na mesma posição.

Sentou-se lado do velho e permaneceu calado algumas luas, as derradeira que lhe restavam na contabilidade do futuro.

Já mal conseguindo articular as palavras, finalmente se atreveu a perguntar:

- Mestre, passei a vida toda procurando, viajei pelos confins do universo, conheci seres de todas as espécies e gêneros, mas nunca, ninguém, conseguiu decifrar a frase que me ensinaria o significado da vida. E repetiu reverente: “ da escada de alcebíades ao aeroplano romântico.”

As palavras ressoaram, através do intercomunicador, no deserto silencioso e estrelado.
- Gastei fortunas, subindo e descendo escadas, das simples às mais estranhas do universo. Através de pesquisa arqueológica aqui na Terra, consegui fórmulas da construção de aeroplanos diversos e neles procurei viver românticas noites e dias.

Tudo em vão. Jamais descobri o significado.

Agora que estou chegando ao fim da jornada, acho que mereço a resposta. Por favor, mestre, me diga o significado de tal frase.

Pela primeira vez, o mestre se moveu em direção a ele, uma silhueta escura contra as estrelas

- Querido rei, você olhou para o lado errado do espelho, ignorando o real pela imagem. Gastou o tempo de sua existência procurando o sentido das palavras e voltou sobre os próprios passos. No entanto, elas significam o mesmo que a vida.

E fechando os olhos do velho rei que agonizava:

- Nada.



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30.8.08

Vingança

Uma amostra do que os Terroristas fazem com quem falha com eles por Romeu Martins

Este conto está disponível como ebook da Editora Estronho




28.8.08

Franco-atirador

Reflexões edipianas de um fuzileiro por Tibor Moricz

Ergueu o visor, coçou o bigode, soltou um bocejo e rearrumou as pernas, descruzando-as e voltando a cruzá-las noutra posição. Olhou para lá embaixo. Ainda não era mais que um pontinho no horizonte. Avançava pouco a pouco.

As botas estavam sujas de terra. Um rasgo longitudinal numa delas deixava à mostra um pedaço da meia. O uniforme em petição de miséria. Maus tratos num planetinha inóspito. Areia e pedras. Fungos. Sol inclemente. Dias quentes e noites frias. Olhou para o céu e perscrutou as nuvens azul-esverdeadas e através delas... Como se pudesse. Soprava uma brisa suave e morna. O vale se descortinava diante dele. Ravinas e nenhuma vegetação. O pó na língua formava torrões que cuspia a pequenos intervalos.

Pensar na mãe foi simultâneo. Pensar nela era obrigatório. Todos os dias e noites, sob o sol, sob a chuva ou sob o fogo inimigo. Era uma figura renitente que, teimosa, não o abandonava. Mesmo que ele a tivesse abandonado há tempos.

Mãe... Senhora imponente em sua suposta majestade. Isso. Toda mãe se sente majestade. Seu reino: O lar. Seus súditos: Os filhos. Era quase impossível não sentir o travo amargo na garganta. Quando fora? Quando? Quando foi que lhe gritou na cara para que o deixasse seguir a própria vida? Quando foi que, em meio a impropérios – que hoje lamenta não terem sido mais virulentos –, enfiou-lhe o dedo na cara e lhe disse, em alto e bom som, que era mais e melhor do que ela jamais poderia supor?

É... Quando?

Havia o quando ela reunia amigos e familiares para lhe fazer uma festa surpresa de aniversário... Mas eram eventos que preferia esquecer. Ocorriam sazonalmente, uma vez ao ano, discretamente camuflados entre um dia e outro.

Balançou a cabeça e esticou o olhar mais uma vez. O pontinho ao longe já se tornara distinguível. Era uma pessoa – claro que sim, sabia desde o princípio –, homem ou mulher; caminhava de maneira cautelosa. Procurava abrigo entre as rochas. Carregava petrechos que o faziam avançar com dificuldade. O que um idiota como esse estaria fazendo ali, sozinho? Não era dos dele. Esse era o posto avançado. Para além, apenas a incógnita. Apenas o inimigo. Posicionou o fuzil fazendo mira. A distância era ainda grande para arriscar.

Lá vinha a mãe de novo. O olhar arguto atravessando-lhe a carne como faca afiada. Passinhos sempre curtos, mas fortes. Cada passada como se quisesse fazer o mundo entender que estava ali, poderosa como nunca.

E estava.

Sempre acima deles. Mesmo sendo de estatura média, mesmo tendo que erguer o olhar para encará-los. Ele e ao irmão, que já não era, mas um dia foi. Não a sete palmos de fundura, que estaria muito bom. Mas espalhado em fragmentos ensangüentados. Um obus dentro da trincheira. Sem tempo para fugir. Nem para pensar. Nem para um “ai”.

Era ela a responsável... A maldita.

Claro que sim. Quem mais poderia? Ela iniciou a guerra, os alistou, os fez atravessar a galáxia, reuniu o inimigo, indicou a trincheira, fabricou o obus, deu as coordenadas, disparou e gargalhou a morte do próprio filho... Maldita.

Descruzou as pernas e bateu com as botas no chão, fazendo levantar uma pequena nuvem de poeira. Colocou-se de joelhos e projetou o corpo para frente, procurando o futuro defunto que caminhava no vale. Lá estava ele. Era homem. Talvez uns vinte anos de idade. Três a menos que ele. Aparelhado. Uma mochila larga às costas. Um fuzil pendurado no ombro, olhar compenetrado no caminho.

O destino o aguardava nas alturas.

Sentou-se sobre os calcanhares, abriu o cantil e bebeu um gole d’água. E a maldita voltou a lhe ocupar as lembranças. Como no dia em que enfiou o cabo do guarda-chuva na garganta do senhor Pickelton. Queria defendê-lo, a idiota. Acabou por colocá-lo em maus lençóis. Ou quando teimou que Susan não era mulher para ele. E não era mesmo, mas ela jamais poderia ter se metido nisso. Ou quando disse a Joe, seu irmão despedaçado, que jamais permitiria que ele se alistasse no exército. Que era o caçula, o desprotegido, o incauto, aquele que deveria ser um modelo dentro de casa. Que não deveria seguir maus exemplos.

Claro que ele disse a ela pra não se meter.

E da vez quando o pai, completamente bêbado, começou a quebrar os móveis da sala. Ela, de certa forma, o ajudou. Pegou um vaso e o colocou pra dormir em meio aos cacos. Fora horrível, de uma agressividade desnecessária.

Ele e Joe assistiram a tudo, encolhidos num canto. Cabelos desgrenhados, marcas pelo corpo, sangue escapando dos lábios. Atônitos após a surra que levaram dele, atônitos pela reação da mãe. Atônitos por terem sido tão veementemente defendidos sem que pudessem demonstrar sua força.

Tudo bem... Eram crianças. Mas crianças com opinião própria. Tinham braços e pernas. Tinham cérebro. Tinham vontade.

“Vão morrer, os dois!... Vão morrer!”, gritou a mãe quando foram chamados ao front. Os perdigotos espirraram-lhes nas faces. O rosto dela, sempre tão forte, tão vigoroso, desmoronava diante deles. Viram o veneno escorrer. Ou teria sido medo?

Nunca tiveram chances de voltar a vê-la. Morreu naquele mesmo verão. Falência múltipla dos órgãos. Metástase. Câncer de pâncreas não detectado até que fosse tarde demais. Morreu antes de Joe. Morreu depois do pai.

Jamais abriu as suas cartas. Para quê? Para ter que enfrentar uma sabedoria sempre indiscutível? Para ter que engolir sem chances de resposta as súplicas, as recomendações?

Respirou fundo e elevou os pensamentos a Joe. Onde quer que estivesse. Talvez no inferno. Claro que a mãe estaria lá, se assim fosse. Enfiando o cabo do guarda-chuva na garganta do diabo e colocando Joe em ainda piores lençóis.

Aprumou o corpo. Recolheu duas lágrimas teimosas e posicionou o fuzil. Mamãe... Ainda tinham assuntos a acertar. Conversas a tecer. Posições a discutir. Projetou o corpo para frente e procurou o alvo, arma engatilhada.

Lá estava ele.

Agachado próximo a uma rocha. Ajoelhado. A arma empunhada, o cano erguido. Quase um reflexo seu. Um espelho bizarro posicionado no vale, refletindo mais que a sua pessoa... Quase a sua alma.

