16.12.08

Taikodom: o primeiro livro

Hoje foi publicada no Overmundo uma resenha minha sobre o livro Taikodom: Despertar, romance que marca a estréia do universo ficcional, criado por Gerson Lodi-Ribeiro, para o game on line que está sendo produzido aqui em Santa Catarina.

Abaixo segue o primeiro páragrafo do texto que pode ser lido aqui e brevemente em meu outro blog:

No dia 15 de outubro de 2003 uma nova palavra entrou de vez para o vocabulário e para o imaginário dos que se interessam por temáticas espaciais. Naquela data, ao orbitar a Terra a bordo da nave Shenzhou 5 Yang Liwei, um chinês de 38 anos, se tornou o primeiro taikonauta da história, o nome que as autoridades de seu país escolheram para o mesmo profissional que, em tempos de guerra fria, foi chamado de astronauta pelos americanos e de cosmonauta pelos russos. O prefixo utilizado para diferenciar a conquista chinesa daquela feita pelos rivais históricos décadas atrás – derivado de “taikong”, espaço em mandarim – serviu de inspiração para batizar a mais ousada e ambiciosa iniciativa multimídia ligada à ficção científica no Brasil. Seu lançamento oficial ocorreu exatamente meia década depois da longa marcha espacial de Yang Liwei: foi em 27 de outubro deste ano que a empresa catarinense Hoplon Infotainment apresentou ao público o game on-line Taikodom, um produto que passou justamente os últimos quatro anos e meio em desenvolvimento, consumiu investimentos na ordem de R$ 15 milhões e será o mote de vários outros meios nos quais se contarão histórias sobre o Domínio do Espaço. O primeiro deles foi lançado em outubro em São Paulo, juntamente com o game, e também no início de dezembro, em Florianópolis, e é o motivo desta resenha, o romance Taikodom: Despertar, editado pela Devir e escrito por João Marcelo Beraldo.


A capa, que pode ser vista ali em cima, foi criada pelo jornalista, artista gráfico e meu amigo Ivan Jerônimo.

FC na TV

No dia primeiro de outubro um trio de escritores de Ficção Científica, quase todos colaboradores deste blog, foi entrevistado pelo programa Atitude.com da TV Brasil, antiga TVE. Ana Cristina Rodrigues, Clinton Davisson e Mariana Gouvin participaram ao longo de quase uma hora respondendo perguntas da apresentadora e de telespectadores sobre a literatura e o cinema do gênero. O resultado demorou a cair na rede mas agora tá lá, no Youtube. A primeira parte (de quatro) pode ser vista aqui. As demais estão na listinha ali do lado direito da tela.

Meme pró-FC

A convocação foi feita pelo Fábio Fernandes seguindo o conceito original de John Ottinger. O objetivo é criar uma lista colaborativa de sites e blogs especializados em resenhas de obras de ficção fantástica. A explicação abaixo é de Mr. Ottinger em tradução do Fábio:

Minha lista de resenhistas de livros de FC e fantasia está terrivelmente desatualizada. Preciso da ajuda de vocês para me ajudar a corrigir isso. Mas em vez de passar por todo o trabalho de vocês me enviarem recomendações ou postá-las nos comentários, o que vocês podem fazer é pegar a lista abaixo e copiá-la para seus websites, adicionando sua URL à lista, de preferência mantendo a ordem alfabética. Assim, eu serei capaz de rastreá-la pela web e adicionar cada novo blog ao meu blogroll à medida que ela for aumentando. Então peguem esta lista, adicionem-a aos seus blogs e adicionem um link sobre ela. Se vocês já estiverem na lista, repostem este meme nos seus blogs para que outros possam vê-la, e descubram novos blogs a partir dos links que outros colocarem nos blogs deles. Assim todo mundo sai ganhando! Não esqueça de enviar a lista para outras pessoas também.
Como esta me pareceu uma ótima idéia, reproduzo a lista que consta no Pós-Estranho acrescentando a ela o endereço do meu outro blog, o Ponto de Convergência, no qual republico resenhas e entrevistas que escrevo originalmente para o Overmundo. Estamos linkados ali na seção dedicada aos Brazilian, Portuguese.

Aqui vai:

7 Foot Shelves
The Accidental Bard
A Boy Goes on a Journey
A Dribble Of Ink
A Hoyden's Look at Literature
Adventures in Reading
The Agony Column
Andromeda Spaceways
The Antick Musings of G.B.H. Hornswoggler, Gent.
Ask Daphne
Australia Specfic in Focus
Author 2 Author
Barbara Martin
Bees (and Books) on the Knob
Bibliophile Stalker
Bibliosnark
BillWardWriter.com
Bitten by Books
The Black Library Blog
Blog, Jvstin Style
Blood of the Muse
The Book Bind
Bookgeeks
Bookslut
The Book Smugglers
Bookspotcentral
The Book Swede
Bookrastination
Breeni Books
Cheaper Ironies [pro columnist]
Cheryl's Musings
Critical Mass
Damien G. Walter
Danger Gal
Dark Wolf Fantasy Reviews
Darque Reviews
Dave Brendon's Fantasy and Sci-Fi Weblog
Dear Author
The Deckled Edge
Dragons, Heroes and Wizards
The Discriminating Fangirl
Dusk Before the Dawn
Enter the Octopus
Eve's Alexandria
Fantastic Reviews
Fantastic Reviews Blog
Fantasy Book Critic
Fantasy Cafe
Fantasy Debut
Fantasy Book Reviews and News
Fantasy and Sci-fi Lovin' Blog
Feminist SF - The Blog!
The Fix
The Foghorn Review
Frances Writes
From a Sci-Fi Standpoint
Fruitless Recursion
The Galaxy Express
Galleycat
The Gamer Rat
Genre Reviews
Graeme's Fantasy Book Review
Grasping for the Wind
The Green Man Review
Hasenpfeffer
Highlander's Book Reviews
Horrorscope
The Hub Magazine
Ink and Keys
io9
Jumpdrives and Cantrips
Lair of the Undead Rat
League of Reluctant Adults
Literary Escapism
Michele Lee's Book Love
The Mistress of Ancient Revelry
MIT Science Fiction Society
Monster Librarian
More Words, Deeper Hole
Mostly Harmless Books
My Favourite Books
Neth Space
The New Book Review
NextRead
OF Blog of the Fallen
The Old Bat's Belfry
Outside of a Dog
Paranormality
Pat's Fantasy Hotlist
Piaw's Blog
Post-Weird Thoughts
Publisher's Weekly
Reading the Leaves
Realms of Speculative Fiction
Reviewer X
Rob's Blog o' Stuff
Robots and Vamps
Sandstorm Reviews
ScifiChick
Sci Fi Wire
SciFiGuy
Sci-Fi Fan Letter
Sci-Fi Songs [Musical Reviews]
The Sequential Rat
Severian's Fantastic Worlds
SF Diplomat
SF Gospel
SF Reviews.net
SF Revu
SF Signal
SF Site
SFF World's Book Reviews
Silver Reviews
The Specusphere
Spinebreakers
Smart Bitches, Trashy Books
Speculative Fiction
Speculative Fiction Junkie
Speculative Horizons
Spiral Galaxy Reviews
Spontaneous Derivation
Sporadic Book Reviews
Stella Matutina
The Sudden Curve
The Sword Review
Tangent Online
Tehani Wessely
Temple Library Reviews
Tor.com [also a publisher]
The Road Not Taken
Un:Bound
Urban Fantasy Land
Vast and Cool and Unsympathetic
Variety SF
Walker of Worlds
Wands and Worlds
The Wertzone
With Intent to Commit Horror
WJ Fantasy Reviews
The World in a Satin Bag
WriteBlack
Young Adult Science Fiction

