24.7.09
A Malta do Vapor
O trecho inicial, revisto e revisado, da noveleta Cidade Phantástica
Por Romeu Martins
Estrada de Ferro Gibson-Mauá que liga Manaus ao Rio de Janeiro. Interior do vagão-restaurante do trem puxado pela locomotiva Barão.
— Que ninguém se mova ou a Malta do Vapor vai atirar para matar!
Os quatro homens se levantam ao mesmo tempo de seus lugares, provocando pânico entre os passageiros bem vestidos, justo na hora do almoço. Até então, desde que embarcara na penúltima estação, o quarteto viajava de forma discreta; um em cada extremidade do carro. Agora, com disciplina marcial, sacam armas e erguem lenços para tapar os rostos. O líder dá ordens, primeiro para o parceiro à direita, depois para os outros à sua frente.
— Tu, vem comigo, vamos revistar os homens. Os dois procurem o alvo. E todo mundo quieto! Fechem a boca agora ou vamos fechar por vocês!
Ele e sua sombra executam movimentos de apalpar paletós com uma das mãos enquanto seguram pistolas com a outra. Não hesitam em estapear quem não colabora. Do outro lado, um dos mascarados segura um cartaz com a foto de uma jovem, com a qual o outro compara ao rosto de cada uma das mulheres. Também armados e violentos, arrancam chapéus caríssimos e seguram as mais chorosas pelo queixo.
O líder examina os bolsos de alguém quando desconfia de um sujeito que ocupa sozinho uma mesa de canto, encostado a uma janela aberta. O homem está tossindo com a cabeça baixa, o chapéu impede que se veja sua cara. A roupa é toda de um cinza cor de fuligem. Casacão, camisa, calças e botas, apesar do calor de início de novembro.
— Deixa as mãos longe dos talheres e olha pra mim, magricelo — A arma é erguida a dois palmos da cabeça que se levanta devagar.
— Satisfeito? — Ele encara o mascarado. O rosto é quadrado e uma barba de três dias o deixa com aparência tão cinzenta quanto à do figurino. Pela cara lisa, passaria por uns vinte anos, não fossem fios brancos nos cabelos a dar ao conjunto um derradeiro toque grisalho.
A resposta vem na forma de uma coronhada no queixo, seguido de um empurrão que lhe esfrega o rosto contra o vidro superior da janela veneziana. O atacante sobe no veludo do banco duplo e encosta o cano da arma contra as costelas do homem solitário. O braço livre derruba prato, copo e talheres ao chão e em seguida começa a revistar o desconhecido.
— És o tipo de encrenqueiro que estou a procurar! Se eu encontrar algo de suspeito...
— Espero que isso não inclua meus charutos — O comentário sai esbaforido pela pressão nas costas e pela cara espremida contra a tremulante vidraça do carro em movimento.
De fato, a única coisa além da carteira, um relógio barato e do bilhete de passagem são dois charutos. Tudo aquilo é desprezado e o mascarado alivia a pressão, afastando-se. Ele parece indeciso se deve deixar o homem vivo. O indicador da mão direita encosta no gatilho. Deve disparar ou não?
— Aqui! Encontrei um que carrega revólver.
Quem fala é o outro responsável pela averiguação dos homens. É o que faz a decisão ser tomada. Na mesma hora o mascarado-chefe recua e segue na direção de seu comandado.
Um senhor de meia idade, três mesas adiante, tem os braços erguidos, rendido pelo algoz que agora porta duas armas, uma delas exibida de lado para o líder do bando.
— Um colt? Não é o padrão deles... Há alguma identificação?
— Não. Só a arma — O integrante da Malta do Vapor fala sem tirar os olhos da presa.
— Juro que era só para minha defesa pessoal — choraminga a vítima. — Não sou quem vocês procuram, seja lá quem for. Sou o coronel Ferreira, da antiga fazenda de Araruna...
— Não vamos arriscar. Sempre existe um agente em carros de luxo. Atira —A ordem é dada sem emoção, nem por isso deixa de ser cumprida.
O tiro à queima-roupa abre um pequeno rombo na testa do homem e estoura a base do crânio por trás. Miolos grudam na parede, contrastando com a madeira de lei envernizada a ponto de virar espelho. Gritos em português e espanhol são ouvidos e logo silenciados por novos disparos dados pelo líder em direção ao teto, quase acertando luminárias de cristal. Ele olha para o homem de quem suspeitara e que não parece mais tão confiante, pois se limitando a baixar o rosto em direção às mãos apoiadas na mesa esvaziada.