Afrouxou o aperto no gatilho e sorriu com alguma ansiedade. Pensou em Joe e na mãe. Deu uma risadinha nervosa. “Vamos aproveitar a chance, certo? É isso aí. Vamos aproveitar...”

O estampido ecoou pelo vale, desaparecendo ao longe.

Manteve a posição. Arma nas mãos, cano apontado para baixo, dedo trêmulo no gatilho. Nos olhos a opacidade. Antes de cair do penhasco ainda conseguiu concatenar um breve pensamento. Alguma coisa a ver com a mãe.

Algo indistinto, como um vago sorriso de boas vindas.

O homem atômico

Uma lenda urbana paulista por Cristina Lasaitis

Era um velho mendigo que costumava ser visto com muita freqüência pelas esquinas do centro. Não que um mendigo fosse coisa muito notável e digna da atenção de um ocupado cidadão paulistano, mas aquele em particular era de se fazer notar. Era um homem barbudo, sujo, bêbado e fedorento como todo bom mendigo que se preze, vestia um terno que não tirava havia alguns anos e vagava pelo centro da cidade carregando um cobertor imundo e uma maleta executiva velha e furada. Todos os dias ele ia a alguma praça, fosse da República, da Sé ou Ramos, encontrava um banco e sentava-se de pernas cruzadas para ler um jornal velho. Passava horas concentrado, imerso na leitura como um magnata lendo jornal no banco do seu jatinho particular. Geralmente ficava sozinho, pois não são muitas as pessoas que apreciam dividir o banco da praça com um mendigo fedorento, mas quando acontecia de algum distraído sentar-se na outra ponta, fosse um senhor, uma senhora, um padre, um office boy ou outro mendigo, ele sempre dava um jeitinho de puxar um papo. E como era bom de prosa! Quando abria a boca deixava de ser um mero vagabundo para virar o doutor da praça. Era dono de uma oratória virtuosa e um formidável talhe intelectual. Jurava de pé juntos que era físico nuclear e amigo pessoal do presidente Garrastazu Médici. Mas, enfim, de tanto jurar e falar e dizer por tantos anos aqui nessa praça ou acolá naquela esquina, ele era conhecido por todos os comerciantes, camelôs, bêbados, prostitutas e marginais das redondezas como o homem atômico.

Eram impressionantes as teorias que saíam da sua boca desdentada! E se não lhe rendiam o Nobel, ao menos garantiam umas boas risadas aos boêmios da cidade e uma dose de pinga ou um copinho de café frio ao doutor físico. Vez ou outra algum dono de bar o convidava para sentar-se à mesa e dar aos seus clientes uma palestra sobre a teoria das antipartículas, o que o homem atômico fazia com brilhantismo catedrático, para deleite do dono do botequim, que via suas vendas de cachaça e xiboquinha aumentarem exponencialmente em função da clientela de bêbados acumulada em escala logarítmica no espaço e no tempo. E o homem atômico ia falando e ficando, a noite caía, o movimento na São João aumentava; desocupados, pudins de pinga, porteiros de bordel, mulheres da vida e mais todo tipo de diabo da noite aglomeravam-se em torno do velho amigo do general Médici para ouvir seu falatório esquizofrênico. O cafetão tragava seu charuto e baforava com prazer o cogumelo incandescente de Hiroshima, os vândalos se regozijavam com a explosão de vinte megatons da bomba de hidrogênio, as prostitutas suspiravam seduzidas pelo brilho fascinante da radiação de Cerenkov, o traficante se intrigava com o processo de enriquecimento do urânio e o doutor físico ia forrando o estômago de tremoço e salsichas enquanto tecia largos elogios ao programa nuclear secreto do presidente Médici.

Aos poucos a fama do mendigo foi extrapolando esquinas e ele fez turnê nos botecos de praticamente todo o centro velho de São Paulo. A cada noite estava filando a lingüiça de um botequim diferente, ora no Arouche, no Anhangabaú, no Paissandu, na Boa Vista... e onde quer que o doutor físico fosse, sempre havia cachaça, coxinha e público para suas alcoólicas palestras de física nuclear. E foi assim que, com o passar dos anos, o homem atômico tornou-se uma lenda, uma lenda viva, uma lenda urbana com o qual se poderia tropeçar em qualquer esquina. Nos bares ele era assunto recorrente: afinal, gênio ou louco? Alguns apostavam que ele não passava de um vagabundo excêntrico, outros diziam que era um doido super dotado, mas havia um grande número de dedutores e achadores crentes de que o velho mendigo realmente tinha sido físico nuclear durante o governo Médici. Alguns estavam decididos a investigar a questão, e quando encontravam o velho atômico divertindo alguma corja de desocupados, iam até ele interpelá-lo sobre seu passado. O pobre homem relembrava entristecido seu trabalho como cientista no projeto nuclear secreto do governo Médici, até o dia em que Geisel acabara com a empreitada, desaparecera com as provas e por pouco não sumira com os cientistas, condenando-os ao exílio e à lei da mordaça. E desde seu refúgio no Paraguai é que ele amargava aquela situação miserável. Escrevera várias cartas a Médici pedindo para que fosse restituído a um cargo decente na Universidade de São Paulo ou em qualquer outra, mas não houve réplica. Passou a escrever também para Geisel, não em tom de cordialidade, mas de ameaça, dizendo que, se não lhe devolvesse a dignidade que merecia um cientista brasileiro, a notícia viria à tona e poderiam vazar provas e outras coisas mais. Mas ao contrário da democracia, a resposta nunca retornou, e o vácuo em que ficou o pobre físico era como aquele que existia antes do Big Bang.

A história acabou chegando aos ouvidos de um jornalista do Correio de São Paulo, que certo dia começou a percorrer os bares do centro perguntando pelo paradeiro do famoso homem atômico. Foi encontrá-lo numa noite tristonha, abandonado na escadaria do Theatro Municipal; aproveitando-se do silêncio na Rua Barão, fizeram a entrevista ali mesmo. O repórter do Correio ficou um pouco incomodado por ter de apertar a mão suja do mendigo, que empesteou a sua com um odor duvidoso; mas simulou cordialidade, ligou o gravador escondido no bolso e iniciou uma conversa descontraída sobre quarks e neutrinos até que as perguntas pertinentes fossem se insinuando pelas linhas da conversa:

- Então, Médici tinha um programa nuclear secreto?


- E se tinha! O que os ianques iam fazer com toda a tecnologia nuclear senão escondê-la entre seus cães de guarda na América Latina? Onde mais iriam despejar seu lixo atômico? E por que Médici, que gostava tanto de projetos faraônicos, não ia querer um programinha nuclear à disposição da ditadura?

Mas o jornalista ainda parecia descrente:

- Os americanos se sentiriam seguros com uma bomba atômica nas mãos incompetentes do Brasil?

- E onde você acha que estavam os mísseis que Kennedy mantinha apontados para as barbas do Fidel? – O mendigo insinuou com um riso desdentadamente enigmático.

- E as provas?

- Provas? Construíram uma desculpa para escoar todo o refugo do programa nuclear e ninguém percebeu! Hoje a desculpa deve estar esquentando a água dos peixes em algum lugar de Angra dos Reis...

Céus! Se fosse o que estava parecendo, aquele seria o furo jornalístico do século! O repórter estava maravilhado com a sorte, foi se aventurando a minerar minúcias no saquinho de surpresas, e quando enfim se convenceu de que já tinha uma bela reportagem, finalizou a entrevista perguntando ao velho físico se ele não estava desapontado com o seu fim miserável.

- Ah... é a vida. – Ele deixou escapar um muxoxo triste. – Mas eu continuo mandando minhas cartas para Médici e Geisel e eles não me respondem, eles fingem que não me ouvem, me subestimam. Eles vão me forçar a falar alto e quem sabe então irão me ouvir...

O jornalista sentiu-se como se tivessem acabado de cuspir no seu feijão. Aquele desfecho demente estragou todo o brilhantismo da entrevista, e lá se ia o furo de reportagem do século, que não seria nem o furo de reportagem da tarde, pois ainda que ele quisesse maquiar a verdade o editor não aceitaria. Era impublicável. O infeliz não passava de um pobre lunático. Nada restava a fazer senão desligar o gravador, colocar cinco reais na mão do homem e ir-se embora pelo viaduto.