Foreign Language (other than English)
Cititor SF [Romanian, but with English Translation]

Elbakin.net [French]

Foundation of Krantas [Chinese (traditional)]
The SF Commonwealth Office in Taiwan [Chinese (traditional) with some English essays]
Yenchin's Lair [Chinese (traditional)]

Fernando Trevisan [Brazilian, Portuguese]

Human 2.0 [Brazilian, Portuguese]

Life and Times of a Talkative Bookworm [Brazilian, Portuguese]

Ponto de Convergência [Brazilian, Portuguese]

pós-estranho [Brazilian, Portuguese]

Fantasy Seiten [German, Deustche]
Fantasy Buch [German, Deustche]
Literaturschock [German, Deustche]
Welt der fantasy [German, Deustche]
Bibliotheka Phantastika [German, Deustche]
SF Basar [German, Deustche]
Phantastick News [German, Deustche]
X-zine [German, Deustche]
Buchwum [German, Deustche]
Phantastick Couch [German, Deustche]
Wetterspitze [German, Deustche]
Fantasy News [German, Deustche]
Fantasy Faszination [German, Deustche]
Fantasy Guide [German, Deustche]
Zwergen Reich [German, Deustche]
Fiction Fantasy [German, Deustche]

1.12.08

Cidadão Wayne

O que aconteceria se Orson Welles

tivesse dirigido um filme do Batman?

Por Romeu Martins


No último dia 30 de outubro, uma transmissão de rádio que entrou para a história completou 70 anos. Foi em 1938 que um então jovem radialista da rede americana CBS resolveu adaptar para um formato de falsos boletins noticiosos o clássico de ficção científica A Guerra dos Mundos, de H.G. Wells. O ritmo do comunicador aumentava conforme se desenrolavam os relatos de uma invasão marciana envolvendo várias naves espaciais. Acostumados a se informar por aquela que era a principal mídia da época, cerca de um milhão de nova-iorquinos acreditaram que a história era real e entraram em pânico, alguns saindo em correria pelas ruas, outros se protegendo de gases venenosos com toalhas enroladas na cabeça. Aqueles programetes viraram alvos de estudos sobre o poder da imprensa, podem ser considerados o marco inicial das onipresentes pegadinhas e projetaram à fama o tal jovem radialista, um certo Orson Welles que apenas três anos depois voltaria às páginas da história ao escrever, dirigir e protagonizar Cidadão Kane, o filme considerado pela crítica como o melhor de todos os tempos.

Provavelmente foi inspirado nessa tradição de criar fatos a partir do cruzamento entre a ficção e a realidade que o roteirista Mark Millar (autor da série Ultimate dos Vingadores) invocou o nome de Orson Welles para agitar o mundo dos fãs de HQs e de cinema ao imaginar como seria um filme do Batman realizado pelo mitológico diretor.

Se Millar tivesse feito um simples texto com suposições a esse respeito talvez até alcançasse alguma repercussão, mas ele optou por explorar outro caminho na coluna que assinou no dia 26 de setembro no site Comic Book Resources. O autor afirmou que teria recebido com exclusividade parte do material de pesquisa para uma biografia de Welles que comprovaria o empenho do diretor para fazer tal adaptação em 1946. O livro seria escrito por um certo Lionel Hutton, supostamente crítico e historiador de cinema, que pesquisando o espólio de Welles descobrira notas de produção, cartas de confirmação do elenco, esboço de roteiro... O texto de Millar é terrivelmente convincente. Mas, provavelmente de propósito, deixava pistas de que tudo não passava de um trote. A maior delas envolve o Charada, vilão de Batman famoso por justamente sempre deixar dicas de como resolver seus crimes: Millar afirmava que esse personagem faria parte do filme de 1946, mas ele só foi criado três anos depois daquela data.

As supostas revelações de Millar provocaram alvoroço. É verdade que seria exagero comparar à movimentação causada pelos marcianos de Wells e Welles dos anos 30, mas que o colunista conseguiu agitar o modorrento cenário que estávamos atravessando, isso conseguiu. Quem acompanha essa história desde o início esperava que o ponto alto acontecesse na coluna seguinte de Millar, anunciada para o dia 3 de outubro. Só que no lugar de um texto assumindo o engodo e revelando as reais intenções, havia apenas um aviso: o autor deve voltar a escrever naquele espaço dentro de algumas semanas. Sem fazer especulações dos objetivos do autor, vamos ver um breve resumo com as “informações” do já polêmico texto “Orson Welles and Bat-man” para entender porque esse possivelmente é o melhor roteiro já criado por Mark Millar e, na tradição do velho Vigia, pensar no que aconteceria se tudo não passasse de uma pegadinha.

DESENHO DE PRODUÇÃO

”Muitos dos desenhos de produção que Orson Welles encomendou a Gregg Toland estão em notas e elas farão você sentir um arrepio na coluna assim que puder vê-las”, testemunhou o colunista. Vale lembrar que Gregg Toland é o mesmo cinegrafista responsável por várias das inovações técnicas de Cidadão Kane. Mark Millar dizia não poder revelar muitos detalhes para não estragar surpresas do livro de seu amigo Lionel Hutton, mas dava uma canja com um desenho bastante fiel ao conceito visual original do personagem criado por Bob Kane e Bill Finger em 1939.