Um corpo sem vida, com três olhos bem abertos e desalinhados, desaba ao chão.
Novamente, um dos assaltantes armados grita. O aviso parte dos que estavam caçando entre as mulheres e o que fala segura uma jovem pelos cabelos ao lado do fotograma.
— Cá está. Temos a rapariga em mãos.
Os olhos da mulher são nada menos que selvagens. O rosto tem feições indígenas, acentuadas pelo cabelo de um preto brilhante e liso — despenteado pela ausência não-voluntária do chapéu — e seu bronzeado é de um vermelho igual a brasa, realçado pelo vestido branco, de corte europeu, que usa. Mesmo se não fosse o sangue índio a dar tal impressão, o olhar dela não deixaria dúvidas de que se trata de alguém disposto a matar ou morrer. Ela se esforça para não morder, cuspir ou xingar a dupla que lhe aponta pistolas.
— Ótimo, não vamos mais nos demorar. Temos ordens de acabar com a mestiça caso alguém se intrometa — É o chefe da Malta quem fala. — Vamos render o maquinista e...
— Abaixem-se! Você também, garota, para o chão, já!
O berro rouco é do homem acinzentado que, a despeito da revista pela qual passou, segura nas mãos um objeto de cuja ponta rebrilham explosões barulhentas.
Mesmo assustada a mulher obedece. Tão rápido que fios de sua cabeleira continuam nas mãos do mascarado que a prendia. Ele e o que segurava o papel com a estampa da mulher são varejados por balas. Sem soltar gemido, despencam contra uma das paredes.
Reação mesmo cabe à outra dupla. O que estava mais próximo do estranho de cinza dispara contra ele, obrigando-o a se jogar para baixo da mesa. Já o líder corre na direção oposta.
Protegendo a vista da chuva de lascas de madeira, o único homem armado e sem máscara daquele carro volta a fazer mira com seu trabuco. Ele dispara contra a perna esquerda e o ombro direito do bandoleiro. Indiferente à dor, o sujeito continua atirando.
O mascarado só para quando o peito dele se torna o alvo da rajada ininterrupta de balas.
— Vem cá, desgraçada! Saio contigo ou morreremos os dois — O líder da Malta gruda a mão no pescoço da garota e a suspende. — Estás a me ouvir, magricelo? Vais me deixar sair daqui ou eu e esta mulher levaremos bala, sim, mas da minha pistola!
Com meio corpo para fora da proteção do tampo da mesa e com o cano de sua arma soltando lufadas fumegantes feito a locomotiva que puxa aquele vagão, o homem de cinza hesita. Cospe, tosse, pragueja e hesita. O próximo passo, entretanto, não é dado por ele.
A garota suspensa com facilidade pelo captor ergue um braço para trás, às cegas. Todos ouvem o disparo, mesmo os passageiros que se encolheram em seus lugares desde que o tiroteio começou. Ninguém entende nada quando quem desmorona para o lado não é ela.
Só quando a jovem deixa cair uma pistola — recolhida no chão de outro dos seus pretensos captores — é que se percebe que ela não é tão desprotegida quanto aparentava.
— Nunca havia dado um tiro antes — Ela fala devagar olhando a própria mão com nojo.
— Espero que a madame não tenha que se habituar. No mundo em que vivemos, depois que a gente começa, é bem difícil parar — O homem se levanta, olha para os cinco mortos, limpa o sangue que escorre de onde levou a coronhada, e tenta acalmar os outros passageiros. — Está tudo bem, tudo bem. Sou da Polícia dos Caminhos de Ferro.
— Além de policial deve ser mágico — Diz a mulher, a única pessoa além dele em pé. — Como essa espingarda apareceu em suas mãos de uma hora pra outra?