Depois daquela noite, nunca mais voltaram a ver o mendigo pelo centro ou qualquer outro canto da cidade. O que teria acontecido ao homem atômico? Não era difícil prever; devia ter morrido intoxicado com alguma lingüiça de bar estragada, recolhido e encaminhado como indigente ao IML, e assim terminaria sua carreira científica despedaçado em algum laboratório de anatomia. De qualquer forma, o centro ficava mais triste sem ele. Apenas muito tempo depois da entrevista que aquele jornalista voltaria a se recordar do homem atômico. E se lembrou dele numa noite muito especial em que caminhava pela Avenida Paulista, quando ao erguer os olhos, deparou-se com uma névoa brilhante e belíssima dispersando-se com o vento entre as altas torres. Finos floquinhos de neve fosforescente precipitaram-se graciosamente abençoando a cidade palpitante, e a chuva iluminada arrebatou risos e suspiros de fascínio e surpresa. Casais de namorados apreciaram-se com os cabelos recobertos de poeira resplandecente, velhinhos extasiados esticaram as mãos para deixar-se cobrir por uma tênue película de luz, crianças fizeram festa e assopraram pó brilhante umas nas outras, enquanto jovens maravilhados abriam a boca aos céus e deixavam-se experimentar o sabor picante do césio 137.

Este texto foi originalmente publicado na coletânea Visões de São Paulo. Ele também ganhou uma versão em espanhol no site argentino Axxón, de onde extraímos a ilustração acima, de autoria de Guillermo Vidal


26.8.08

Em camadas

Uma experiência sinestésica por Fábio Fernandes


Começa com o rádio: Ivan está trabalhando no computador quando, subitamente, dois comerciais diferentes invadem a mesma freqüência. O ruído irritante dos dois locutores, anunciando em vozes diametralmente opostas produtos que Ivan não consegue e nem quer saber quais são, o desconcentra. Tenta voltar ao trabalho.
Minutos depois, a mesma zoeira. Estaçãozinha de merda, pensa. Tem que se levantar para rodar o dial à procura de outra melhor. Um jazz suave sai pelas caixas de som. Volta ao trabalho.
Vinte minutos depois, quando uma dupla sertaneja atropela o piano de Michel Petrucianni, é impossível continuar. Desliga o rádio.


Naquela noite, Ivan prefere não fazer nenhum programa fora: pega uma fita de vídeo na locadora, uma cerveja na geladeira e se acomoda na poltrona.
O filme é Os Imorais, e Ivan está justo na parte em que um big boss queima a mão de Anjelica Huston com um charuto, ela solta um berro e Keir Dullea é ejetado contra a comporta externa da Discovery e aí Ivan pensa, que merda...?
Anjelica Huston ainda grita.
Puta que pariu, trabalhei demais, conclui. Na televisão, o filme prossegue normalmente. Meia hora depois, Annette Bening atravessa nua o corredor até o apartamento de John Cusack e diz “Hasta la vista, baby”, e Arnold Schwarzenegger...
Ivan se levanta. Desta vez não é impressão sua: um trecho de O Exterminador do Futuro 2 está passando diante de seus olhos.
Ivan ejeta a fita.


Na tarde seguinte, a locadora está cheia. Todos têm a mesma reclamação: os filmes estão com trechos de outras películas gravados por cima. Uma garota à sua frente na fila dá uns tapinhas irritados em seu walkman.
- Está com defeito? - pergunta Ivan. Ele não entende nada de eletrônica, mas a menina é bonita, não custa arriscar.
- Acho que sim - ela responde. A voz é um pouco grave demais, não parece combinar com o perfil delicado da garota, mas Ivan não tem preconceito.
- Deixa eu ouvir?
Ela dá de ombros e estende os fones de ouvido.
O som é estranho, mas Ivan acaba conseguindo discernir: heavy metal e algo que lembra Mozart. Dá para ouvir mais alguma coisa ao fundo. Parece Bob Marley. Procura o controle do dial. Só então percebe que a garota estava ouvindo uma fita cassete.


Na volta da locadora, ele ouve as pessoas na rua falando do mesmo tipo de problema que ele teve no dia anterior. O casal de portugueses da floricultura, o espanhol do bar, o maranhense guardador de carros. E mais vozes, em outros idiomas que não consegue reconhecer. Perto de seu prédio, ele olha por acaso para uma senhora que conversa em português com um homem
mais novo. De repente, é como se a cena estivesse passando em sua TV e ele apertasse a tecla SAP: as palavras que saem da boca da velha não casam mais, e sequer são do seu idioma. Parecem ditas em japonês ou chinês. E a voz é de homem. Aperta o passo.


Por via das dúvidas, não liga o rádio nem a televisão. Abre a geladeira, apanha uma garrafa de coca-cola - nada de álcool hoje - e se senta na poltrona com um livro: Microfísica do Poder, de Michel Foucault.
No fundo da prática científica - diz o trecho em que ele abre o livro - existe um discurso que diz “nem tudo é verdadeiro; mas em todo lugar e a todo momento existe um meteorito de ferro tungstênio e arsenito encontrei em minha trajetória -”
Ivan fecha o livro.


No dia seguinte, preparando o almoço, Ivan descasca uma cebola na pia da cozinha, e é então que a imagem lhe vem à cabeça: camadas. É como se tudo no universo existisse em camadas, e agora elas estão se interpondo umas no meio das outras, invadindo os espaços alheios, acelerando a entropia, antecipando um novo Big Bang. Será?
Arrisca ligar a TV portátil da cozinha, mas agora as imagens e sons se interpõem a uma velocidade ainda não insuportável, mas perigosamente irritante. Ivan ainda consegue ouvir e ver uma cena inteira de uma novela, ou de um desenho animado, mas mesmo isso fica difícil a cada minuto. Num dos canais, um cientista estava justamente começando a ensaiar uma explicação para o que está acontecendo quando a imagem de um filme japonês e o som de um programa evangélico tomam a tela de assalto, para serem substituídos por uma marchinha de carnaval acompanhando um velho faroeste de Audie Murphy, e depois um clip da MTV com a voz do Jô Soares ao fundo, e assim por diante, ad infinitum, ad nauseam. A essa altura Ivan já acabou de preparar a comida - um bife acebolado com arroz - mas após a terceira garfada com gosto de sabão de coco, põe o prato de lado.


Liga para a mãe, para saber se ela está bem. Espera dois minutos até que atendem do outro lado.
- Alô? - atende uma voz idosa.
- Mãe?
E então um estalo tremendo quase arrebenta seu tímpano. O impacto no ouvido interno é tão violento que seu corpo convulsiona e ele vomita a pouca comida que tinha no estômago. Do fone caído no carpete, ainda ouve uma voz dizendo alguma coisa. Em alemão.


Naquela noite, o sono custa a chegar. Estranhos sonhos invadem os olhos de sua mente: fantasias sexuais com uma instrutora de ginástica olímpica tcheca, lembranças de um passeio ao pé do monte Fuji, um vaso de cerâmica marajoara de um amigo morto recentemente. Sonhos que não são seus. Mesmo assim, Ivan se recusa a ficar acordado; no fundo, sabe que ainda poderá encontrar alguma paz no sono.


Quando nasce o dia, Ivan acorda. Por um instante é como se tudo tivesse sido um sonho. Ele se senta, esfrega os olhos, se espreguiça. Está morrendo de sede. Só então levanta a cabeça.
O quarto não é mais o seu. O que Ivan vê agora é um claustro pequeno, escuro, sem janelas. Mas as nádegas ainda sentem o contato familiar do seu próprio colchão. O coração dispara. Ele fecha os olhos, pensando que na pior das hipóteses poderá encontrar o caminho tateando. Mas ainda pode enxergar. Enxergar outras coisas, coisas inteiramente diferente, até mesmo visões de outros mundo, onde naves metálicas cruzam céus com duas, três luas, mas ele não tem certeza de que essas imagens sejam reais. Não que isso importe a essa altura. Ivan acaba preferindo manter os olhos abertos e deixar os dedos orientarem seu caminho.

Do lado de fora, ele ouve gritos, gemidos, xingamentos. Em francês. Em italiano. Numa língua que ele identifica vagamente como holandês. Ou dinamarquês. Até em português eles gritam.