ROTEIRO

Millar informa que Welles tinha planos bem ousados para a produção. Em supostas anotações do próprio diretor sobre o projeto Batman, teria sido registrada a pretensão de fazer do filme uma “experiência cinematográfica, um caleidoscópio de heroísmo e pesadelos jamais vistos antes, salvo no subconsciente de Goya e de Hawksmoor”. Esses dois citados são o pintor espanhol Francisco de Goya e o arquiteto inglês Nicholas Hawksmoor, referências expressionistas e góticas perfeitas para um filme sobre o Cavaleiro das Trevas. Mais para frente, Welles teria dito ainda que a intenção era fazer do filme um “psico-drama adulto” combinado com o nível de emoção e excitação dos seriados que passavam nas matinês de sábado nos EUA. Para tocar tudo isso, Welles queria imprimir “um estilo totalmente novo de dinâmica de direção como nunca havia sido visto no cinema americano”.

Mais detalhes da trama do filme estariam em 36 páginas de tratamento inicial do projeto, todas elas encontradas pelo tal Hutton. As pistas indicariam que a fita começaria de modo clássico, com a morte dos pais do jovem Bruce Wayne (uma curiosidade aqui: o nome da mãe do personagem que mais tarde se tornaria o vigilante Batman foi modificado de Martha para Mary Wayne. Quer coisa mais típica de produção cinematográfica que fazer alterações desse tipo?). A conclusão da história seria uma cena de luta com o protagonista, sem a máscara, lutando contra Coringa, Duas-Caras, Charada e Mulher Gato em uma prisão rebelada.

ELENCO

Para interpretar todos esses personagens o diretor escalaria um elenco estelar. O Coringa seria vivido pelo britânico Basil Rathbone, notório vilão de filmes de ação como As Aventuras de Robin Hood, de 1938, e A Marca do Zorro (aqui é impossível deixar de registrar uma das coincidências do texto: em uma das muitas revisões bibliográficas de Batman, ficou estabelecido que os pais do personagem foram assassinados justamente quando a família foi assistir a esse filme, de 1940). Quem viveria o anacrônico Charada seria James Cagney, astro de fitas policiais, a mais conhecida é Inimigo Público, de 1931. Para o Duas-Caras, com a recusa de Humphrey Bogart para o papel, foi escalado George Raft, marcado pelo envolvimento com gângsteres na vida real e por interpretá-los no cinema em filmes como Scarface, de 1932, e Quanto Mais Quente Melhor, de 1942. A Mulher Gato seria vivida por ninguém menos que Marlene Dietrich, mundialmente conhecida por seu papel em Anjo Azul, de 1930.

Mas a grande confusão que teria acabado com as chances do filme foi a briga em torno da escolha do ator para fazer o papel de Bruce Wayne/Batman. Welles queria aquele que provavelmente era seu ator favorito: ele próprio. Por algum motivo, os sempre inconvenientes produtores não gostaram da idéia e faziam questão de chamar Gregory Peck, recém-falecido na época da publicação do texto de Millar e um novato na década de 40. Na trama elaborada por Millar, eles chegaram a sugerir a Welles que caso ele quisesse mesmo participar no filme, que trocasse de lugar com Rathbone para viver o Coringa. O diretor teria ficado furioso com a interferência, largou o projeto que teria consumido cerca de oito meses de trabalho e, com isso, nesse universo paralelo, Batman entrou para o rol de seus trabalhos inacabados (assim como aquele lendário filme que se passaria no Brasil).

O QUE PODERIA TER SIDO

Tirando essa parte final, tudo ia tão bem que de fato era difícil acreditar nessas informações... A noção de “psico-drama adulto” teria sido uma atitude visionária, que anteciparia em pelo menos 40 anos o tratamento mais bem acabado do personagem. Na verdade, Batman só ganharia de fato uma marca digna dessa definição nos anos 80, a partir da reformulação que autores como o americano Frank Miller (O Cavaleiro das Trevas e Ano UM) e os britâncios Alan Moore (A Piada Mortal) e Grant Morrison (Asilo Arkham) fizeram em cima do trabalho pioneiro de Denny O´Neil no fim da década de 60. Quanto às pistas disponíveis a todo o resto, do visual dos personagens até a escolha dos autores, aparentemente servem como aula aos responsáveis pela atual onda de adaptações de quadrinhos, isso para não falar nas obras de safras anteriores. Isso, obviamente, inclui a seqüência de quatro produções da qual o próprio Batman foi vítima nas mãos de Tim Burton e Joel Schumacher. Millar daria um excelente consultor para Hollywood, concordam?

O que mais impressiona nessa idéia do colunista é o timing perfeito para que a tal produção, caso viesse mesmo às telas, pudesse realmente redefinir rumos e conceitos. Primeiro no cinema, que ainda vivia um momento de portas abertas para fitas de qualidade; não havia sido feita até então a escolha que marcou os anos 70 e 90 (com uma folga curta na geração dos 80) para que praticamente tudo o que se produzisse em um grande estúdio fosse feito mirando em adolescentes com pobrema no célebro.

Mas seria, com toda certeza, nos quadrinhos que este pretenso filme do Batman dos anos 40 teria maior potencial para modificar o mundo como o conhecemos hoje. Até a metade daquela década, essa mídia, mais notadamente o gênero de super-heróis, vivia sua fase mais popular. Se hoje um sucesso de vendas é medido em tiragem de algumas dezenas de milhares, naqueles tempos as cifras eram milhões de exemplares. Na década seguinte o gênero cairia em desgraça, virando alvo de gozação do público pós-guerra e de patrulhamento de autoridades preocupadas com o poder subversivo daquele meio. O resultado é que tais HQs passaram por um ciclo de auto-censura, perda de qualidade e queda nas vendas que só seria revista muito, muito lenta, no meio dos anos 60. Só que ai já era tarde. O encanto dos primeiros dias já havia se perdido.

Com o aval de uma pessoa como Orson Welles essa história de coito interrompido poderia ter sido bem diferente. Vale lembrar que ele nunca foi um sucesso garantido de público, mas desde sempre seu nome é apontado como o mais influente dos diretores. Dessa forma, os quadrinhos teriam recebido o impulso que faltou para alcançarem o status de seus co-irmãos, o crime, o suspense, a ficção científica. Todos esses gêneros também nasceram meio marginalizados, mas em algum momento de suas histórias, ao contrário das HQs, tiveram uma chance de redenção, seja no cinema, seja na literatura. O gênero poderia assim ter deixado de ser refém de um gueto de nerds (aquele tipo de gente que liga para sua casa sábado de manhã para repassar todas as novidades da semana), mudando o modo como o público pós-guerra passou a encarar essas revistas. Poderia ainda ter levado outros diretores renomados a realizar suas próprias adaptações: Millar encerra seu texto imaginando um possível filme do Capitão América feito por John Ford, mas por que não ir mais longe? Como seria um Super-Homem de Stanley Kubrick? Um Surfista Prateado de Ingmar Bergman? Um Mandrake de Federico Fellini? Um Homem-Aranha de Woody Allen? Uma Mulher-Maravilha de Dorothy Azner? Um Dr. Estranho de Roman Polanski? Um...

