3.11.08

Os olhos de quem vê

Alguns flashes da próxima epidemia por Octavio Aragão


– Como sabe, perdi a conta de quantas vezes sonhei com essa cena: eu, ela e o mundo.

– Vai contar outra vez?

– Estou sendo chato? Nunca sei quando parar.

– Continue, – disse Beto – gosto de ouvir.

– Ok. – respondi – Eu, ela e o mundo. Bom, não é bem como imaginei: o mundo não está vivo, ela não está apaixonada e eu não sou um super-herói.

Oficialmente tudo começou com aquela conjuntivite. Dois dias de sofrimento e morte. Você ouviu os especialistas que diziam que o vírus percorria o nervo ótico e se alojava no cérebro? A propagação aeróbica infectou médicos, mendigos, militares e meliantes. “E o Rio de Janeiro continua lindo... O Rio de Janeiro continua sendo...”.

Eu morava com minha mãe e minha avó que, com 85 anos, tinha sofrido um derrame e ficou quase cega, surda e meio doida. Coisas simples como alimentação e levá-la ao banheiro viravam batalhas campais. Mamãe, que não era nenhuma criança, foi definhando até que não consegui perceber diferenças entre as duas. Mas o que ficou marcado foi quando eu, meio bêbado, e minha mãe percorremos quase todos os hospitais da zona sul procurando uma emergência para socorrer a velha. Naquela noite tomei conhecimento da situação da cidade.

Sem vagas. Sem leitos. Sem médicos. Sem porra nenhuma. Minha avó estava respirando com dificuldade, fazendo um som como se tivesse o escapamento furado. Minha mãe berrava no ouvido da velha qualquer bobagem que vinha à cabeça procurando alguma reação e isso me deixava mais tonto, com um gosto horrível na boca e dirigindo com o pé na tábua, desviando de mendigos doentes, matilhas de cães vadios ou grupos que fechavam ruas com a intenção de assaltar carros perdidos.

O quarto hospital que tentamos foi o da Lagoa e infelizmente conseguimos atendimento. Infelizmente porque o cheiro era insuportável. A Lagoa Rodrigo de Freitas estava coberta por um tapete – não, uma crosta – uma camada rígida de peixes mortos. Aquele hospital acabou sendo o único a ter vagas porque ninguém aguentava respirar. Ainda assim, tive de subornar dez pessoas, para que a velha fosse atendida: gente na fila, duas enfermeiras e um dos dois únicos médicos presentes, um garoto de seus vinte anos, que não devia ter diploma, mas que parecia ter enterrado muitos pacientes. Apesar da propina ser uma prática antiga e constante, fiquei irritado por gastar os mantimentos que guardava no carro para tentar salvar a vida da mulher que espancou os filhos por motivos idiotas e que achava que a correia ou um pedaço de pau eram instrumentos educacionais mais úteis que um quadro-negro.

Estava quase indo embora quando o rapaz de branco disse em voz baixa que eu não me espantasse se ela não sobrevivesse. Respondi “por mim, tudo bem” e ele ficou me encarando entre o surpreso e o cansado.

Voltamos para casa pela manhã e minha avó continuava incólume dois meses depois, quando minha mãe contraiu a doença. Prevendo o que aconteceria, invadi um apartamento abandonado, mudei livros e mantimentos para lá e, quando mamãe morreu, olhei para aquela sobrevivente estúpida que não entendia nada do mundo, babando sentada no meio da sujeira. Dei meia volta, enchi a mala com roupas e desejei boa sorte. Alguém que sobreviveu à gripe espanhola, ao governo de Getúlio Vargas e a um golpe militar sem esmorecer podia se virar sozinha e passar por mais uma crise.

Oficialmente foi assim que começou, mas, para mim, o início foi pouco antes do aparecimento das primeiras vítimas, quando conheci Carmen. Hoje me pergunto por que ficou comigo durante um mês. Mas era apenas o corpo, a cabeça estava com um cara de quem nunca mais ouviu falar. Um homem que estava morto num mundo que ia pelo mesmo caminho. Nós permanecíamos, por milagre, vivos. O reencontro aconteceu uma semana após a fase crítica da epidemia, quando ainda se podia ver corpos pelas ruas, mas nenhum andando.