Devagar, com muito cuidado, ele descobre a saída do quarto, e passa para o que deveria ser o corredor. Não é o que seus olhos lhe dizem: sobre um morro verdejante, o sol da manhã brilha preguiçoso, tentando romper a neblina que começa a se dissipar. Sente cheiro de plástico queimado.
As pontas dos dedos ainda conseguem reconhecer a presença das paredes ao seu redor. Tudo o que Ivan precisa é seguir em frente, e num instante estará na cozinha. Lá, ele encontrará a única coisa de que realmente precisa agora.
Sente gosto de água salgada, e só então Ivan se dá conta de que está chorando, na verdade não pára de chorar desde que pulou da cama. Não consegue se controlar. E nem quer.
Depois de uma eternidade tentando atravessar o imenso espaço, através de uma vastidão ártica, um bar clandestino na Chicago dos anos 20, um arrozal chinês e um vácuo escuro cheio de estrelas - sem contar o que seus outros sentidos estavam registrando - os pés descalços finalmente tocam os azulejos frios do chão da cozinha. Azulejos pegajosos, esponjosos. Não eram os que ele estava acostumado a pisar.
Ivan começa a entrar em pânico. O tato não, ele implora, não agora. Começa a andar mais rápido. Fazendo um movimento de varredura com as mãos à sua frente, ele esbarra na geladeira.
Não está mais com sede, mas é bom assim mesmo, pois agora ele sabe onde está. Numa fração de segundo ele alcança a pia de alumínio, e descobre o que estava procurando. Segura com vontade a faca e, sem pensar, leva a ponta ao coração. No último instante, seus olhos vêem o interior enorme, cintilante, apaziguador, de uma catedral. Não podia ser um fim melhor.

Se desse certo. O impacto de um objeto rombudo em seu peito não provoca qualquer resultado.
Confuso, Ivan tenta sentir o que tem nas mãos. Uma chave. Um charuto. Uma serpente. Com um grito, ele larga a coisa. Ouve um som de trovão. Ivan sente seu mundo desmoronar, e finalmente a pressão dos últimos dias explode em seus pulmões. Ele chora como nunca chorou em sua vida. Mas tudo o que consegue ouvir são gargalhadas.


Para Philip K. Dick e Ivan Carlos Regina


Este texto faz parte da coletânea Interface com o vampiro e outras histórias, que pode ser adquirida gratuitamente aqui.


24.8.08

O Santo da Maldade em prol do Dragão Guerreiro

Uma biografia não-autorizada do cinema nacional
por Alexandre Lancaster

"Quem gosta de miséria é intelectual."(Joãosinho Trinta)


Corria o ano de 1962 e um certo jornalista a quem, para fins práticos, chamaremos de "Andrade", havia saído da sessão de imprensa do filme Pluft, o Fantasminha, baseado na obra de Maria Clara Machado. E ele não só sentiu um imenso ódio pessoal por tudo aquilo que viu, como destruiria a película se pudesse. Na verdade, a carreira do filme estava realmente prestes a ser destruída pela crítica e boicotada por onde quer que passasse. Tudo porque o diretor Romain Lesage cometeu o crime de apresentar um produto bem acabado: Pluft não foi o primeiro filme brasileiro a cores, mas foi o primeiro a executar o processo técnico da filmagem colorida no próprio Brasil. Tinha uma história divertida, eficiente – e que tinha piratas, sempre icônicos no imaginário de qualquer criança normal. Um pouco mais tarde, receberia o prêmio de melhor filme no Festival de Cinema Infantil de Santa Barbara, na California. E isso era de se esperar, porque Lesage era alguém que antes de mais nada, sabia filmar. Tinha conhecimento técnico. Na França, foi aluno de René Clement e de Alain Resnais. Fez parte da primeira turma a se formar no Institute des Hautes Études Cinématographiques. Um currículo respeitável. Seu Pluft apresentava um novo paradigma de qualidade para o Cinema Brasileiro.

Fantasia, diversão e até mesmo os piratas eram algo que alguns chacais da crítica cinematográfica brasileira não perdoavam, e talvez o pior desses chacais fosse o próprio Andrade.

Jornalista proeminente no cenário da imprensa cultural (e esquerdista de mesa de bar), Andrade era uma pessoa barulhenta de opiniões agressivas – na verdade essa postura escondia o velho clichê do cineasta frustrado que virou crítico. Queria a tela grande, mas tinha feito apenas dois curta-metragens na vida – os dois muito ruins, claro, mas para quem não tem autocrítica a incompetência é sinônimo de genialidade incompreendida. Não escrevia de forma articulada; estava gradualmente aprendendo o modo de fazer sua inapetência na escrita passar por estilização gramática. Poucos contestavam seu brilhantismo, mas a verdade é que ele era um insuspeito mestre em uma forma de blefe cultural que só cresceria ao longo dos anos: faça o que é erro parecer deliberado e com isso você marca terreno e presença – eis o tal "brilhantismo", na verdade. Andrade não passava de um grande enrolador.

Assim, não havia muita dúvida quanto ao que ele iria fazer: tomar umas, voltar pra casa e, assim que acordasse, redigir sua crítica contra aquele filme subserviente à estética norte-americana (porque para Andrade, qualquer filme com um mínimo de qualidade técnica arreganhava esteticamente as pernas para a terra do Tio Sam). E claro, na mesa de bar, ele enchia a cara e vociferava radiofonicamente contra a estupidez das massas, defendendo uma arte engajada com um vocabulário incompreensível. Acabou bebendo mais do que devia e teve que ser carregado para casa.

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No dia seguinte, ele acordou com dor de cabeça e com um cheiro de café fresco. Pensou na sua namorada, mas levando em conta como foi a sua volta pra casa, esperava que fosse ao menos tivesse passado a noite ao lado de uma mulher razoavelmente comível. E rezar para que sua namorada não soubesse. Foi com uma imensa surpresa, entretanto, que ele percebeu: quem o levou pra casa não foi nem uma mulher, nem um amigo qualquer que já teria ido embora àquela altura do campeonato, mas sim um homem de calças e blusão brancos. Por motivos um tanto óbvios, temeu o pior. O sujeito cheirou o café. "Você podia comprar uma marca melhor. Esse café é uma bosta."

– Quem é você?

– É assim que você me agradece? Levei você pra cá depois da bebedeira. Como eu perdi meu último ônibus com essa mãozinha que te dei, tive que me recostar no sofá para dormir um pouco que fosse. Desculpe a liberdade, mas eu não tive opção.

– Hm. – Grunhiu. Era melhor assim. Menos chance para que dores de cabeça vindouras aparecessem para perturbar sua vida. "Tudo bem. Desculpa o incômodo."

– Não me incomodou. Lembra de nossa conversa ontem?

– Eu estava bêbado demais para saber com quem ou o sobre o que estava falando ontem.

– Você falava de cinema.

– Eu devia imaginar...

– Eu conheço você do jornal. Você fala sempre sobre a idéia de um cinema que rompa com as regras. Que deveríamos assumir nossa natureza de terceiro mundo e pensar em uma estética que reflita nossas misérias.

– Olha, você lê minhas matérias. Tudo bem. Mas eu ali sou um personagem, não um ser humano de verdade. Eu não seria ouvido de outra forma.

– Invista mais no personagem, então. Olha, acredito no seu potencial. Vi os seus dois curtas.

– Ninguém viu os meus dois curtas.

– Eu já disse que eu vi. É a obra de um gênio. E acredite, eu poderia fazer você ser reconhecido por todo o país, sabia?

Andrade estava cético. Um sinalzinho acendeu em sua cabeça, cheirando a vigarice. O homem de branco continuava falando: "Eu tenho contatos. Você já é jornalista, e bem conhecido no meio cultural do país por conta de suas polêmicas. Você sabe do que fala e tem plena ciência do que deve fazer, mas precisa do mínimo de recursos para produzir, por mais que você diga que recursos são desnecessários; o que importa é a câmera e as idéias por trás delas, sem máscaras, sem disfarces, sem essa história de que "cinema é magia". Magia é para americanos gordos que vestem poliéster. Felicidade é uma ilusão burguesa. Você sabe disso e precisa mostrar o que sabe ao mundo – falo de sua estética de brasilidade e terceiro-mundismo sendo espalhada pelo país. Suas obras se tornarão referência, eu te garanto.

Andrade começou a rir.

– Você quer que eu prove?

– E porque eu acreditaria?

O homem de branco se levantou e foi buscar uma pequena maleta. Levou-a para a mesa da sala.

Dólares.

– Isso é para a pré-produção. Mas pelo que você prega nas suas matérias, acho que não precisará de uma produção muito grande, não?

Os olhos de Andrade se iluminaram. "Você está me saindo um belo Mefistófeles, não?"