Este texto foi publicado originalmente no site Omelete como parte de um especial sobre os 65 anos da transmissão radiofônica de A guerra dos mundos. Republiquei aqui para atualizar a efeméride para os 70 anos e porque descobri no Youtube dois vídeos que simulam trailers do batfilme dirigido por Welles. A primeira parte pode ser vista aqui e a segunda neste endereço.


26.11.08

Sem conspirações


Amigos, este é um texto sobre um assunto muito sério.


O primeiro conto publicado neste blog, chamado "A teoria na prática", não se passa na capital de Santa Catarina à toa. É aqui que eu moro, é daqui que eu escrevo. Por um acúmulo de circunstâncias meteorológicas, geográficas e muita, mas muita, incompetência política - nas esferas municipal, estadual e federal - o estado inteiro está sofrendo com uma tragédia anunciada.

As chuvas deixaram dezenas de mortos e milhares de desabrigados em diversos municípios catarinenses. Se eu der números aqui, infelizmente, logo eles devem estar desatualizados.

Em momentos trágicos como este, sem demagogia, quando podemos fazer algo para ajudar o próximo tornamos nossa realidade um pouco melhor.

A Defesa Civil de Santa Catarina abriu contas em três bancos para quem puder dar sua contribuição às vítimas das cheias:


Banco do Brasil – Agência 3582-3, Conta Corrente 80.000-7

Besc – Agência 068-0, Conta Corrente 80.000-0

BRADESCO - 237 Agência 0348-4, Conta Corrente 160.000-1


O nome da pessoa jurídica é Fundo Estadual da Defesa Civil.
CNPJ - 04.426.883/0001-57.


Quem puder dar alguma ajuda a essas pessoas, saiba que isso pode fazer a diferença de verdade.

Recomendo também este blog para quem estiver interessado em acompanhar notícias sobre a catástrofe político-ambiental que nos atinge.

Obrigado a todos pela atenção e tempos melhores para todos nós.

24.11.08

Sobre os 50 contos e agradecimentos múltiplos

O texto do antepenúltimo post representa uma marca e tanto para este blog. Com ele, completamos 50 textos de ficção publicados por aqui de nada menos que 23 autores diferentes. Tirando desta lista Machado de Assis, que não teve a oportunidade de se opor à minha apropriação de “A Igreja do Diabo” – a exemplo do que ocorreu com Paulo Leminski e o haikai que serve de mote a esta página –, todos os demais participantes cederam voluntariamente seus textos à minha edição.

Como fazem no cinema, vou creditar essas pessoas pela ordem de surgimento no TerrorCon e dar-lhes o devido agradecimento:


Ludimila Hashimoto

Rafael Monteiro

Horacio Corral

Jessie Spiner

Clinton Davisson

Leonardo Siviotti

Maria Helena Bandeira

Rodolfo Londero

Ana Cristina Rodrigues (e digníssimo esposo, Estevão Ribeiro, pela ilustra)

Alexandre Lancaster

Fábio Fernandes

Cristina Lasaitis

Tibor Moricz

Ataíde Tartari

Carlos Orsi

Camila Fernandes

Rita Maria Felix da Silva

Richard Diegues

Octavio Aragão

Flávio Moutinho

Lúcio Manfredi


Desses todos eu ainda destaco três, Ludimila Hashimoto, Rafael Monteiro e Alexandre Lancaster por me terem dado a honra e o prazer de ler textos escritos especialmente dentro do contexto do grupo que dá nome a este blog.

Um outro agradecimento vai para aquele que é, muito provavelmente, o único ser humano além de mim a ter lido todos os textos aqui publicados, os de ficção ou não, ainda ter se dedicado a resenhá-los em sua página pessoal e, como se não fosse suficiente, ter me permitido compilar suas impressões em postagens aqui, Fernando S. Trevisan. No post logo abaixo deste, reuni suas resenhas produzidas até este momento. (Caso ele escreva sobre os textos que ainda não teve a oportunidade de ler, darei um upgrade ao tópico e apagarei estes parênteses).

Devo ainda um agradecimento especial a outras duas pessoas que estão me dando a felicidade realmente indescritível de adaptar contos que escrevi neste blog para outras mídias – espero poder dar novidades sobre isto logo – Laura Mayumi e André Aguiar.

Ufa! Fora essa multidão, agradeço ainda a quem leu, comentou, opinou, sugeriu, linkou ou simplesmente lurkou por aqui ao longo destes meses, desde o finalzinho de maio até agora, finalzinho de novembro.

Acho que com esta marca alcançada – meia centena de contos! É meio difícil de acreditar, ainda –, o melhor é dar um tempo para renovar o tesão da parte de quem edita, de quem escreve e de quem lê. Vamos dar um tempo esperando retomar o contato em breve.

A todos os citados um abraço e, por favor, continuem conspirando.

Outras Leituras do TerrorCon

A mais recente compilação de miniresenhas por Fernando S. Trevisan


Uma Arca para Marte - Uma história clássica reescrita

Por Flavio Moutinho
terrorcon.blogspot.com

Excelente, este conto do Flavio, recriando em ficção científica (new weird, talvez?) um clássico bíblico. Ironia e sarcasmo sutil além de humor inteligente, com uma prosa deliciosa de ler.

Os olhos de quem vê - Alguns flashes da próxima epidemia

Por Octavio Aragão
terrorcon.blogspot.com

Uma história de amor, morte e loucura em um futuro apocalíptico, bem escrita como sempre, no caso do Octavio, e com um gosto amargo no pós-leitura, o que é raro para as histórias dele.

O Criador e o Espírito - Uma história sobre finais trágicos

Por Rita Maria Felix da Silva
terrorcon.blogspot.com

Tenho certeza que já li - e já mini-resenhei - esse texto da Rita, mas não consegui achar, então aqui vai: inteligente, criativo, gostoso de ler e com o tamanho certo. Uma excelente alegoria de um criador tipicamente cristão mas com características humanas.

A gruta de vênus - Um exemplar sado-erótico escrito e ilustrado

Por Maria Helena Bandeira
terrorcon.blogspot.com

Em um ambiente surreal, algo proibido acontece, que não poderá ser esquecido... outro conto curto da MHell, com a mesma qualidade de estilo e escrita, desta vez misturando ficção científica e sexualidade. Bom!

