27.10.08

M.U.A.

Um conto uniformemente acelerado por Fábio Fernandes

1980

O murmúrio no interior da igreja já virou um burburinho a essa altura. Da limusine alugada Renata ouve tudo com uma clareza assustadora: o choro de um bebê, a voz esganiçada de uma tia velha, o riso gostoso do filho de uma amiga. Ao seu lado, o pai tenta disfarçar a décima-quinta consulta ao relógio, mas ela percebe.

- Que horas são? - pergunta.

- Ele já deve estar chegando, filha - responde o pai sem muita convicção.

Renata pega o braço esquerdo do pai e vira o pulso. Seis e quarenta. O casamento estava marcado para as seis.

- Deve ser o trânsito, Renata.

- O Ramón mora em Botafogo, papai. De lá pra cá não demora mais que dez minutos, vinte com tráfego ruim.

O pai não argumenta.

Os convidados começam a sair. Os parentes e agregados ficam nas escadas; os amigos de faculdade de Renata se espalham lentamente pelas imediações, admirando a paisagem do alto do Outeiro da Glória. Ninguém foi embora, mas Renata sabe que isso não vai demorar: quando o primeiro tomar coragem, os outros irão atrás. Pedindo desculpas, com um pouco de constrangimento, mas irão. Renata não chora. O que ela sente é raiva, uma raiva tão grande que evapora qualquer possível lágrima antes mesmo de sair de seus olhos; de algum modo, ela sabia que isso iria acontecer. Não era de hoje que Ramón vinha se comportando de forma estranha, sumindo por dias, às vezes semanas. Na última vez em que se viram, três dias antes, ela lhe perguntara se ele realmente ainda queria se casar. Ele respondera que sim, era o que ele mais queria; mas Renata viu em seus olhos uma hesitação, um desespero, alguma coisa que o sufocava e ele não conseguia revelar o que era. Ela não forçou a barra para que ele contasse; agora se arrepende.

E jura que, se Ramón não aparecer, não haverá perdão nem volta.

1986

O murmúrio no interior do shopping já virou um burburinho a essa altura. Porra, desabafa Renata, no Natal tudo bem, mas já passou um mês. Mas a chuva que cai lá fora, e só agora ela percebe, foi a causadora da aglomeração. Bom, a lista de presentes já foi providenciada, ela pensa. A tentação de tomar um sundae enquanto espera a chuva passar é grande, mas Renata opta simplesmente por ficar embaixo da marquise do shopping à espera de um táxi. Consulta o relógio: oito e meia da noite. Ela gostaria que Maurício estivesse ali, mas seu noivo não dispensa o chopinho das sextas com os amigos do trabalho.

Nem por ela. Nessas horas ela lembra de Ramón. Ele também tinha sua ânsia de liberdade, seus sonhos, mas era incapaz de deixá-la sozinha. Nessas horas ela só lembra das coisas boas. Foi tudo o que sobrou. Renata nunca mais o viu.

- Renata?

Renata nunca mais ouviu o som de sua voz.

Ela se vira.

O rapaz à sua frente não tem mais de vinte e quatro anos, a idade que ela tinha no dia do casamento que não houve. Está vestido com um jeans semi-baggy e uma camisa amarela bufante
com hibiscos roxos. Os cabelos pretos cheios, batidinhos sobre as orelhas, parecem anos setenta demais para ela. Ramón não mudou absolutamente nada.

Renata respira fundo.

- Como vai, Ramón? - ela pergunta, tentando parecer fria.

O rosto de seu ex-noivo não tem a mesma pretensão.

- Você não está notando nada? - ele responde com outra pergunta, a voz embargada.

- Estou - ela o olha de alto a baixo. - Sua cara de pau não mudou.

Ramón respira fundo. Renata percebe que ele está muito agitado.

- Renata, me escute com atenção - ele chega bem perto dela, como se quisesse sussurrar. Mas seu tom de voz não diminui: - Cheguei há dois dias. Não sei quando vou embora. Preciso falar com você, é muito importante. Por favor.

- Você está morando fora? Onde? - ela pergunta, tentando aparentar mera cordialidade. Mas ela quer mesmo saber.

Por um momento, Ramón age como se ela não existisse; levanta a cabeça, olha para o shopping como se não o conhecesse, abaixa os olhos e percorre a paisagem ao redor.

- Aquele bar onde a gente costumava ir ali na rua da Passagem ainda existe? - ele pergunta de repente.

- Existe. Quer ir até lá?

- Quero.