– Não existiriam Mefistófeles no mundo se ninguém quisesse ser Fausto.

Ele silenciou mais uma vez, pensando. O homem de roupas brancas prosseguia:

– Eu garanto: os seus quatro primeiros longa-metragens vão ter apoio da grande imprensa, respeito de crítica. Vão ser exibidos nos maiores festivais do mundo. Não recuse isso, homem! Você não aceitou dez mil dólares de um banqueiro para fazer o seu primeiro curta?

Era verdade. Andrade tinha o seu lado pragmático. Ele via essa como uma ótima forma de difundir e impôr a sua visão estética como um paradigma a ser seguido por todos aqueles que o seguirem. E aqueles que não quisessem segui-lo... bom, o próprio meio os isolaria por si só. Ele não precisava se preocupar. Respirou fundo, e com sua voz potente e radiofônica, não titubeou em estender a mão e dizer:

– Fechado!

E assim, naquele mesmo ano, Andrade faria o seu primeiro longa-metragem. Mas seria o seu filme seguinte que o colocaria na rota do cinema mundial.

O que ele não sabia é que o seu destino havia sido decidido poucos dias antes, em um lugar bem diferente.

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O diretor da Motion Picture Association (MPA) no Brasil, Harry Stone, aproveitava a privacidade do próprio lar para esconder do mundo um fato: de que ele estava em crise pessoal. Stone imigrou a trabalho nos anos cinquenta e sua função não era segredo para ninguém: defender, como lobista, os interesses da indústria cinematográfica norte-americana neste país.

Não era uma tarefa fácil.

Quando ele chegou, filmes brasileiros – tanto as comédias da Atlântida quanto os dramas da Vera Cruz – enchiam os cinemas ao longo de todo o país. Um grande sucesso em todo mundo como The big country, de William Wyler, teve que ser batizado no Brasil como Da terra nascem os homens, para pegar carona no grande sucesso do bangue-bangue rural Da terra nasce o ódio, de Antoninho Hossri. Foi enviado a este país com um grande abacaxi para descascar e quando viu O Cangaceiro, de Lima Barreto, percebeu que estava com problemas.

O fato dele conseguir rapidamente se relacionar com as esferas do poder não mudou o fato de que quando ele se deu conta, estava demorando demais a dar resultados: o país estava se tornando o seu lar e nesse meio tempo, Stone já havia se casado com uma Brasileira. Por outro lado, o padrinho de seu casamento foi o próprio presidente do Brasil na ocasião, Juscelino Kubitschek.

Se ele não revertesse o quadro e tornasse Hollywood preferência popular no Brasil, estaria completamente desacreditado entre seus superiores. E Pluft, o Fantasminha, era talvez a pior assombração que poderia se materializar em seus pesadelos. Eles não precisavam mais dos laboratórios no exterior. Podiam arcar com produções mais caras. Chegaria o dia em que eles se tornariam uma concorrência tão forte quanto os italianos, que sabiam fazer filmes de grande penetração popular. Os primeiros faroestes do país da grande bota já estavam em gestação.

Assim, foi uma surpresa quando ele se deparou com um álbum de recortes na mesa. Todos de jornais brasileiros, com resenhas de cinema. Stone começou a ler. Essencialmente, coisa sem pé nem cabeça de estudante esquerdista de faculdade.

– Eu acho que tenho a solução para seu problema.

De repente, o lobista percebeu em seu gabinete a figura de um homem de idade indefinida. Podia ter tanto vinte quanto quarenta – vai saber. Stone se assustou. "Como você entrou aqui? Eu vou chamar a polícia..."

– Calma. Você quer fazer os filmes americanos se tornarem preferência nacional. Eu posso fazer isso. E acho que podemos fazer um bom negócio.

Algo em sua voz o fez parar para ouvir, mesmo sob a carga de insegurança representada pela virtual invasão de sua casa. Respirou fundo. "Quem é você, rapaz?"

– Pode me chamar de um sujeito com uma imensa cara de pau. Mas eu diria que sou uma espécie de... terrorista da conspiração, por assim dizer.

Isso foi poucos dias antes do encontro entre Andrade e o homem de branco, naquele ano de 1962.

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Cinco anos depois, já em 1967, Stone e o homem de branco eram amigos de longa data e cultivavam uma grande proximidade – e sempre havia lugar na agenda do lobista para uma visita do homem que resolveu seus problemas. Como de costume, o homem de branco trazia um jornal debaixo do braço e começava com a seguinte frase: "Você viu a última do Andrade?"

Stone sorriu, pegando o jornal. Seu último filme, político e subversivo até a medula, foi liberado pela censura apenas com a modificação de um nome de personagem, por ordens de Brasília – como se não houvesse nele coisa muito pior do que isso.

– Ele nem imagina, não é?

– Não, Harry. Inclusive, ele anda chamando você de agente da CIA.

Os dois riram muito. Na verdade se havia um agente, era o próprio Andrade, e ele nem desconfiava disso.

A grande idéia era simples: em nenhum lugar do mundo onde há uma indústria legítima de cinema, o material autoral é dominante no mercado. Claro, cinema de autor existe em qualquer canto, mas mesmo na França, terra da Nouvelle Vague, um filme com a presença de Louis de Funès atraía (com razão) mais bilheteria do que qualquer Godard da vida. O Leopardo de Luchino Visconti enfrentava dificuldades para se pagar, enquanto os faroestes divertidos, crus e secos de um tal Leone que estava se tornando muito popular faziam um sucesso explosivo pelo mundo.

Mas em países onde o cinema oficial era o cinema de autor... bem, eles eram os maiores mercados para o cinema americano. Mesmo que em termos de imprensa parecesse não haver um cinema popular. É que em geral, naqueles anos polarizados da guerra fria, o cinema autoral era assumidamente de esquerda. Stalinianamente, eles faziam questão não só de combater qualquer manifestação de cinema comercial em seus respectivos países, como de enterrar a memória desse mesmo cinema popular para que em retrospectiva, o cinema oficial sempre tivesse sido um cinema autoral 'de luta' contra o imperialismo cultural. Ninguém mais se lembraria de que um dia houve um filme como Da terra nasce o ódio – e mesmo um filme difícil de ser enterrado como O Cangaceiro seria tachado de reacionário. Com o tempo, o cinema de países cujos cineastas não sabem falar com o povo acabam precisando de ajuda estatal para empurrar goela abaixo seus projetos. O que na pior das hipóteses sempre pode render um ótimo cala-boca em momentos de crise.

Os militares, bem orientados por Stone nesse quesito, entenderam bem o recado. Por isso, o Cinema Novo surpreendentemente cresceu e se multiplicou com apoio da crítica jornalística, parindo subdivisões mais inacessíveis ainda como o Cinema Marginal, contrariando o que se espera da produção nacional durante ditaduras – quando Mussolini assumiu o poder, por exemplo, houve um impulso vindo de cima para a produção e popularização dos "espada-e-sandálias", glorificando o passado romano em filmes de aventura que, independentemente de qualquer estímulo político, se mostraram muito bem-quistos pelo público. No Brasil, no entanto, o que se multiplicou foi um cinema de contestação ancorado por um rabugento discurso de esquerda.

O motivo para eles permanecerem circulando durante os anos de chumbo era simples: Esses filmes eram o melhor chamariz que o cinema americano poderia ter. Quando há demanda não atendida, a concorrência entra no mercado em cima da incompetência de quem até então era o líder de mercado.

Quando um filme do Cinema Novo invadia os cinemas, as pessoas passavam a procurar nos filmes vindos dos Estados Unidos aquilo que o cinema Brasileiro não lhes dava mais – Alguma coisa que realmente significasse algo para eles a nível emocional. O filme romântico que assistimos ao lado da menina com quem saímos antes de aplicarmos nela o primeiro beijo. O filme de aventura com o qual nos revitalizamos em grandes cenas de ação. O melodrama que não promete nada a não ser derramar algumas lágrimas. A comédia honesta que não quer mais do que fazer rir. O Brasil simplesmente deixou de fazer isso, como fazia nos tempos da Atlântida e da Vera Cruz. E se alguma alma corajosa tentasse desafiar a corrente, uma patrulha ideológica que se multiplicava como baratas incestuosas se colocaria em sua frente. A esquerda cultural e a direita política, assim, andavam de mãos dadas.