Desde então passamos a morar, comer e dormir juntos. Eu amava por nós dois
.
Algumas vezes, durante as peregrinações pelo bairro, invadindo supermercados procurando comida, repetia para mim mesmo que cumpria meu papel e que a vida era perfeita. Ontem jantamos à luz de velas. Pernil regado a chianti. Depois, à meia-noite, entregamos os presentes: dei um vestido de noite que tínhamos visto naquela loja que ela adorava, onde as vendedoras atendiam a gente com cara de nojo – para ver como são as coisas... agora quem torce o nariz para elas sou eu – , e ganhei uma gravata de crochê feita à mão. Depois do vinho, gargalhamos abraçados e ela disse: “Acho que estou grávida”.

Foi um estrago: quebrei a louça ao me apoiar na mesa, quebrei a mesa ao cair no chão e arranhei o sinteco depois da queda. Ela riu como há muito tempo não fazia. Foi nessa noite que me senti como um super-herói.

– Sei. E hoje ela está morta. – diz o Beto, saindo da minha frente e deixando o corpo de Carmen aparecer pendurado na luminária do corredor – que era antiga e resistente – enforcado pelo vestido de noite. Eu devia ter fechado a janela. O vento faz com que os pés descalços balancem.

– É – respondo – Ela se matou no meio daquela noite, mas ao menos não foi embora.

Beto continuou sorrindo:

– Rapaz, você ainda não entendeu. Não é guardando o corpo que vai fazê-la ficar. Mas pode contar a história outra vez, já que não tenho mesmo o que fazer.

Encaro o rosto simpático. Ele não está sendo meu amigo. Fecho a mão e dou um soco bem no nariz de Beto. O sorriso parte ao meio. Continuo batendo até que pedaços do espelho ensangüentado se espatifam no chão do banheiro.

“Quem precisa de amigos?”, penso diante do armário quebrado onde alguns cacos refletem os olhos de Beto. A música tinha razão: “Quem gosta de mim sou eu”.

22 comentários:

Anônimo disse...

Rapaz, que porrada na boca do estômago! É um dos melhores contos do Octavio que eu já li.

Helena disse...

Nossa, Octa, conto fortíssimo! Maravilha, adorei, final perfeito. Impacto profundo mesmo.

beijão,

merrel

Octavio Aragão disse...

Obrigadão, Fábio e MHell.

Este é um dos primeiros contos que escrevi na vida e tenho reescrito o danado periodicamente desde 1984, creio. A última versão, com o final que está aqui, é de 2001, creio.

Algumas histórias nos perseguem.

Romeu Martins disse...

Meus comentários pro Octavio quando li o conto foram muito parecidos com os seus, Fábio e merrel

Luis F Silva disse...

Grande conto, Octavio. Que visão tenebrosa de uma mente humana. Parabéns

Octavio Aragão disse...

Obrigado, Luís.
E pensar que o protagonista é auto-biográfico talvez seja o mais tenebroso.

Anônimo disse...

Nossa!, bem "apocalíptico" este, não?
Gostei da visão de um mundo se desfazendo e os poucos sobreviventes tentando prosseguir, apesar de tudo. O final é bem do tipo que me agrada: surpreendente!
Só acho que, para não ficar tão, digamos, "datado", você deveria/poderia substituir a gravata de crochê por outro presente menos característico de certa época (foi a única coisa que me soou estranha no conto — só depois li nos comentários que você vem trabalhando este conto desde 84, e tudo fez sentido).

Abraço,
Wagner.

Octavio Aragão disse...

Ah, Wagner, mas a gravata de crochê está ali para causar estranhamento mesmo. Este é um
conto de um *futuro do pretérito* e eu ainda queria sugerir a possibilidade de ter sido a Carmen quem fez a gravata.