Eles saem do shopping e vão na direção do bar. Mal conseguindo disfarçar o nervosismo, Renata anda a passos largos. De repente, percebe que deixou Ramón para trás. Vira-se: ele avança devagar, como se estivesse passando mal. Ou não quisesse andar depressa.


Pedem dois chopes. Renata espera: Ramón não fala uma palavra até que o garçom traz as bebidas e o cardápio. Ele pega a tulipa e toma um longo gole. Renata percebe que a mão do rapaz treme.

Mão exatamente igual a da última vez em que beberam, naquele mesmo bar. Renata olha Ramón com mais cuidado.

Ele parece tão novinho... Por um momento todos aqueles anos de namoro voltam, e nada mudou. Os olhos de Renata ficam marejados.

- O que você tem para me dizer, Ramón? - ela pede, antes que desabe em lágrimas que não quer mostrar.

- Eu quero pedir perdão, Renata. E te dar uma explicação... de porque é que eu não fui ao... - a voz morre na garganta.

Cachorro, não tem sequer a coragem de pronunciar a palavra “casamento”, pensa Renata.

- Não precisa explicar nada - Renata diz, procurando um cigarro na bolsa. Jurou a Maurício que ia parar, mas uma ocasião dessas é mais que desculpável. - Já passou, Ramón. É uma página
virada.

- Página? Claro, claro! - O semblante de Ramón se ilumina tão subitamente que Renata sente uma pontada de medo. Parece doido. Ela acende o cigarro e dá a primeira tragada - longa - enquanto aguarda que ele termine de mexer em sua bolsa.

Renata reconhece a bolsa: uma sacola riponga azul e verde trançada, que ele comprou em Ipanema um mês antes do casamento. Mas não pode ser a mesma, ela pensou: a bolsa da qual Ramón tirava agora uma folha de jornal era nova em folha.

- Dá uma olhada na data deste jornal - ele pede, estendendo o papel quase na cara de Renata. Ela pega a folha: é o caderno B do Jornal do Brasil. A data é 16 de janeiro de 1980. Uma quarta-feira. O dia em que Renata o viu pela última vez.

O jornal está como novo.

- Não estou entendendo nada, Ramón - ela pergunta, a irritação se misturando com o estranhamento. - O que é que você veio me dizer de tão importante?

- No shopping, você me perguntou se eu estava morando fora. Não, Renata: eu fui mandado para fora.

- Como? - ela pergunta, imediatamente imaginando mil possibilidades. Recém-formado em jornalismo na época do noivado, ele vivia endividado. Será que havia se comprometido com algum agiota e tivera que fugir para não ser morto? Ou seriam drogas? Ela apura o ouvido: não quer perder essa explicação.

- Eu viajei no tempo, Renata - Ramón diz bem devagar, medindo palavras que não podem ser camufladas.

E nem assimiladas.

- Francamente, eu achei que a gente estava falando sério - Renata se levanta. Ramón barra sua passagem.

- Pelo amor de Deus, Renatinha, me ouve - seus olhos estão cheios de lágrimas. - Eu estou desesperado, não sei o que fazer. Preciso falar com alguém.

- Você precisa é de um psiquiatra, isso sim - e Renata se arrepende no instante em que as palavras saem de sua boca.

Pois deve ser exatamente disso que ele precisa, e ela não devia tornar as coisas mais difíceis com sua crueldade. Afinal, ela parece estar em melhor estado que ele.

Que reconhece isso de alguma forma.

- É, eu pensei nisso - ele admite, sem medo de esconder as lágrimas que escorrem pelo rosto. - Mas como é que as coisas mudaram tanto e eu não mudei nada? E minhas roupas? E as coisas que eu tinha comigo?

Renata torna a se sentar. Ramón faz o mesmo.

- Isso começou a acontecer uns seis meses antes do dia do casamento. Eu comecei a ter brancos estranhos. Atravessava uma rua de manhã, e chegava do outro lado à tarde. Entrava na cozinha à noite e voltava para a sala ao meio-dia.

- Você procurou alguma ajuda? - ela pergunta, agora com mais sutileza.

- Procurei um neurologista - responde Ramón. - Fiz exames, mas o médico não achou nada de errado comigo. Cheguei a marcar um psicólogo, mas foi exatamente naquele período que eu sumi uma semana. Lembra como você ficou puta comigo?

- E como é que eu ia esquecer? Ainda lembro da raiva que eu senti do Zé Carlos. Pensa que eu não lembro que ele tinha te convidado para um churrasco em Pedra de Guaratiba logo antes de você sumir? Teu sumiço nunca me desceu pela garganta.