Dezembro (dia 4, no Bardo Batata) marca um lançamento há muito anunciado: o livro Fome, de Tibor Moricz, pela Tarja. Elogiado por seu romance de estréia (Síndrome de Cérbero), o novo livro traz histórias de um mundo destruído, apocalíptico, onde a fome é catalizador do instinto de sobrevivência mais básico dos seres humanos restantes. Dando início à divulgação do lançamento, Romeu Martins publicou o prefácio escrito por ele, bem como republicou o conto de abertura, "O Caçador", que mini-resenhei antes e reproduzo aqui:

"Chocante, intenso e sangrento. Neste conto o Tibor consegue colocar diversos temas comumente tratados como tabu de forma crua e direta. A história prende, flui bem e tem um final condizente, infelizmente um pouco previsível, mas nada que realmente estrague o conto - minha opinião, é claro. O resultado final é instigante e estou ansioso para ler os demais contos no livro "Fome", que será lançado em breve pela Tarja, segundo o autor.

Um aviso: tenho certeza que muitos leitores sentem-se realmente chocados com algumas situações retratadas no texto; eu também fiquei desconfortável... mas não é realmente chocante para mim. O "universo" em que a história se passa permite isso, é algo comum aos personagens, um fato da vida. Mas, esteja avisado! Não é leitura para qualquer um, com certeza.
"

23.11.08

um melancólico coaxar


A busca pela magia perdida.
Por Rita Maria Felix da Silva

Genésio Rodopio crescera fascinado por magia, como, porém, ensinaram-lhe que esta não existia, contentou-se em ser, apenas, mágico.

Por um tempo, os truques de salão, as técnicas de ilusionismo e os aplausos de um público que apreciava ser enganado serviram para animá-lo, mas, dez anos naquele ofício enfastiaram-lhe a alma. Ansiava por magia, como nos livros e desenhos animados, como nos quadrinhos e filmes: vibrante e miraculosa; impossível e explosiva.

Dedicou-se, então, a estudar Ocultismo. Naquelas páginas e segredos, nos rituais, cerimônias e tomos antigos, buscava reencontrar a magia, que já habitara o mundo em alguma época e, assim pensava, ele poderia trazê-la de volta.

Seu espírito, todavia, descobriu somente frustração e recorrentes dores de cabeça que os médicos não souberam explicar. Afundou-se em remédios e bebidas e começou a errar os truques na hora do espetáculo.

Até que uma vez foi pior que todas. Confundiu-se ridicularmente e a platéia gargalhou tanto que lhe feriu a honra e a alma. A dor de cabeça voltou mais forte que nunca e algo estourou lá dentro. Dizem que vacilou, tremeu, balbuciando como se procurasse uma palavra, e então gritou algo terrível e antigo, do tipo que não deveria mais ser ouvido neste planeta...

Mais tarde, quando a polícia chegou para investigar acontecimento tão bizarro, encontrou apenas estátuas de uma perfeição artística invejável, conforme afirmaram os jornais da época, sentadas onde deveria estar a platéia daquele teatro. No palco, aninhado entre as roupas que pertenceram ao mágico Genésio Rodopio, podia-se ver um sapo de pele azulada, do tamanho de um punho humano fechado, de cujos olhos, assim ainda contam, saltava a maior tristeza imaginável e que coaxava melancolicamente.


FIM

Mãos de Borracha

Humor e erotismo no futuro.
Texto e arte por Maria Helena Bandeira

Mãos de Borracha levantou-se de seu esquife prateado, atendendo ao chamado do Mestre. Sua cliente da Nova Esplanada estava marcada para aquela tarde. Uma mulher estranha. Mãos de borracha não fora criado para julgar. Sua função era bem específica.

O Mestre lhe deu as coordenadas exatas, embora ele conhecesse o endereço - no bairro dos Novos-Ricos, rua dos Corruptos. Ignorava porque recebera este nome, já fazia muito tempo e Mãos de Borracha fora criado na época da Salvação, quando tudo se tornara informatizado e não havia mais como roubar, ou o que roubar, exceto tecnologia limpa. Mas era muito difícil burlar a hacker-segurança.

Ativando seu discriminador, subiu verticalmente acima dos prédios flutuantes e continuou sob as nuvens calmas, até avistar a Esplanada.

A mansão estava aberta a sua espera. Na sala uma jovem mulher nua e preparada. Mão de Borracha sentiu uma espécie de felicidade percorrer seus circuitos. Tinha orgulho do seu dom.

Dirigindo-se para a prancha onde a jovem aguardava, começou suavemente a massagear os pés. A técnica de Info Do In que usava era essencial para o relaxamento dos estressados membros da elite. Especialmente jovens esposas de executivos que manipulavam as complexas estruturas alimentadoras do Sistema. Desde que as mulheres voltaram ao Lar, não conseguiam se adaptar sem relaxamento especial. E Mãos era o mais solicitado dos massagistas.

Passou para as pernas e tocou os pontos delicadamente, conseguindo um profundo repouso.

De repente, suas mãos flexíveis começaram a se comportar estranhamente. Deixaram a conhecida massagem, passando a um ritual erótico de manipulação, toques estratégicos que faziam gemer a jovem senhora em um estado perigoso de excitação. Apavorado, perplexo, Mãos tentava controlar seus membros lascivos mas não conseguia. Enquanto, aterrorizado, inutilmente buscava se conter, aqueles dedos libidinosos continuavam sua caminhada pelo corpo nu e a paciente, cada vez mais enlouquecida, retorcia-se de gozo na prancha.

Finalmente a mulher parou, arquejante e as mãos repousaram.
Ela se levantou, olhos quebrados, pagou os créditos devidos e saiu.
Mãos de Borracha fiou parado, destruído, incapaz de raciocinar sobre o que acontecera, como seu programa fora invadido de forma tão perniciosa.

Na central de atendimento, o Mestre recebeu a ligação esperada:

- Funcionou perfeitamente. Podemos explorar o protótipo.

O massagista voltou para seu esquife. Colocou as mãos de borracha no desmaterializador de lixo e aguardou até que nada mais restasse de suas fibras enganadores.

Depois juntou os tocos dos braços sobre a barriga e dormiu dez anos.

Na Idade da Inocência, finalmente, foi reutilizado e programado pra ser cabeleireiro maquiador.

22.11.08

Ressaca

Sabedoria popular no espaço
Por Ana Cristina Rodrigues

Ai. Que puta ressaca. Misturar destilados hidrolíticos marcianos com licores da Nuvem de Magalhães não podia dar certo mesmo. Droga. Melhor pegar o cartão de ignição e sair dessa espelunca...