— Espingarda? Este é um fuzil de tiro fixo Guarany, fabricado no Paraguai, arma exclusiva do Império. Uma obra-prima da mecânica: o coice de um tiro engatilha o seguinte. Basta apertar o gatilho uma vez pra disparar até acabarem os cartuchos — O policial recolhe seus pertences novamente para os bolsos do casaco, relógio, carteira; ele para e sente o cheiro dos charutos. — Sou obrigado a fazer meus truques. Já perdi três colegas para este bando de assaltantes. Por isso, quando faço a escolta de um trem, ou até quando estou de carona, chego antes no vagão-restaurante, sento em uma mesa no fundo e penduro o Guarany do lado de fora da janela, preso pela tira. E não uso uniforme ou distintivo. É o jeito de me manter vivo. Que o diga nosso amigo paulista ali, que levou uma bala com o meu nome escrito. Que Deus o tenha! — Ele faz o sinal da cruz em passes rápidos de mão.
— Uma arma pendurada por uma corda, nunca pensaria nisso — Ela olha para baixo, o homem cujo sangue está espalhado pela parte de trás de seu vestido tem a cabeça furada e descoberta, sem chapéu nem lenço. — É... é um desses estrangeiros, não é? Um desses chinas que substituíram os escravos na construção das ferrovias!
— Isso mesmo, a Malta do Vapor é formada por chineses. Este grupo, pelo sotaque lusitano, veio da província de Macau — Ele segue chutando e escarrando em cada integrante do bando, para confirmar suas mortes. — Roubaram o nome “malta” dos grupos de capoeiras e, desconfio, que o “vapor” seja pelo derivado de ópio que fumam antes dos ataques. Por isso levam tiros, socos, chutes sem piscar. Não sentem dor, os desgraçados.
O policial se aproxima da mulher. Sorri, limpa a boca e a garganta antes de tirar o chapéu.
— Já que falei em nomes, permita que me apresente. Sou João Octavio Ribeiro, seu criado. Porém até meus colegas de corporação só me chamam de João Fumaça.
— Vestindo-se como um saco de carvão não é de se admirar uma alcunha dessas.
— Na verdade, me chamam assim porque minha mãe me deu à luz em uma Maria-fumaça, quando ainda vivia numa cidadezinha da Inglaterra. Posso perguntar sua graça, madame?
— Senhorita. Sou a senhorita Maria Pinto, futura senhora Gibson. Estou vindo de Manaus para encontrar meu noivo na Cidade Fantástica.
— Que sorte a minha — O homem devolve o chapéu à cabeça e abandona o sorriso. —Desconfio que Mr. Gibson possa ser a razão de tudo o que está acontecendo por aqui.
Por Romeu Martins
Estrada de Ferro Gibson-Mauá que liga Manaus ao Rio de Janeiro. Interior do vagão-restaurante do trem puxado pela locomotiva Barão.
— Que ninguém se mova ou a Malta do Vapor vai atirar para matar!
Os quatro homens se levantam ao mesmo tempo de seus lugares, provocando pânico entre os passageiros bem vestidos, justo na hora do almoço. Até então, desde que embarcara na penúltima estação, o quarteto viajava de forma discreta; um em cada extremidade do carro. Agora, com disciplina marcial, sacam armas e erguem lenços para tapar os rostos. O líder dá ordens, primeiro para o parceiro à direita, depois para os outros à sua frente.
— Tu, vem comigo, vamos revistar os homens. Os dois procurem o alvo. E todo mundo quieto! Fechem a boca agora ou vamos fechar por vocês!
Ele e sua sombra executam movimentos de apalpar paletós com uma das mãos enquanto seguram pistolas com a outra. Não hesitam em estapear quem não colabora. Do outro lado, um dos mascarados segura um cartaz com a foto de uma jovem, com a qual o outro compara ao rosto de cada uma das mulheres. Também armados e violentos, arrancam chapéus caríssimos e seguram as mais chorosas pelo queixo.
O líder examina os bolsos de alguém quando desconfia de um sujeito que ocupa sozinho uma mesa de canto, encostado a uma janela aberta. O homem está tossindo com a cabeça baixa, o chapéu impede que se veja sua cara. A roupa é toda de um cinza cor de fuligem. Casacão, camisa, calças e botas, apesar do calor de início de novembro.
— Deixa as mãos longe dos talheres e olha pra mim, magricelo — A arma é erguida a dois palmos da cabeça que se levanta devagar.
— Satisfeito? — Ele encara o mascarado. O rosto é quadrado e uma barba de três dias o deixa com aparência tão cinzenta quanto à do figurino. Pela cara lisa, passaria por uns vinte anos, não fossem fios brancos nos cabelos a dar ao conjunto um derradeiro toque grisalho.