- Nem pela minha, Renata. Pra mim não se passou um dia. Eu saí da padaria no sábado de manhã com um litro de leite e um pão quente debaixo do braço. Quando cheguei em casa era sexta-feira, perto do meio-dia. Mas foi aí que eu vi que tinha algo de errado.

- Custou tanto assim pra perceber? - ela diz, irônica.

- Não, não é isso. Foi aí que eu vi que não era nenhum problema meu. Eu não estava tendo branco algum. O leite continuava gelado e o pão quente. Eu estava exatamente como quando saí de casa. Até então, esses lapsos só haviam acontecido num espaço de horas. Mas depois de uma semana, como é que eu podia explicar o fato do leite não ter estragado e nem o pão envelhecido? E minha aparência? Nem a barba havia crescido!

- E o que você fez?

- Nada - Ramón confessa, o rosto desanimado. - Fazer o quê, Renata? Quem é que ia acreditar em mim?

Ela o encara irada.

- Que tal eu, Ramón? Por que você não me contou nada na época? Não tinha confiança em mim?

Ramón baixa a cabeça.

- Você não ia acreditar, Renata. Depois daquele incidente com a Janaína...

- Sei, sei, não precisa entrar em detalhes. - O caso de Ramón com Janaína foi bastante concreto, ele não tinha como inventar nenhuma desculpa estúpida para ocultar a verdade.

- Isso aconteceu três meses antes do casamento. Aí eu comecei a me prevenir: falei para meus pais e para você que tinha pintado um trabalho com cinema em São Paulo, e que eu poderia ir pra lá sem avisar, lembra? Pois então; foi pra tentar ocultar qualquer futuro salto.

- Como aquele de três semanas - Renata lembra.

- Como aquele de três semanas - repete Ramón. Aí já faltava pouco tempo pro casamento, e eu bem que tentei te avisar. Mas me deu um medo filho da puta na hora: você ia achar que eu estava de sacanagem com a sua cara e ia querer acabar tudo. Preferi ser covarde e esperar a cerimônia. Aí eu ia poder te provar que estava falando a verdade.

- Como?

- Levando você comigo - ele explica.

- Ah - Renata não sabe o que dizer.

- Pois é, é isso - e ele entorna a tulipa de chope. Pede ao garçom mais uma.

- Duas - corrige Renata.

- Você nunca foi de beber muito - ele observa, tentando amenizar o clima.

- Depois do que você me contou agora, vou precisar - ela diz. - Vem cá - ela o chama, fazendo um gesto para a cadeira ao lado. Ele troca de lugar. Renata acaricia o rosto de Ramón. A barba de dois dias é cerrada; ela lembra que seu pescoço ficava todo lanhado quando trepavam. Doía um pouco, mas Renata gostava.

Renata está toda molhada.

- Você está tão lindo - ela diz. E o beija.

Renata sente as mãos de Ramón acariciando seu rosto, seus cabelos, sua nuca. Há quantos anos ela não sentia aquelas mãos tão macias. É como se o tempo não tivesse avançado.

Delicadamente, ela interrompe o beijo.

- O que você disse é verdade, Ramón? - pergunta, pela primeira vez na dúvida.

Ramón faz que sim com a cabeça. A emoção é tanta que não consegue falar.

Renata pega sua tulipa de chope - que obviamente chegou durante o beijo - e toma um gole.

- Você não acredita em mim - diz Ramón, enxugando as lágrimas.

- Eu acredito - diz Renata.

- Não, eu te conheço bem. Você é muito teimosa. - Ambos riem. - Mas só há uma maneira de provar, Renata. - e ele estende a mão. - Vem comigo.

- Pra onde?

- Não sei - ele confessa. - Pela lógica, é somente para o futuro. A cada salto eu passo menos tempo em tempo real e o espaço percorrido é maior que o anterior. Ainda não tive cabeça para
calcular a progressão, se é que existe uma.

- Parece M.U.A. – diz Renata.

- O quê?

- Movimento Uniformemente Acelerado. Aprendi isso no ginásio. Isso ocorre quando um objeto atinge uma aceleração determinada constante.

- E a velocidade do objeto vai aumentando proporcionalmente, não é isso?

- Exato.

- Por isso tenho ficado menos tempo em qualquer época que eu esteja. O salto seguinte me deixou a seis meses depois do casamento. Fiquei quinze dias aqui. Então, de repente, fui no supermercado e voltei com as sacolas de compras dois anos depois.