Andrade, que afundava-se no personagem que criou para si mesmo e começava a se ver consumido pela paranóia, enxergando teorias da conspiração por todos os cantos, não podia imaginar que ele era peça-chave de uma conspiração verdadeira, e que o dinheiro para a fomentação da popularização de seu nome no exterior vinha justamente daqueles a quem ele tanto odiava. Porque para os estrangeiros, era uma experiência antropológica ver aqueles "índios" brincando com a câmera e fazendo obras imensamente toscas sob o discurso do experimentalismo. Os brasileiros viam aquilo como reconhecimento internacional e se sentindo avalizados, faziam todo tipo de bizarrice. Mataram o cinema e foram-se as famílias. Stone não poderia ter pensado em algo melhor.

E na verdade não pensou.

Mas agora, era a hora de manter o que havia sido conquistado. E de pensar a longo prazo. "Agora estou percebendo que o pouco que sobrou do cinema local está dando sinais de que vai apelar para algo que não podemos oferecer..."

– O quê?

– Comédias maliciosas. Isso é... hm, brasileiro demais, entende?

– Sinceramente, esses filmes serão toscos e não acho que vão encontrar sua forma definitiva em menos de três, quatro anos. O Cinema Novo atrasou a indústria, você sabe. Você precisa dar um salto tecnológico e de produção pra fazer um Pluft, mas não para fazer qualquer porcaria com uma câmera na mão e uma idéia na cabeça. Miramos em passarinho e de quebra matamos uma mariposa junto.

– E o que você sugere?

– Olha que aí a gente entra no terreno da consultoria e eu cobro...

– Você sabe que meus patrões pagam – disse Stone, com um sorriso.

– Okay. Eu imagino que vá levar um tempo para vocês desenvolverem melhor a reação, mas o fato é que o cinema popular está desesperado. Nossos jornalistas sérios boicotam seus filmes e estamos chegando a um ponto onde o grande público nem vai conseguir saber que eles existem. Só resta apelar para o que os americanos não podem dar. E se as mulheres já estão começando a tirar a roupa lá fora, imagina o que não vamos querer mostrar. O pessoal vai ver comédias, mas seu motivo vai ser ver uma mulher pelada aqui e ali.

– E qual o seu prognóstico?

– Que tal seu país produzir industrialmente pornografia de verdade?

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No começo da década seguinte, Andrade seguiria para o auto-exílio, buscando financiamento em outros países, tentando faturar em cima da fama e divulgação feitas em seu nome. Os quatro filmes do acordo haviam sido produzidos. A farra havia acabado. Não haviam mais recursos.

Também não havia mais uma indústria em que ele pudesse se apoiar – supondo, claro, que houvesse realmente público para seus filmes. Ela foi dilapidada, como consequência natural do esvaziamento da indústria cinematográfica no Brasil, boicotada por todos os veículos possíveis de divulgação.

Os cineastas agora precisavam de ajuda estatal para poder filmar. O Decreto-lei Nº 862, De 12 de Setembro de 1969 veio para isso, e agora o divórcio entre o público e o cinema nacional estava quase completo.

Andrade não sabia, mas ele e seu cinema não eram mais necessários para aqueles que mais se beneficiaram dele. Ele e sua obra haviam cumprido a sua verdadeira missão neste país. Agora, tudo o que restaria para ele no exterior era sua verdadeira vocação: macumba antropológica para turista intelectual.

E vestir-se de índio para a diversão dos turistas, seja em nível simbólico, seja a nível concreto, sempre foi algo tão antigo quanto a própria idade da Terra.

21.8.08

Diabólica Perséfone

Uma nova visão do conto "A Diabólica Comédia" por Ludimila Hashimoto


Pareça a flor inocente. Mas seja a serpente que é você.
Perséfone pensou com o olhar sorridente. Deitada sobre mantas de lã e veludo, espreguiçando-se a irradiar beleza pelas sombras carregadas do Inferno, ela não tinha pressa. Os mundos esperariam quanto fosse preciso. O corpo alvo de luz se estendia sinuoso, rico em formas arredondadas. O cabelo em cachos rijos, antes vermelho vivo, agora refletia o brilho do cobre mais escuro, sinalizando mais uma transformação evidente.
O vulto de seu consorte se aproxima, mais do que interrompendo, distorcendo seus suaves pensamentos. Hades, antes um deus de poucas palavras, era agora repetitivo e sempre transtornado:
- Adônis! Um menino! Essa é uma ousadia que não posso relevar, nem deixar que resolvam por mim! Ingênuo, não sabe que cobiçar meu reino é se colocar no meu caminho...
Pela segunda vez em sua curta vida, Perséfone foi abordada por Hades enquanto descansava perto de águas. Da primeira vez, para raptá-la e causar nela surpresa e tensão. E, agora, pela segunda vez o encontro lhe fez revirar o estômago. E os olhos. A história se repete até nascer alguém com vontade e imaginação suficientes para escrever uma alternativa. Quando e como seria a terceira vez?
– Parece inconformado, querido – ela diz, olhar ainda sorrindo, lábios apertados. – Não consigo encontrar em você o equilíbrio que sempre apreciei.
– Responde: posso ficar indiferente?! O atrevimento dos jovens! São ridículos! Um ser angelical com pretensões de reinar nas trevas, nas minhas trevas.
O deus do mundo subterrâneo de fato salivava. Veias, suores e face rubra formavam o desenho de seu desespero.
– Ria dele – sugeriu Perséfone. – Seja o que você sempre foi... Por favor?
Dito isso, baixou a cabeça, e os cabelos grossos e brilhantes cobriram de sombra o olhar, pela primeira vez, sem sinal de esperança.
Como não amar e respeitar o senhor do mundo obscuro dos mortos e perdidos, o senhor de sua nova vida e de seu novo nome? Que sempre fora calmo, mesmo quando austero, e suave, mesmo quando abrigava tempestades no coração. Passivo, jamais cruel. E como amá-lo, quando ele insistia estupidamente, estranhamente, em se envolver com a política dos mundos e das raças, sabendo que sua natureza jamais seria capaz de suportar uma verdadeira guerra.
Seu desejo amoroso e feminino era ser capaz de tranqüilizá-lo, de usar sua beleza e palavras precisas para mudar a figura lamentável e irascível que tinha ataques agora freqüentes diante dela. Poderia dizer, com a voz mais doce:

Sim, está certo! Seja o leão, vigoroso, impetuoso. Não importa a vaidade dos pretensiosos, a inquietação dos revoltosos ou onde estão os verdadeiros conspiradores: Lúcifer jamais será derrotado, muito menos por um menino inexperiente que anda gritando que seu mundo é muito opressor.

Mas ela não era capaz de incoerências. Fechou os olhos e respirou fundo. Pensou em sua mãe com sentimento de apelo pela primeira vez desde que descera ali, aparentemente vencida pelo desgaste em que se tornara sua existência desde o início dos rumores da invasão de seu reino. Desde que se tornara deusa e rainha das trevas, guardiã dos mistérios do mundo infernal.

Deméter ouviu. A terra se abriu depois de muito definhar. E a filha retornou.

Seja a flor, seja a criança, o anjo e a serpente. Não pense no que irá parecer no final.
Pensou Coré, apenas para concluir suas reflexões e ouvir com toda atenção os planos e sonhos do amigo que a visitava infalivelmente todos os dias nas pradarias cheias de narcisos. Ele falava bem, sentia prazer em se exprimir, enfático, mas sem afetação. Apenas com sinceridade e o frescor dos jovens que vivem para multiplicar sua própria felicidade.
A cada dia, as conversas prosaicas se tornavam reveladoras de um objetivo maior. Para o novo amigo, o futuro o convidava para conquistas, uma inquietude o fazia negar tudo o que parecesse falso e obscurecesse sua visão. Para Coré, um mundo mais intenso, com mais cores, formas e palavras se traçava diante dela, dentro dela, e a fazia conhecer tudo melhor.
Os dois se desejavam com uma certeza axiomática. A vontade de um era compreendida pelo outro. A compreensão do outro parecia satisfazer todas as exigências para o exercício da liberdade.
E por meio de sua mobilidade e de seu destino, Coré retornava a Hades sempre que necessário. Para vê-lo balançar a cabeça, socar portas e falar com ela, sem vê-la, de todos aqueles que suspeitava serem capazes de traí-lo, de fugir de seus domínios, roubar almas de seu reino ou tentar enganar a morte. Nada mais importava, nada mais existia além das intrigas e ameaças veladas.
Se antes, às margens de Lethe, o rio do esquecimento, Perséfone era capaz de elaborar pensamentos pacientes e suaves como:

Abra os olhos! Seja digno, honesto e sábio. Não há que se preocupar com nenhum desses crimes, meu amor, seu reino será seu enquanto for forte e digno o suficiente para nele reinar. E não há que preocupar a mim tampouco, pois confio em você e com você desejo crescer.