A resposta vem na forma de uma coronhada no queixo, seguido de um empurrão que lhe esfrega o rosto contra o vidro superior da janela veneziana. O atacante sobe no veludo do banco duplo e encosta o cano da arma contra as costelas do homem solitário. O braço livre derruba prato, copo e talheres ao chão e em seguida começa a revistar o desconhecido.
— És o tipo de encrenqueiro que estou a procurar! Se eu encontrar algo de suspeito...
— Espero que isso não inclua meus charutos — O comentário sai esbaforido pela pressão nas costas e pela cara espremida contra a tremulante vidraça do carro em movimento.
De fato, a única coisa além da carteira, um relógio barato e do bilhete de passagem são dois charutos. Tudo aquilo é desprezado e o mascarado alivia a pressão, afastando-se. Ele parece indeciso se deve deixar o homem vivo. O indicador da mão direita encosta no gatilho. Deve disparar ou não?
— Aqui! Encontrei um que carrega revólver.
Quem fala é o outro responsável pela averiguação dos homens. É o que faz a decisão ser tomada. Na mesma hora o mascarado-chefe recua e segue na direção de seu comandado.
Um senhor de meia idade, três mesas adiante, tem os braços erguidos, rendido pelo algoz que agora porta duas armas, uma delas exibida de lado para o líder do bando.
— Um colt? Não é o padrão deles... Há alguma identificação?
— Não. Só a arma — O integrante da Malta do Vapor fala sem tirar os olhos da presa.
— Juro que era só para minha defesa pessoal — choraminga a vítima. — Não sou quem vocês procuram, seja lá quem for. Sou o coronel Ferreira, da antiga fazenda de Araruna...
— Não vamos arriscar. Sempre existe um agente em carros de luxo. Atira —A ordem é dada sem emoção, nem por isso deixa de ser cumprida.
O tiro à queima-roupa abre um pequeno rombo na testa do homem e estoura a base do crânio por trás. Miolos grudam na parede, contrastando com a madeira de lei envernizada a ponto de virar espelho. Gritos em português e espanhol são ouvidos e logo silenciados por novos disparos dados pelo líder em direção ao teto, quase acertando luminárias de cristal. Ele olha para o homem de quem suspeitara e que não parece mais tão confiante, pois se limitando a baixar o rosto em direção às mãos apoiadas na mesa esvaziada.
Um corpo sem vida, com três olhos bem abertos e desalinhados, desaba ao chão.
Novamente, um dos assaltantes armados grita. O aviso parte dos que estavam caçando entre as mulheres e o que fala segura uma jovem pelos cabelos ao lado do fotograma.
— Cá está. Temos a rapariga em mãos.
Os olhos da mulher são nada menos que selvagens. O rosto tem feições indígenas, acentuadas pelo cabelo de um preto brilhante e liso — despenteado pela ausência não-voluntária do chapéu — e seu bronzeado é de um vermelho igual a brasa, realçado pelo vestido branco, de corte europeu, que usa. Mesmo se não fosse o sangue índio a dar tal impressão, o olhar dela não deixaria dúvidas de que se trata de alguém disposto a matar ou morrer. Ela se esforça para não morder, cuspir ou xingar a dupla que lhe aponta pistolas.
— Ótimo, não vamos mais nos demorar. Temos ordens de acabar com a mestiça caso alguém se intrometa — É o chefe da Malta quem fala. — Vamos render o maquinista e...
— Abaixem-se! Você também, garota, para o chão, já!
O berro rouco é do homem acinzentado que, a despeito da revista pela qual passou, segura nas mãos um objeto de cuja ponta rebrilham explosões barulhentas.
Mesmo assustada a mulher obedece. Tão rápido que fios de sua cabeleira continuam nas mãos do mascarado que a prendia. Ele e o que segurava o papel com a estampa da mulher são varejados por balas. Sem soltar gemido, despencam contra uma das paredes.
Reação mesmo cabe à outra dupla. O que estava mais próximo do estranho de cinza dispara contra ele, obrigando-o a se jogar para baixo da mesa. Já o líder corre na direção oposta.
Protegendo a vista da chuva de lascas de madeira, o único homem armado e sem máscara daquele carro volta a fazer mira com seu trabuco. Ele dispara contra a perna esquerda e o ombro direito do bandoleiro. Indiferente à dor, o sujeito continua atirando.