Trata-se de um conto oitentista. Tem clima de anos 80, tem gosto de anos 80 e tem cheiro de peixe podre. :-D

Romeu Martins disse...

De fato, este é um conto bastante olfativo ;-)

Octavio Aragão disse...

Oi, Rynaldo.

Morei pertinho da Lagoa durante quatro anos. É um dos lugares mais legais da cidade.

denisereis10 disse...

Oi, Octavio, lindo conto. Avó "problemática" também, é? Hehehe...

Só uma coisa, a citação do trecho de música no final "Quem gosta de mim sou eu". Tem uma música, se não me engano do Noel, que tem esse verso. Mas como vc. cita dois versos de "Aquele Abraço" mais no início, não seria a essa música que vc. está se referindo (acho que seria mais interessante manter a mesma música)?

Se for isso, a letra certa não seria "Quem sabe de mim sou eu"?

Muito sucesso e aquele abraço

Denise

Octavio Aragão disse...

Oi, Denise!

Tens razão, deveria ser mesmo “sabe” em lugar de “gosta”, mas creio que esta é uma daquelas situações em que o erro soa melhor que o acerto, por isso opto por manter o original.

Mas o mais legal é ter você de volta ao cenário da FC&F brasileira. Vê se não some!

rogério camara disse...

Oitentista?! Faz sentido! Nos anos oitenta descobrimos que o futuro é um lugar que não existe (clichê assim mesmo!). Sobretudo para quem, como eu, nasceu nos 60. Aos vinte anos as cabeças de nossas avós entram em colapso e sacamos que nossas mães não são eternas. Pouco importa, afinal nesta mesma idade rifamos a família em nome do amor de belas pernas. A gravata de crochê? Sim, foi com este objeto estranho e mal colocado que buscamos o primeiro emprego e enforcamos nossos sonhos. O ato terrível é revelar que o primeiro amor (que como o gato Schrödinger esteve e não esteve grávida, existiu e não existiu) resta pendurada assombrando nossa vida possível. Quem não se matou sobreviveu. Sacanagem do Octavio! Afinal, pra quê mexer com os que foram?
Sublime o conto, nele me passou uma vida. Em algo tão lapidado só ficou sobrando, em minha opinião, a foto. É preciso ver aquilo que o autor permite imaginar as entranhas e os odores?

Octavio Aragão disse...

Rogério, muito obrigado, cara. Fiquei até sem graça.

Romeu Martins disse...

>>Em algo tão lapidado só ficou sobrando, em minha opinião, a foto. É preciso ver aquilo que o autor permite imaginar as entranhas e os odores?

Precisar, não precisa. Mas eu quis mesmo assim.

Denis disse...

Pauleira do começo ao fim! Um mundo infernal, cada um por si. Mas, pô! Todo mundo morrendo e a vozinha não morre? Esta foi tragicômica fina. Kkkkkk!!!

Octavio Aragão disse...

Denis, se você tivesse conhecido minha avó, não teria se espantado.

Ivo disse...

Mas que paulada !!!!!
Gostei muito.

Diferente das últimas coisas que li suas, muito bom.

Abração

Octavio Aragão disse...

Obrigado, Ivo.

Não consigo ver essa diferença, mas valeu pelo comentário. Se você acha que estou variando a forma ou o tema, fico feliz.

Unknown disse...

Quem tem olhos, veja e quem tem ouvidos, escute.
Ao contrário das reinvenções da polvóra que grassam por aí, o Octa não teve prurido em pegar o tema da peste - um hit parade desde Defoe - e sacudi-lo até os dentes baterem. Muito bom, mesmo. Excelente final.

Unknown disse...

(Ignorem o lusitanocídio cometido no post anterior. Meu pai mata-me se ler isso...)

Octavio Aragão disse...

Oi, Ana, muito obrigado, mas o tema da peste, creio, vem de antes.

Talvez Poe tenha sido o precursor com o “A Máscara da Morte Rubra”, não?

Ibope