Mas ela não era capaz de negar a si mesma, de matar a si mesma, de viver sem liberdade. A esperança de vida para Perséfone rolou entre seus dedos alongados em forma de uma semente cristalina de romã. E ela assistiu enquanto afundava para o fim distante e negro do rio, seus cabelos em ondas acobreadas desbotando-se através da água diáfana. Era apenas a imagem de seu pensamento, a ilustração de seu desejo de desaparecer naquele instante. Lembrou-se da voz de anjo do amigo que buscava o que queria e sabia aceitar o que dele não dependia, e seu peito ardeu e seu corpo se curvou para dentro das águas de Lethe, o rio que dava passagem ao Paraíso.
Curvou o dorso apenas o necessário para mergulhar o braço no rio e agarrar a semente de volta, a garantia de ter que retornar a Hades mesmo se viesse a perder completamente a vontade de voltar.

Meu cabelo. Negro no reflexo do Lethe. Vejo ainda um ou outro brilho rubro em flashes ocasionais.
Perséfone não pensava. Não pensava em ser mais coisa alguma. Olhava. Constatava apenas. Sua visão mostrava que agora não contava o tempo em dias, noites ou tardes, mas em pensamentos não revelados.
A cada segredo imensurável que passava, sabia menos sobre o que queria, fantasiava menos. A única coisa que sabia era que Hermes demorava a chegar com as mensagens de Adônis, o Gabriel que desejava deixar o posto de anjo. Não recebia notícias, esqueceu-se da voz. Tudo o que sabia sobre a prometida invasão procedia de rumores entre os poucos mortos cansados de viver em Hades.
Pensamentos infinitamente lentos a afastavam da necessidade de existir. E o exército revolto, mais buliçoso que bélico, chegaria enfim?

No momento em que o exército improvisado de Gabriel chegou às portas do Inferno, Perséfone estava ao lado, porém distante, de Hades, encoberta, escondida como se habituara a viver ali, enfeitada, deturpada. Constatou o que já sabia, que seu próprio exército era muito maior e de força insuperável. De fora da liteira era possível ouvir seus suspiros, um ruído contínuo, rouco, desesperado. A única alternativa à força opressora era a admiração que o povo das trevas cultivava por ela, nascida da afinidade. Num impulso, com a última energia física que lhe restara, apelou, entre lágrimas:
– Tragam a cabeça de Lúcifer, em uma bandeja, para mim.

20.8.08

Correndo nas sombras

Uma saída feminina para uma cybercaçada por Ana Cristina Rodrigues

Ele parecia ser um cara normal. Até bonitinho, com seu jeito tímido de se aproximar. Como eu ia saber que era mais um dos mercenários contratados por meu pai para me capturar de volta? Geralmente os “corredores das sombras” têm feições sombrias e não freqüentam lugares sociais. Um rapaz da minha idade, de cara limpa, bem vestido e simpático era justamente o oposto do que eu esperava.

Maldizendo-me por não ter feito um ciber-implante acelerador, dobrei uma esquina. Escondida atrás de um container de lixo, recuperei o fôlego enquanto pensava. Ele provavelmente não ia desistir fácil, já que papai oferecera uma recompensa de mais de 500000 nuiens para me ter de volta viva. Morta, acho que eu valho um pouco menos. Só por causa das aparências. A filha do presidente da Renraku Corporação perdida no meio das ruas de Seattle, vivendo de trabalhos mercenários? Isso não podia acontecer. E por isso, estou com a metade dos mercenários da Costa Oeste em meu encalço.

Uma sensação de perigo sacudiu o meu corpo. Eram os meus sentidos aguçados cirurgicamente avisando que o estranho estava vindo. E só então me dei conta de que estava em um beco sem saída. Ótimo, e agora? Olhei para cima e vi uma sacada. A parte velha da cidade ainda mantém alguns prédios antigos, o que estava sendo providencial neste instante.

Torcendo para que minhas pernas reforçadas com prótese de silício orgânico dessem conta do recado, pulei. Consegui a custo me pendurar e subir. Logo depois, meu perseguidor surgiu e pareceu surpreso ao não me encontrar. Sorri em silêncio, buscando estar o mais parada possível, para que ele não percebesse. Não sabia quais implantes ele teria, mas não deviam ser poucos. Ele parecia muito diferente dos corredores que eu conhecia, contando os nuiens para cada mísero implante de ligação neural. Provavelmente, era empregado de alguma corporação. Provavelmente da Renraku mesmo. Com certeza, ele tinha visão aprimorada, pois conseguira ver a arma no meu bolso esquerdo... E reflexos acelerados também, pois desviara, com calma, da faca que eu joguei quando ainda estávamos no bar.

Ele sumiu. Não o via mais lá embaixo, será que desistira? Levantei-me devagarinho, porém estaquei surpresa ao ouvir uma voz ao meu lado.

– Procurando alguém, docinho? Eu pude ouvir sua respiração lá de baixo.

Ele estava flutuando ao meu lado. Botas antigravitacionais, um absurdo de caras e só disponíveis em catálogos secretos. E obviamente também comprara sentidos aguçados. Entreguei-me, e descemos juntos.

– Muito bem. Agora vamos, que seu pai está ansioso por vê-la.

O sorriso cínico dele me irritou. Eu parecia derrotada, né? Estava andando na frente, parei. Olhei nos olhos dele, e em um movimento rápido, o beijei profundamente na boca.

Uma das regras para a sobrevivência na rua é jamais misturar negócios com prazer. Não é uma questão de simples ética. Elevação de adrenalina e libido não combinam com certos ciber-implantes ligados. Principalmente, reflexos acelerados e sentidos aguçados. O resultado é uma pane no sistema.

Meu captor caiu no chão, os circuitos em choque. Ele pensou que eu era uma menininha mimada que fugiu de casa por rebeldia. Não sabia que as aparências enganam? Não me preocupei mais. Em pouco tempo, alguém viria socorrê-lo. E voltei para o mundo das sombras, que eu escolhera como lar.

Este texto é uma homenagem – praticamente uma fanfic – ao sistema de jogos ShadowRun, do qual nos apropriamos da ilustração acima.

16.8.08

Filho de deputado morre sob encomenda

Cobertura jornalística de um crime político na cidade de Big Field por R. R. Londero

27/10/2033. 23:41:07. Divulgado no Tuiuiú News, mais um portal de notícias que funciona através de escraviários, digo, estagiários. Sou um deles. Acontece que contratar jornalista profissional sai caro, então usam a gente. Somos a mão-de-obra asiática do jornalismo capitalista. Esta reportagem é meu xodó, meu orgulho. Matéria de capa.

Tudo começou no Escobar, boteco com nome de personagem machadiano. Reunião de pauta feita em escritório provisório. Decidi escrever sobre o mais novo crime-sensação de Big Field, o assassinato de John Botelho, filho do deputado pecuarista Seu Botelho. Pauta aprovada, corri para o ponto de ônibus.

Não demora, peguei o 061. Busão lotado como vagão rumo a Auschwitz. Desci na Praça Ari Coelho. Passei pelos mototaxistas com seus capacetes Nintendo jogando bozó virtual. Encontrei a velha-guarda da praça batendo pedra em mesa de concreto. Partidas ininterruptas de dominó. Aqui se concentra o maior acervo informacional de Big Field. Os velhos sabem de tudo. Perguntei sobre a morte de John Botelho. Ouvi algo assim: “Rixa entre os NOBs e os Agroboys”. Acontece que Big Field é cidade partida, dividida pelo trilho imaginário do trem-fantasma. Antes do Trilho e Depois do Trilho, Big Field AT e Big Field DT.

Big Field AT é cidade velha, reduto de sapatarias mofadas, móveis usados, hotéis desqualificados. Comandada pelos NOBs, geração perdida descendente dos trabalhadores da antiga Noroeste Brasil. Gangue multicultural formada por italianos, japoneses, turcos, etnias imigrantes. Seu QG é o Cine Plaza, cine-motel rodoviário. Seu líder é João Nagasaki Otomano. Big Field DT é cidade nova, abrigo do Templo dos Ociosos (ex-Shopping Campo Grande). Dominada pelos Agroboys, filhinhos de magnatas da bio-pecuária. Gente viciada em carro tunado, ou seja, lataria transformada em batmóvel. Seu QG é alguma cobertura Plaenge não-identificada. Seu líder era John Botelho.