O mascarado só para quando o peito dele se torna o alvo da rajada ininterrupta de balas.
— Vem cá, desgraçada! Saio contigo ou morreremos os dois — O líder da Malta gruda a mão no pescoço da garota e a suspende. — Estás a me ouvir, magricelo? Vais me deixar sair daqui ou eu e esta mulher levaremos bala, sim, mas da minha pistola!
Com meio corpo para fora da proteção do tampo da mesa e com o cano de sua arma soltando lufadas fumegantes feito a locomotiva que puxa aquele vagão, o homem de cinza hesita. Cospe, tosse, pragueja e hesita. O próximo passo, entretanto, não é dado por ele.
A garota suspensa com facilidade pelo captor ergue um braço para trás, às cegas. Todos ouvem o disparo, mesmo os passageiros que se encolheram em seus lugares desde que o tiroteio começou. Ninguém entende nada quando quem desmorona para o lado não é ela.
Só quando a jovem deixa cair uma pistola — recolhida no chão de outro dos seus pretensos captores — é que se percebe que ela não é tão desprotegida quanto aparentava.
— Nunca havia dado um tiro antes — Ela fala devagar olhando a própria mão com nojo.
— Espero que a madame não tenha que se habituar. No mundo em que vivemos, depois que a gente começa, é bem difícil parar — O homem se levanta, olha para os cinco mortos, limpa o sangue que escorre de onde levou a coronhada, e tenta acalmar os outros passageiros. — Está tudo bem, tudo bem. Sou da Polícia dos Caminhos de Ferro.
— Além de policial deve ser mágico — Diz a mulher, a única pessoa além dele em pé. — Como essa espingarda apareceu em suas mãos de uma hora pra outra?
— Espingarda? Este é um fuzil de tiro fixo Guarany, fabricado no Paraguai, arma exclusiva do Império. Uma obra-prima da mecânica: o coice de um tiro engatilha o seguinte. Basta apertar o gatilho uma vez pra disparar até acabarem os cartuchos — O policial recolhe seus pertences novamente para os bolsos do casaco, relógio, carteira; ele para e sente o cheiro dos charutos. — Sou obrigado a fazer meus truques. Já perdi três colegas para este bando de assaltantes. Por isso, quando faço a escolta de um trem, ou até quando estou de carona, chego antes no vagão-restaurante, sento em uma mesa no fundo e penduro o Guarany do lado de fora da janela, preso pela tira. E não uso uniforme ou distintivo. É o jeito de me manter vivo. Que o diga nosso amigo paulista ali, que levou uma bala com o meu nome escrito. Que Deus o tenha! — Ele faz o sinal da cruz em passes rápidos de mão.
— Uma arma pendurada por uma corda, nunca pensaria nisso — Ela olha para baixo, o homem cujo sangue está espalhado pela parte de trás de seu vestido tem a cabeça furada e descoberta, sem chapéu nem lenço. — É... é um desses estrangeiros, não é? Um desses chinas que substituíram os escravos na construção das ferrovias!
— Isso mesmo, a Malta do Vapor é formada por chineses. Este grupo, pelo sotaque lusitano, veio da província de Macau — Ele segue chutando e escarrando em cada integrante do bando, para confirmar suas mortes. — Roubaram o nome “malta” dos grupos de capoeiras e, desconfio, que o “vapor” seja pelo derivado de ópio que fumam antes dos ataques. Por isso levam tiros, socos, chutes sem piscar. Não sentem dor, os desgraçados.
O policial se aproxima da mulher. Sorri, limpa a boca e a garganta antes de tirar o chapéu.
— Já que falei em nomes, permita que me apresente. Sou João Octavio Ribeiro, seu criado. Porém até meus colegas de corporação só me chamam de João Fumaça.
— Vestindo-se como um saco de carvão não é de se admirar uma alcunha dessas.
— Na verdade, me chamam assim porque minha mãe me deu à luz em uma Maria-fumaça, quando ainda vivia numa cidadezinha da Inglaterra. Posso perguntar sua graça, madame?
— Senhorita. Sou a senhorita Maria Pinto, futura senhora Gibson. Estou vindo de Manaus para encontrar meu noivo na Cidade Fantástica.
— Que sorte a minha — O homem devolve o chapéu à cabeça e abandona o sorriso. —Desconfio que Mr. Gibson possa ser a razão de tudo o que está acontecendo por aqui.
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