Opa, calma aí. Cadê meu cartão? Sem ele, não consigo dar a partida no meu velho XTR 450, modelo adaptado pro Sistema Solar. Será que eu perdi em algum canto? Bom, não vai ser difícil entrar sem ele, e lá dentro eu faço uma ligação direta na corrente de neutrinos azuis...

Pó, eu devo estar olhando a escotilha errada, só pode ser. Cadê a sucata que eu deixei ali, noite passada? Ah, droga. Meu cronômetro deve estar errado. Não podem ter passado 5 dias-padrão solar desde que eu cheguei aqui, e ele diz que foram 3 semanas!

Ih, não é meu cronômetro não. O da parede está marcando a mesma data.Ai, não; perdi a data da entrega da mercadoria. Quer dizer, acho que até a mercadoria eu perdi. Vamos recapitular aos poucos, se a cabeça não rachar no processo.

Peguei a carga de urânio ultra fino, coloquei no XTR e parti em direção ao sistema solar. Era uma encomenda para as usinas termo-nucleares de Marte. Só que, ao chegar na órbita de Júpiter, senti sede e resolvi parar.

Era o bar mais falado entre os carregadores de todo o braço inferior da Galáxia. Também, merecia. Bebida boa, comida farta, e companhia à vontade. Para todos os gostos e preferências, machos e fêmeas de todas as raças conhecidas. Foi ali, no salão principal do bar que eu a vi.

Todas as marcianas são maravilhosas – seleção genética apuradíssima dos colonos e dos fetos autorizados a completar a gestação – mas aquela ali era simplesmente divina. Pele negra como ébano, cabelos brancos até a cintura e olhos com a cor das nuvens de tempestade, veio em minha direção com um sorriso nos lábios perfeitos e um copo na mão.

O que foi que ela disse? Merda de dor de cabeça. Ah, ela veio com algum papo mole desses, elogiou meus dois tentáculos laterais ou coisa do tipo.Não lembro, só consigo sentir o gosto da bebida e ...Piranha, vadia, ela me dopou. Ela deve ter pego meu cartão de ignição, roubado minha nave e...

****

Os pensamentos do arcturiano foram interrompidos pela vozinha aguda de um insetóide.

- Senhor? Senhor? Com licença, ficamos felizes que tenha se recuperado. Parece que sua raça tem uma alergia especialmente forte a algumas bebidas do sistema solar. O senhor ficou em coma durante alguns dias. Sua nave foi colocada em uma vaga a parte, e seu cartão ficou conosco para sua maior segurança.

Com um resmungo, pegou o cartão e foi embora sem agradecer. Não viu o sorriso cínico da funcionária, e não reparou que estava sem seus dois tentáculos laterais, situados atrás dos braços.

Atrás do balcão da recepção, um cartaz piscava:

“Atenção, tentáculo e outras partes corporais dispensáveis de pessoas embriagadas serão consideradas sem proprietário legítimo”

20.11.08

À nossa imagem e semelhança

Por que tantos ETs humanóides na TV e no cinema?
Texto e ilustrações por Romeu Martins

Jack Cohen é um biólogo especializado em reprodução que se diverte criando imaginários seres alienígenas, levando em conta fatores como a influência da gravidade e a questão da adaptação em ambientes diferentes do nosso planeta. As versões que ele faz dos ETs são bem distintas daquelas que estamos acostumados a ver no cinema e na televisão. "Encontrar outro planeta com dinossauros ou pessoas iguais às da Terra é mais improvável do que encontrar uma ilhota do Pacífico cujos habitantes falem alemão fluentemente", escreveu Cohen para o semanário de divulgação cientifica New Scientist (no Brasil, o artigo foi traduzido e publicado pela Superinteressante, em 1992). Apesar do ceticismo científico e da crítica bem-humorada de Cohen, e apesar do fato de que as princiais apostas da Ciência em termos de alienígenas sejam simples bactérias e microorganismos, os alienígenas antropomórficos ainda são a maioria, tanto nos relatos supostamente reais quanto na ficção científica.

Isso acontece, até mesmo, no caso mais famoso em que esses dois extremos estão unidos. Estamos falando daquelas fitas que correram o mundo em 1995 mostrando o que seria a autópsia dos ETs do "Incidente Roswell". Esse é o nome pelo qual ficaram conhecidos os boatos de uma nave espacial que, muitos juram, teria caído nos EUA, no dia 4 de julho de 1947 (vários filmes fazem referência à história, os mais recentes são Independence Day e Caso Roswell, respectivamente de 1994 e de 1996). Por todo o mundo, especialistas em imagem garantiram que tais fitas são uma farsa e que os autopsiados são bonecos de borracha como aqueles dos seriados japoneses.

Mas o fato é que, sendo uma farsa ou não, os seres correspondiam à descrição da maioria dos relatos dos chamados contatos imediatos de terceiro grau (além de ser nome de filme de Steven Spielberg, o termo em jargão ufológico trata do encontro entre humanos e extraterrestres). Ou seja, eram humanóides atarracados, com cabeça e olhos enormes e a pele em um tom que vai do cinza ao verde. Dessa forma, chega-se a uma questão interessante: os filmes retratam as criaturas espaciais como seres antropomórficos para serem fiéis a tais relatos ou cada vez mais pessoas, influenciadas pelo que vêem no cinema e na TV, são levadas a crer na existência de homenzinhos verdes? Seria muito simplista dizer que os cineastas procuram ser realistas quando apresentam aliens em seus filmes, afinal essa é a explicação em poucos casos, por exemplo no telefilme Intruders, mas na maioria das vezes as razões são bem diferentes.

A mais famosa delas é a de que ETs infiltrados entre nós são a metáfora perfeita para tratar do medo que temos de quem pensa diferente. Os exemplos de filmes pós-II Guerra apresentando versões espaciais dos soviéticos são clássicos. Em Vampiros de almas (também conhecido por aqui como Os invasores de corpos), a história contada em flash-back mostra uma cidadezinha americana invadida por uma espécie de vagens das quais brotam clones perfeitos dos moradores. O ano era 1956, e bastava dormir para ser substituído por um desses invasores. As criaturas contam seus planos para o casal de mocinhos (Kevin McCarthy e Dana Wynter): criar uma sociedade "em que todos são iguais" e desprovidos de sentimentos como "amor, desejo, ambição, fé". Poderia haver uma melhor descrição da visão de um americano em relação aos comunistas, naqueles tempos de Guerra Fria? Mas é bom lembrar que o diretor, Don Siegel, sempre afirmava que na verdade estava fazendo uma caricatura de seres bem mais próximos da realidade dele: os produtores de cinema.