Deixei os velhinhos e a digressão de lado. Corri para o Centro Comercial Popular, eufemismo governamental para camelódromo. Verdadeira favela de produtos made in China, de piratarias desbotadas, de remédios ilegais. Barracas se sobrepondo como palafitas sobre o rio humano. Encontro Enéias, o melhor em materiais para cirurgias ecológicas. Mas não quero pêlo de onça, quero informação. “A rivalidade entre os NOBs e os Agroboys começou com uma briga entre João e John. Ambos disputavam Roberta, travesti andróide da CSE Ltda.”.

Não sou Lola, mas corri mais uma vez para pegar o 061. A CSE Ltda. é, na verdade, uma avenida privatizada, e daí vem a sigla: Costa e Silva Entretenimento. Perguntei sobre Roberta num quiosque-recepção e me indicaram o poste 113. Os pombinhos estavam lá, o NOB e a travesti versão 2.0. Quase levei chumbo quente nos cornos, mas convenci João a conceder uma entrevista exclusiva. “Por que você matou John Botelho?”. “Eu não matei esse desgraçado”. “Como?”. “Foi Dadão, ele devia um servicinho para mim”. “Então foi encomendado?”. “Rapaz, realmente foi sob encomenda!”. Disse isso e riu de rolar no chão. Não entendi a piada, mas fui atrás de Dadão.

Dadão trabalha no Mercadão, vende cuias-pé-de-boi, bombas de times e ervas transgênicas milagrosas. Comprei um maço para unha encravada, falando assim: “Seu Botelho tá pagando muito para quem encontrar o puto que matou o filho dele”. Dadão puxou a peixeira, mas emendei: “Vai me matar? No meio de todo mundo?”. Dadão baixou a peixeira. “Responde apenas uma coisa: como você o matou?”. “Deixei cair uma encomenda de ervas em cima dele, quando andava por aqui”.

Ah, depois dessa, só comendo o pastel do Mercadão!

14.8.08

Eu mesmo

Um thriller psicológico e especulativo
escrito e ilustrado por Maria Helena Bandeira

Tenho medo de abrir a porta porque sei que eu estou lá, no corredor, me esperando.
O sistema envia imagens do exterior deserto, mas isto não me engana. Eu tenho meios de iludir a vigilância.
Assim, fico ao lado da porta, com o coração aos pulsos, tentando me acalmar.
Depois, corro de volta para o interior do quarto e me atiro entre as cobertas que rodopiam suavemente ao meu redor, quando pressiono o botão de controle.
Nem ali estou seguro, mas tenho uma falsa sensação de proteção.

Eu estava com medo de abrir a porta porque sabia que eu estou aqui, no corredor, me esperando.
Não acreditava nas magens do sistema porque sabia que eu não sou enganado. Tenho meios de iludir a vigilância. Espero ao lado da porta porque sei que vou sair. Corria para o quarto, ligava o botão que ativa os cobertores, mas sabia que não adiantava. Tinha uma falsa impressão de segurança, eu não vou desistir.
Estou esperando há muito tempo.
Preciso de mim.
Abandono o corredor e me instalo na portaria. Terei de passar pelo portão magnético para comer. Se não realimentar meu organismo, vou morrer.
Não desejo isto. Quero apenas me encontrar. Mas posso ficar aqui, pois sei que, em algum momento, vou passar pela portaria.

Esperava havia muito tempo e não ia desistir. Tenho a boca seca e uma leve sensação de náusea. Sei que preciso de mim, mas não quero. Eu abandonei o corredor. Sinto um alívio passageiro. Agora estou sentado na portaria. Preciso sair para me alimentar. Não quero morrer, mas não desejo este encontro. Eu estava na portaria porque sabia que em algum momento vou precisar sair. Minha astúcia me irrita. Jogo fora os cobertores e tento me concentrar numa solução.
Nenhum disfarce me enganará.
Conheço tudo que escondo.
Aperto a cabeça com força, meu estômago se contrai, lembrando-me que há dois dias não recoloco combustível nas células enfraquecidas.
Tomo uma resolução súbita.
Eu vou sair e me enfrentar.

Jogava fora os cobertores, tentava encotrar uma solução. Não havia nada que eu pudesse fazer.
Eu estou aqui esperando na portaria e nenhum disfarce me enganará. Tenho fome. Meu coração se acelera e agito-me contra o metal frio da porta.
Finalmente, eu venho ao meu encontro.
Atravesso os corredores silenciosos.
Não há ninguém além de mim.
Minha presença está cada vez mais forte. Terei de passar por aqui.
As pernas estão dormentes pela espera. Ou talvez seja a falta de alimento. Mas não posso deixar meu posto agora porque, depois de tanto tempo, estou chegando. Preparo meus sentidos e minha mente para o acontecimento.
Os sentimentos são afetuosos.
A adrenalina corre pelas minhas veias, e a boca parece um pergaminho.
Posso me avistar no túnel escuro por onde caminho, cautelosamente.

Estava encostado no portão de entrada. Esperava pacientemente. Sabia que eu teria de ir. Atravesso os corredores. Infelizmente não há ninguém. Gostaria que um outro cruzasse meu caminho e me fizesse esquecer que estou à espera no fim do túnel, onde a luz se destaca, ofuscando meus olhos.
Vou passar rapidamente e tentar escapar.
Preparo-me para a luta.
Odeio a idéia de me defrontar. Há tanto tempo estou fugindo.
O cilindro prateado do elevador desliza pelas estruturas e pára, bem perto de mim. Entro precipitadamente.
Corro para o elevador, mas a porta se fecha no meu nariz.
Entre as paredes circulares, sinto meu sangue pulsando dentro das veias. Cruzo suavemente os duzentos patamares.

No último instante, escapei.
Atiro-me pela escadas, escorregando nos degraus muito lisos. Minha respiração está ofegante. No segundo patamar encontro outro elevador. Entro e me apóio nas paredes sextavadas, enquanto procuro acalmar as pulsações enlouquecidas.
Eu estou lá no alto, dentro do cilindro prateado, em direção ao terraço. Logo também chegarei ao último andar e então nos encontraremos.
Sei que amo e desejo este momento, mas eu odeio e fujo de mim.
No entanto, somos iguais.

Somos diferentes.
Chego ao terraço e contemplo a cidade, parcialmente adormecida. Uma bruma colorida de gases sobre seus segredos. Mas não tenho tempo. Estou subindo pelo elevador sextavado e breve chegarei aqui. Sentindo câimbras no estômago, pressiono o alarme de emergência e aciono os deslizadores.
No momento exato em que estou entrando no terraço.
Envolvo-me no deslizador e atiro-me no espaço.

Eu só quero me unir. Descansar, afinal.
Mas estou fugindo em direação ao parapeito. Jogo-me no vazio.
Corro atrás e arrebento o outro alarme. Deslizo velozmente para baixo.
É agora, ou nunca.

Chego ao chão.
Salto.
Consigo escapar.
Persigo.
Corro.
Corro.
Colidimos violentamente.
O embate do metal do veículo contra minha carne quase não me causa dor. Meu sangue escorre por entre as fendas na pele. Ouço gritos e imprecações. A presença de muitos outros em volta de mim, levantando-me do chão, colocando meu corpo sobre algo intensamente macio e branco, acariciando-me, dizendo palavras doces.
Sou, finalmente, incrivelmente, espantosamente.
Sou.
Eu mesmo.

– Programa Interação completado. Fusão Total da Personalidade.
A voz inefável do Ultracomputador Psíquico do Centro de Ajustamento para Doenças Mentais e Similares sussurou no meu ouvido:
– Final do Psicodrama Intracerebral. São 250 kontacts.
Através de contrações rítmicas e muito suaves, fui expelido para o exterior.
Com certa pena, abandonei a superfície uterina.
Passei o cartão magnético, transferindo os kontacts de minha conta na União de Bancos Interplanetários e saí.
Contemplei o céu. Qualquer céu.
Era bom estar em casa outra vez.

Este conto foi originalmente publicado no número 19 da edição nacional de Isaac Asimov Magazine

Ibope