19.11.08

Lamentações de Jeremias

Uma vingança em ritmo pulp por Lúcio Manfredi


Jeremias Moranu odiava esse tipo de clichê, mas tinha de admitir que aquilo era uma arma-laser e estava diretamente apontada para a cabeça dele. De pouco adiantaria sugerir ao autor que ele deveria ter optado por uma abordagem mais sutil e que muita água rolara por baixo da ponte desde os bons tempos da space opera, quando os heróis andavam pra cima e pra baixo brandindo suas pistolas. Pode até ser que fosse verdade, mas uma das virtudes do crítico descolado é saber o melhor momento para compartilhar sua sabedoria e este, definitivamente, não era um desses momentos. Em vez disso, o melhor a fazer seria ganhar tempo até que pudesse usar suas armas favoritas, racionalização e subterfúgio.


— Vamos conversar? — sugeriu o vocalizador.


Para surpresa do próprio Jeremias, o autor depositou sua arma na mesinha diante do aquário e sentou-se.


— É, vamos conversar.


Jeremias Moranu não se chamava realmente Jeremias. Essa era apenas a melhor solução a que o vocalizador chegara numa tentativa de traduzir seu verdadeiro nome, um padrão de cores que, no idioma dos críticos, significava qualquer coisa como “aquele que lamenta sem parar”. Jeremias deveria ter sido uma larva particularmente gritalhona para receber esse nome da rainha. Agora, porém, não estava com muita vontade de gritar. E percebeu que tampouco tinha muito a dizer. Esperara que o autor reagisse dizendo que não havia nada para conversar e estava preparado para responder com a arenga habermasiana padrão sobre como as partes em conflito sempre podem chegar a algum tipo de consenso, mas a concordância do outro pegara-o desprevenido. Ergueu o segundo de seus dezesseis pares de tentáculos e friccionou uma pata na outra diante do terceiro par de olhos esbugalhados, um gesto que, para os críticos, traduzia a mais profunda perplexidade. Para o humano confortavelmente instalado numa poltrona do escritório, entretanto, o gesto não tinha o menor significado.


— Achei que você quisesse conversar — resmungou, tamborilando a impaciência no braço da poltrona.


— Suponho que você está aqui porque não gostou da resenha que eu fiz de Trimalchia IV — tateou Jeremias.


— Não, eu adorei a resenha que você fez de Trimalchia IV — retrucou o autor.


Agora, o crítico esfregava nada menos que cinco pares de tentáculos diante de seus seis pares de olhos esbugalhados.


— Mas eu praticamente destruí o teu trabalho! Falei que havia tantas falhas de carpintaria que era de se espantar que a obra ficasse em pé sozinha. Disse que não passava de um amontoado de lugares-comuns que você parece ter colhido mais ou menos ao acaso no armazém da esquina... — o vocalizador fazia acompanhar cada palavra de um ruído de estática, sobrecarregado pela tentativa de capturar a tantalizante mudança de cores na carapaça do crítico.


— Eu sei.


— E mesmo assim, você adorou?


O autor levantou da poltrona. Jeremias se encolheu no fundo do aquário, mas o outro deu-lhe as costas e se aproximou da placa de transparência subjetiva. A segunda das três luas de Morania levantava-se no horizonte, banhando a sala com seu brilho violáceo.


— Ouvi dizer que, quando você era mais jovem, também se arriscou como autor.


Jeremias enrubesceu, o que, num crítico, não envolvia ficar vermelho e sim escoicear a parede do aquário com seu sétimo par de pernas.


— Ah, uma bobagem de juventude. Eu mal tinha entrado na minha oitava articulação — era impossível não notar uma certa vaidade na sintaxe das cores. — E foram só nove ou dez mundos.


O autor se aproximou do aquário, fazendo Jeremias estremecer novamente.


— Mas eu li cada um deles — assegurou. — Fui em todos os sistemas solares que você assinou, mergulhei minuciosamente na estrutura de seus mundos. De onde você acha que eu tirei os lugares que você acha tão comuns?


A carapaça de Jeremias soltou a explosão de azul que se poderia traduzir como um eureka. Era por isso que Trimalchia IV lhe parecera tão familiar!


— Você criou Trimalchia IV como um pastiche deliberado dos meus mundos?


— Mais do que isso. Trimalchia IV tem um campo ontológico configurado para a tua estrutura ôntica específica. Uma vez que você ponha seus tentáculos lá, estará preso pra sempre no envelope de realidade daquele mundo.