Exatamente 40 anos depois, A invasão, de David Twohy, utilizou o mesmo princípio para tratar de um novo inimigo dos EUA. É bem verdade que uma cena na qual um alienígena ataca o herói com uma foice faz lembrar do tempo dos comunistas do espaço, mas agora os invasores não são mais da cortina de ferro, do segundo mundo. São do terceiro. Estranhos seres montam bases nos países subdesenvolvidos ("onde não há leis rígidas de controle ambiental") para alterar a Terra, transformando-a em uma segunda versão do planeta deles. Os Ets, que já são antropomórficos por natureza, disfarçam-se de mexicanos, com as características étnicas dos descendentes dos astecas. Quando o mocinho (Charlie Sheen) conta para a namorada a história de aliens invasores, ela responde aproveitando-se do duplo sentido do termo em inglês: "É melhor que você esteja falando de imigrantes ilegais". Os novos invasores da América somos nós, "brazucas", "chicanos" e "cucarachas" em geral que não sabemos cuidar de nossos países e vamos para lá incomodar os coitados.

Outra questão que deve ser levada em conta são as implicações religiosas de ETs antropomórficos nos filmes. A visão de mundo ligada ao cristianismo diz que fomos criados à imagem e semelhança de Deus. Se existir vida fora da Terra, Ele deve ter usado a mesma lógica ao povoar outros planetas - dessa maneira, os alienígenas, e nós mesmos, seriamos todos seres teomorfos, certo? Dando um giro de 180 graus e analisando o caso pela ótica da "religião das ciências", os fatos são bem outros: segundo os positivistas, foi o homem quem criou a idéia de deus à sua semelhança, e não apenas Jeová, como todos os demais panteões, do hindu ao egípcio, são criações antropomórficas. E, em última análise, o que é o conceito de Deus além do de um ser de fora do planeta, ou seja, um extraterrestre?

Não se trata de fazer a defesa das idéias de Erich Von Daniken, o escritor de arqueologia fantástica que acredita na interferência direta de seres de outros planetas na Terra, cujos sinais de sua presença seriam os cultos de figuras míticas. Mas é inegável que o homem procura encontrar repesentações de si mesmo naquilo que escolhe para adorar ou para temer. É natural que se transfira essa analogia para as criaturas de outros mundos que ele se propõe a imaginar. A partir de pequenas variações desse formato é posível construir uma série de simbolismos em torno dessas figuras - as presas e garras com que H. R. Giger produziu os monstros de Aliens e de A experiência representam perfeitamente a idéia do mal; enquanto que os grandes olhos brilhantes e a pequena estatura do ET, de Spielberg, e do mestre Yoda, de Guerra nas Estrelas, despertam simpatia.

A motivação para se criar alienígenas de forma humana pode ter ainda razões bem prosaicas, tal como a falta de dinheiro. E pouca verba e muita imaginação é sinônimo da série clássica de Jornada nas Estrelas, criada por Gene Roddemberry, que deu origem até agora a uma dúzia de longa-metragens para o cinema, desde 1979, e quase meia dúzia de seriados televisivos. Uma de suas inovações estava na tripulação da USS Enterprise. Além de um oficial russo, o piloto Pavel Chekov (interpretado por Walter Koening), em plena época de Guerra Fria, o segundo-em-comando da nave era um alienígena. Para fazer o papel do vulcano sr. Spock, Leonard Nimoy só contava com as famosas orelhas pontudas e um irritante senso de lógica. Outras diferenças anatômicas, como o sangue verde e o coração no lugar do fígado eram só sugeridas ao longo dos episódios.

Existe outra série que também sabe lidar bem com a semelhança entre ETs e humanos que o formato televisivo praticamente obriga a seguir. Arquivo X é aquela mistura de policial-suspense-ficção científica-terror, criada por Chris Carter em 1993. O ponto forte do seriado é o relacionamento de dois agentes do FBI, um extremamente crédulo e outra completamente cética, que investigam casos inusitados, com ênfase nos ligados a extraterrestres. Nos melhores episódios existem evidências que podem se encaixar tanto na ficção quanto em uma perspectiva científica. Um exemplo são os episódios "Os Japoneses" e "O Falso Alienígena" (o título em português é bem inadequado), do terceiro ano da série, disponíveis em vídeo no Brasil na fita Autópsia. O caso parece envolver experiências com híbridos humanos-aliens, mas também há evidências de que os seres encontrados na trama possam ser humanos portadores de hanseníase.

A verdade é que nenhuma das características vistas aqui exclui as demais, e duas ou mais delas (ou ainda outras, como a simples falta de imaginação, presente em dezenas de produções, ou a intenção satírica de filmes do tipo Spaceballs e Mars attacks) podem coexistir em uma mesma obra motivando a apresentação de alienígenas antropomórficos. E quanto a disputa do biólogo Jack Cohen e dos cieneastas para ver quem está certo nessa história toda, só podemos esperar para ver. Veremos se no dia em que fizermos contato vamos encontrar do outro lado da linha homenzinhos verdes ou simplesmente um bando de melecas esverdeadas.

19.11.08

Lamentações de Jeremias

Uma vingança em ritmo pulp por Lúcio Manfredi


Jeremias Moranu odiava esse tipo de clichê, mas tinha de admitir que aquilo era uma arma-laser e estava diretamente apontada para a cabeça dele. De pouco adiantaria sugerir ao autor que ele deveria ter optado por uma abordagem mais sutil e que muita água rolara por baixo da ponte desde os bons tempos da space opera, quando os heróis andavam pra cima e pra baixo brandindo suas pistolas. Pode até ser que fosse verdade, mas uma das virtudes do crítico descolado é saber o melhor momento para compartilhar sua sabedoria e este, definitivamente, não era um desses momentos. Em vez disso, o melhor a fazer seria ganhar tempo até que pudesse usar suas armas favoritas, racionalização e subterfúgio.


— Vamos conversar? — sugeriu o vocalizador.


Para surpresa do próprio Jeremias, o autor depositou sua arma na mesinha diante do aquário e sentou-se.


— É, vamos conversar.


Jeremias Moranu não se chamava realmente Jeremias. Essa era apenas a melhor solução a que o vocalizador chegara numa tentativa de traduzir seu verdadeiro nome, um padrão de cores que, no idioma dos críticos, significava qualquer coisa como “aquele que lamenta sem parar”. Jeremias deveria ter sido uma larva particularmente gritalhona para receber esse nome da rainha. Agora, porém, não estava com muita vontade de gritar. E percebeu que tampouco tinha muito a dizer. Esperara que o autor reagisse dizendo que não havia nada para conversar e estava preparado para responder com a arenga habermasiana padrão sobre como as partes em conflito sempre podem chegar a algum tipo de consenso, mas a concordância do outro pegara-o desprevenido. Ergueu o segundo de seus dezesseis pares de tentáculos e friccionou uma pata na outra diante do terceiro par de olhos esbugalhados, um gesto que, para os críticos, traduzia a mais profunda perplexidade. Para o humano confortavelmente instalado numa poltrona do escritório, entretanto, o gesto não tinha o menor significado.