- Pelo menos você tinha comida.

- Pelo menos... Porque eu já não tinha mais onde morar. Soube da minha mãe?

- Soube. Lamento muito.

- Tudo bem - ele toma mais um gole. - Ainda não deu tempo de sentir. Uma semana depois eu virei uma esquina e estou aqui.

Renata respira fundo.

- Você me dá um tempo pra pensar?

Ramón arregala os olhos.

- Renata, você ouviu o que eu te disse? A cada salto eu passo menos tempo em tempo real! Isso quer dizer que eu não sei quanto tempo tenho! Da última vez, foram sete dias antes um salto e o último. Já estou no segundo dia. Pode ser amanhã, ou daqui a pouco! Eu não tenho tempo a perder!

- Calma, Ramón - Renata procura medir as palavras da melhor forma possível; não vai ser fácil. - Você está se esquecendo que para mim se passaram seis anos? Seis anos! Como é que você acha que eu me sinto com você aparecendo assim de sopetão, me contando tudo isso, pedindo que eu
acredite e ainda por cima que vá com você?

- Se você se despedir de mim agora, pode ser que a gente nunca mais se veja.

- Isso é uma ameaça, Ramón?

- Não, Renata, eu já disse - ele fala, exasperado. - É uma constatação.

- Onde você está?

- Na casa de um amigo. Você ainda mora no mesmo apartamento?

- Moro.

- Posso te ligar amanhã de manhã?

- Pode.

Os últimos minutos apagaram o fogo de Renata. Tudo o que ela quer agora é ir embora. Chama o garçom, paga a conta e sai apressada. Ramón vai com ela até o ponto de ônibus.

Os quinze minutos que a separam do Humaitá não são suficientes para tantos pensamentos. A surpresa de rever o homem que ela tanto amou só não é maior que o pasmo por tudo o que ele lhe disse. Ela não quer, mas tudo o que lhe vem à cabeça nesse instante é uma notícia que ela soube nos tempos de faculdade, de uma colega cujo noivo era tão ciumento que um dia, após uma briga, tentou estrangulá-la. Ramón nunca teve tanto ciúme assim, mas Renata sabe que ele não é mais o mesmo de antigamente. Ela não custou tanto a superar seu abandono na porta da igreja para acabar como essa colega da faculdade.


O telefone toca às sete da manhã. Sonolenta, Renata se levanta, vai até o corredor e atende.

- Renata? Sou eu, Ramón.

A realidade a desperta na hora.

- Oi, Ramón.

- Podemos nos ver?

- Agora? - sente um frio na barriga.

- É muito importante, Renata.

Ela suspira. - Tudo bem. Onde?

- Estou aqui no Largo dos Leões.

Meu Deus, ela pensa. Ele está obcecado.


- Que bom que você veio - ele diz ao vê-la chegar. Tenta esboçar um sorriso, mas Renata sente a tensão.

- Vamos recapitular uma coisa, Ramón - diz ela, lembrando que nessas horas é melhor não discutir nem discordar. - Se eu for com você, não haverá volta, certo?

- Até onde eu sei, não há.

- E provavelmente vamos para muitos anos no futuro.

- Exato. - Ele morde o lábio inferior, preocupado. - Está com medo?

- Estou.

- Eu também.

Mas ele abre um sorriso de orelha a orelha. Estende a mão para Renata. Ela aceita.

Caminham durante horas, quase em absoluto silêncio.

Descem a Rua Humaitá na direção do Jardim Botânico, percorrem as ruas transversais à Lagoa, esperando que algo aconteça. Ramón consulta sem parar o relógio. Propõe para Renata irem ao Parque Lage, mas ela recusa. O Parque tem estado abandonado ultimamente, e ela não quer ficar sozinha com Ramón.

Compaixão tem limite. E paciência também. Ao final da tarde, voltando ao Humaitá, quem consulta o relógio é Renata.

Maurício já deve estar puto com ela. Eles haviam combinado ir ao cinema e depois a um bar com amigos. Ela quer ajudar Ramón, mas não quer arriscar um segundo noivado por causa dele. - Vamos ter que deixar isso para outro dia - ela diz com suavidade, tentando tranqüilizá-lo.

- Não, Renata, não dá - ele argumenta, a voz cansada porém firme. - Meu prazo está se esgotando. Eu posso ir a qualquer momento.

- Não digo eu - ela diz, soltando a mão dele.

- Como? - pergunta.