Jeremias emitiu a exalação fedorenta que, entre os críticos, passava por uma gargalhada.


— Acontece que eu nunca piso num mundo que tenha resenhado negativamente.


— Eu sei — disse o autor, recuperando a arma da mesinha. Só então Jeremias notou que sua primeira avaliação sobre a natureza do artefato fora precipitada.


— Eu faço parte da décima-sexta articulação de críticos! — protestou.


Não era uma pistola-laser.


— Sou um dos críticos mais respeitados de Morania!


Era um teleportador.


Jeremias se fechou completamente dentro da carapaça, um gesto inútil de defesa que não o impediu de desvanecer em uma nuvem de partículas azuladas. Antes mesmo que a nuvem se dissipasse, o autor sabia que o corpo do crítico estava sendo reconstruído por um terminal de conexões não-locais instalado numa floresta de Trimalchia IV, onde Jeremias passaria o resto das duzentas e quarenta e três articulações que ainda lhe restavam. Talvez até se sentisse bem. Afinal de contas, os menores detalhes daquele mundo haviam saído de seu inconsciente. Mas o autor preferia que não. O que ele tinha odiado mesmo era a resenha de Esperia XI.

16 comentários:

Unknown disse...

Um das vezes que eu gostaria que a FC se tornasse realidade...;)

Helena disse...

hehehe maravilha! Um conto que eu gostaria de ter escrito. Atmosfera aliens bem colocada, humor ferino e vingança que se come em qualquer época hohoho Valeu, Romeu. Parabéns, Lucio.

beijão,

merrel

Romeu Martins disse...

Hehehe, críticos não são realmente as criaturas mais apreciadas do multiverso ;-)

Ludimila Hashi disse...

Hilário. Já na primeira frase.
Humor inteligente no conteúdo e na linguagem é um deleite, ainda mais quando vem no tamanho certo (tamanho Hobbit).

Vou fazer a versão e enviar pro Pratchett, ele vai adorar.

Parabéns, Lúcio. Acho que cada leitor visualizou um traço fenotípico diferente para Jeremias.

Octavio Aragão disse...

Não, peraí... ESTE conto vai parar nas mãos do Pratchett?!?

Éééé... o Universo é uma birosca onde a ironia é servida a preços módicos.

Ludimila Hashi disse...

Por que "ESTE", Octavio?
Este eu consigo imaginar ele lendo.
Quais você sugere?

Octavio Aragão disse...

Não foi uma crítica, Ludi, mas um elogio. E daqueles!

Octavio Aragão disse...

ESTE conto é perfeito para p Pratchett.

Ludimila Hashi disse...

Aliás, eu tava só brincando :)
Porque vi alguma semelhança na sátira, mas o TP nem deve estar em condições de ler muita coisa, acho. Espero que esteja errada!

Ah, eu não achei que fosse crítica mesmo :)

Anônimo disse...

Ana, infelizmente ainda não inventaram um teleportador desse tipo - senão, acho que a lista de alvos ia ser grande... (se bem que eu desconfio que alguns nomes apareceriam em várias listas) :-D

Anônimo disse...

É que o conto não foi escrito por mim, Merrel. O verdadeiro autor é My Lil'Devil, o demônio do sarcasmo, que é o meu bichinho de estimação...

Anônimo disse...

Ludi, por "tamanho hobbit", você tá se referindo ao conto ou ao autor? :)

Anônimo disse...

Até que seria engraçado, hein, Octavio? Fico pensando se não deveria ser essa a minha contribuição pro Somnium Special Edition...

Alexandre Lancaster disse...

HAHAHAHAHAHAHAHAHHAHAHHAHAHH
(convenhamos, se Machado de Assis, tão caro aos homens que moram nus, dizia que a melhor definição do amor não vale um beijo de namorada, um comentário extenso sobre a boa sátira obviamente não vale um décimo de uma risada perversa). XD

Ludimila Hashi disse...

Octa, por um segundo achei que, ao ler meu comentário, tinha se formado na sua cabeça uma lista de sugestões para contos a serem vertidos e enviados pro Pterry.

Lúcio, me referi ao tamanho do conto, mas adorei quando vc disse "Essa escada não foi feita pra Hobbits, lá no Asterix"

Unknown disse...

Essa metamorfose é digna de um Kafka.

Sensacional, Lúcio! Disse tudo :-)

Ibope