- Ramón, não vou ficar pra cima e pra baixo com você todo dia pra tentar provar uma coisa impossível. O que houve com você nesses últimos anos? A quem você está querendo enganar?

- Renata, pelo amor de Deus - ele diz, a voz embargada. - Não desiste. Fica comigo mais um pouco, eu vou te provar tudo.

- Não! - ela quase grita, mas já é o suficiente para chamar a atenção de todo mundo ao redor. Não é muita gente, mas as poucas pessoas que passam pelo Largo dos Leões viram a cabeça para ver o barraco. - Por favor, Ramón, me deixa. Eu estou noiva, e não quero perder esse casamento por sua causa. - Ela sobe pela Alfredo Chaves, confusa, envergonhada, cansada. Ouve os gritos de Ramón, esganiçados, nervosos. Penalizada, ela se vira uma vez para vê-lo.

E quase não há tempo.

No exato instante em que Renata bate os olhos na figura ofegante de Ramón, ela passa imediatamente a crer em tudo o que lhe foi dito pelo noivo fugitivo. Porque é como se o espaço
à frente de Ramón se dobrasse como um origami, se amassasse como uma folha de jornal, e ele fosse sugado para dentro dessa ruptura. Os gritos de Ramón são cortados ao meio, e por um
instante Renata pensa tudo: ele morreu, ele foi seqüestrado por discos voadores, ele realmente foi para o futuro, eu enlouqueci.

Renata não desmaia. Não tem a menor vocação para perder os sentidos em situações-limite. Mas gostaria de ter. Porque ela vai passar os próximos dias sem dormir, e seu sono nunca mais será o mesmo.

1996

O murmúrio no interior da sala de aula já virou um burburinho a essa altura. Renata volta com um copinho de café numa das mãos e um cigarro aceso noutra, o terceiro desde o começo da aula, há vinte minutos. Renata não consegue ficar na sala por muito tempo. Ser a professora não ajuda em nada, pelo contrário; foi preciso muito jogo de cintura ao longo dos anos para poder entrar e sair sem prejudicar a turma nem fazer com que o dono da faculdade ameaçasse demiti-la.

Renata é um feixe de nervos. Não pára quieta com a cabeça um instante: olha para os lados sem parar, como se estivesse à procura de alguma coisa, ou melhor, como se achasse que algo pulará à sua frente a qualquer momento, vindo do nada. Para Renata, o mundo não é mais o que costumava ser.

Ela retorna à sala.

- Vocês leram o texto? - ela pergunta da porta mesmo.

Dos vinte e dois alunos, apenas sete respondem que sim. Olhando o livro de Borges em cima da mesa, ela solta o ar ruidosamente pela boca, mais cansada que desapontada. Quando Renata começou a lecionar, seu entusiasmo era tão grande que ela fazia de tudo para conseguir que os alunos lessem e discutissem o texto. Hoje ela percebe que todo esse esforço foi em vão.

Como tudo em sua vida, aliás. A única coisa que Renata conseguiu completar na vida foi a faculdade de Comunicação. A mulher magra e nervosa que entra ligeira no carro também
não pára quieta em relacionamentos. O segundo noivado não resistiu às crises sucessivas de Renata em janeiro de 1986. Ninguém entendeu por quê, e Renata precisou se refugiar na
casa de uma amiga no interior do estado para que os pais não a internassem num sanatório.

Hoje Renata mora só. Ela e Deus, dizem uns. Mas para ela este último inquilino sumiu há muito tempo.

Ela vira a chave e o motor pega. Do lado de fora, a garoa que cai firme reduz sua visibilidade. Um homem passa apressado por trás do carro. Assustada, ela confere as janelas do carro: todas fechadas. Pisa no acelerador.

E então o rosto do homem se nivela com o vidro do lado do carona.

- Renata, pelo amor de Deus - pede Ramón.

Ela freia. Não tem outra alternativa: seu corpo treme da cabeça aos pés. Não consegue respirar; abre de sopetão a porta do carro e salta. A chuva que cai no seu rosto é a prova de que o que restou de sua sanidade ainda está no lugar.

Ramón corre para Renata. Ela abre os braços. O abraço é como um choque elétrico.

- Meu Deus, meu Deus - ele diz, a cara enterrada no ombro dela. - Como as coisas mudaram!

- Você já sabe... - ela começa.

- Não, não! - ele quase grita na cara dela. Seu rosto dói. - Não me conte nada! Vim direto. - E, como se lembrasse de seguir um manual de etiqueta: - Mas soube dos seus pais. Sinto muito.

- Você está bem? Chegou quando?

- Há duas horas. Foi o tempo de descobrir onde você estava.
-
Você veio direto? - ela pergunta, mas antes da resposta ela olha melhor as roupas dele: são as mesmas daquela tarde no Humaitá há dez anos.

- Renata, eu não agüento mais - ele diz, ameaçando chorar. - Me ajuda, pelo amor de Deus!

Renata chora sem parar. Como se tivesse vivido todos esses últimos anos integralmente, sem parar, Ramón se deixa vencer pelo cansaço. Desaba no chão.

- Me dê a mão, Renata - Ramón implora, a voz num fiapo.

As pernas de Renata tremem. O rapaz sentado no chão ao seu lado subitamente parece mais velho que ela, e Renata aparenta bem mais que os seus trinta e nove anos.

Renata estende a mão.

- Vamos - ela diz baixinho.

?

À primeira vista, nada mudou. O ponto de transição, como Ramón lhe explicou, é o mesmo: o
deslocamento não ocorre no espaço. Para Renata, não ocorreu absolutamente nada.

- O que você sentiu no instante em que sumiu na minha frente? - é a primeira coisa que lhe ocorre dizer.

- Nada - responde Ramón, olhando para os lados. - Num instante você estava lá, olhando para mim assustada, e no outro não estava.

- E o que vamos fazer agora? - pergunta Renata.

- Saber quando estamos - ele responde.

Então Renata também começa a olhar ao seu redor. As cores das casas estão diferentes: estão mais alegres, mais berrantes, mais díspares, como bandeirinhas de Volpi. O futuro parece bom, ela pensa.

Ao descerem a rua, não mudou muita coisa. Um colégio que antes ficava perto da praça agora virou um canteiro de obras; os operários ainda continuam trabalhando da mesma forma, com as mãos e sem equipamento sofisticado de proteção.

De mãos dadas, eles chegam a uma banca de jornais. A banca é maior, maior que os “aquários” de 96; é quase uma drugstore, mas nada que assuste.

Eles entram. Os jornais continuam de papel, e as revistas atulham todo o espaço, agora também com vários notebooks espalhados pela banca, exibindo jornais multimídia.

Renata está fascinada. Tão fascinada que nem percebe o bando que entra logo em seguida e assalta a jornaleira.

Mas o estrondo dos tiros ainda é o mesmo.

Todos gritam e se atiram ao chão. Renata faz o mesmo, e bate com o nariz em alguma coisa metálica. Por um momento sua mente desorientada pensa que foi um tiro, e que ela vai morrer. Mas nada acontece. Os gritos e as pessoas se levantando avisam para Renata que os ladrões já foram embora. A jornaleira diz a um policial alguma coisa sobre refugiados de Ruanda.

E então Renata vê Ramón. Caído no chão, uma mancha de sangue começando a se espalhar pelas costas da blusa branca.

Imóvel.

O último grito é dela.

? + 10

O murmúrio nas ruas já virou um burburinho a esta altura. Nas ruas, as pessoas andam de um lado para o outro, cabeças baixas na chuva. Entre elas, uma mulher anda para um lado, para o outro, em círculos, ziguezague; às vezes corre, às vezes pára. Ninguém mais olha para ela; todos já estão acostumados, ela está aí há anos, não faz mal a ninguém. Às vezes ela fala para o vento, ou solta um grito angustiado, mas o conteúdo é sempre o mesmo: ela chama um nome com o qual há muitos anos ninguém mais é batizado. Vive no passado, coitada, dizem os passantes.

Este texto faz parte da coletânea Interface com o vampiro e outras histórias, que pode ser adquirida gratuitamente aqui.

6 comentários:

tibor disse...

Esse conto do Fábio é ma-ra-vi-lho-so. Já o tinha lido antes, mas foi bom relê-lo todo.

Romeu Martins disse...

Concordo, Tibor. É um conto fantástico em qualquer concepção do termo.

Helena disse...

Realmente, é um conto incrível, tem uma angústia e uma tensão constante mantendo acesa a curiosidade do leitor.

O final é terrível mas apropriado para o todo o clima do texto. Maravilha. Parabéns Fabio e Romeu or ter republicado.

beijão,

merrel

Romeu Martins disse...

E a você por sempre nos prestigiar, merrel.

Beijões

Octavio Aragão disse...

Se este não é o melhor conto do Fábio, é porque o melhor ainda virá.

Anônimo disse...

Essa mulher enlouquecida, vivendo no passado, nunca mais saiu da minha cabeça.

Ibope