— Achei que você quisesse conversar — resmungou, tamborilando a impaciência no braço da poltrona.


— Suponho que você está aqui porque não gostou da resenha que eu fiz de Trimalchia IV — tateou Jeremias.


— Não, eu adorei a resenha que você fez de Trimalchia IV — retrucou o autor.


Agora, o crítico esfregava nada menos que cinco pares de tentáculos diante de seus seis pares de olhos esbugalhados.


— Mas eu praticamente destruí o teu trabalho! Falei que havia tantas falhas de carpintaria que era de se espantar que a obra ficasse em pé sozinha. Disse que não passava de um amontoado de lugares-comuns que você parece ter colhido mais ou menos ao acaso no armazém da esquina... — o vocalizador fazia acompanhar cada palavra de um ruído de estática, sobrecarregado pela tentativa de capturar a tantalizante mudança de cores na carapaça do crítico.


— Eu sei.


— E mesmo assim, você adorou?


O autor levantou da poltrona. Jeremias se encolheu no fundo do aquário, mas o outro deu-lhe as costas e se aproximou da placa de transparência subjetiva. A segunda das três luas de Morania levantava-se no horizonte, banhando a sala com seu brilho violáceo.


— Ouvi dizer que, quando você era mais jovem, também se arriscou como autor.


Jeremias enrubesceu, o que, num crítico, não envolvia ficar vermelho e sim escoicear a parede do aquário com seu sétimo par de pernas.


— Ah, uma bobagem de juventude. Eu mal tinha entrado na minha oitava articulação — era impossível não notar uma certa vaidade na sintaxe das cores. — E foram só nove ou dez mundos.


O autor se aproximou do aquário, fazendo Jeremias estremecer novamente.


— Mas eu li cada um deles — assegurou. — Fui em todos os sistemas solares que você assinou, mergulhei minuciosamente na estrutura de seus mundos. De onde você acha que eu tirei os lugares que você acha tão comuns?


A carapaça de Jeremias soltou a explosão de azul que se poderia traduzir como um eureka. Era por isso que Trimalchia IV lhe parecera tão familiar!


— Você criou Trimalchia IV como um pastiche deliberado dos meus mundos?


— Mais do que isso. Trimalchia IV tem um campo ontológico configurado para a tua estrutura ôntica específica. Uma vez que você ponha seus tentáculos lá, estará preso pra sempre no envelope de realidade daquele mundo.


Jeremias emitiu a exalação fedorenta que, entre os críticos, passava por uma gargalhada.


— Acontece que eu nunca piso num mundo que tenha resenhado negativamente.


— Eu sei — disse o autor, recuperando a arma da mesinha. Só então Jeremias notou que sua primeira avaliação sobre a natureza do artefato fora precipitada.


— Eu faço parte da décima-sexta articulação de críticos! — protestou.


Não era uma pistola-laser.


— Sou um dos críticos mais respeitados de Morania!


Era um teleportador.


Jeremias se fechou completamente dentro da carapaça, um gesto inútil de defesa que não o impediu de desvanecer em uma nuvem de partículas azuladas. Antes mesmo que a nuvem se dissipasse, o autor sabia que o corpo do crítico estava sendo reconstruído por um terminal de conexões não-locais instalado numa floresta de Trimalchia IV, onde Jeremias passaria o resto das duzentas e quarenta e três articulações que ainda lhe restavam. Talvez até se sentisse bem. Afinal de contas, os menores detalhes daquele mundo haviam saído de seu inconsciente. Mas o autor preferia que não. O que ele tinha odiado mesmo era a resenha de Esperia XI.

Espírito animal

Abrindo um pouco dos arquivos do TC.
Por Romeu Martins

A primeira coisa que você nota quando finalmente o vê pela primeira vez são as botas brancas sujas de lama. Saltando do avião para a pista de pouso clandestina - em algum lugar entre o sul do Pará e o norte do Mato Grosso, ninguém perdeu tempo para lhe explicar os detalhes geográficos – o homem macula a brancura que usa dos pés à cabeça grisalha naquele chão irregular e enlameado.

Ainda a alguma distância você o ouve falar ao celular, em um modelo semelhante ao que lhe entregaram quando aceitou ser recrutado, semanas atrás. O trecho final da conversa chega a seus ouvidos sem a necessidade de muito esforço de sua parte:

- Sim, Mr. Ayak. Vai ser muito engraçado quando todos perceberem que venceu exatamente o nosso candidato. Muita gente vai se surpreender, com toda certeza. Mande um abraço a Mr. Akia.

O nervosismo bate. Você aperta ainda mais as mãos na expectativa de finalmente conhecer o homem por quem estava esperando há horas. Nervoso, tenta desviar o olho da figura que avança em sua direção e, só então, percebe o prefixo do jatinho que pousou poucos metros à sua frente. Você não é nem de longe um especialista no assunto, mas sempre notou que aviões no Brasil costumam ter a letra P iniciando o código de identificação pintado nas fuselagens. A mente divaga e vem a lembrança do avião que caiu com todos os integrantes de uma banda engraçadinha na metade dos anos 90, como era mesmo?, PT-LSD, sim, você se lembra claramente até das piadas que contou na época.

Porém, a aeronave que trouxe o homem que dá pernadas sobre poças de água para alcançá-lo não segue tal padrão. As letras no casco branco são azuis e não começam com P. Não, no lugar, duas outras letras que você tem percebido por todo o canto ultimamente, a ponto de quase o levar à obsessão com o tamanho e a insistência das coincidências. TC são as tais letras e depois do traço outras três: JCN. Passa pela sua cabeça se isso poderia ser um caso de personalização do prefixo, como algumas pessoas fazem com as placas do carro. Sobre o significado de TC você já tem várias pistas juntadas ao longo de meses de observação, de pesquisa e de entrevistas. E quanto às outras três letras? Seriam a iniciais do nome deste homem que se aproxima? Talvez, afinal a forma pela qual o identificaram é apenas um sobrenome, o mesmo que você balbucia enquanto ergue a mão para cumprimentá-lo.

- Sr. Neves? É um prazer finalmente conhecê-lo.

Ele retribui o gesto, apertando sua mão com mais força que seria o esperado para alguém com idade suficiente para ser seu avô. O sorriso parece genuíno.

- Ah, sim, o mais novo candidato a membro de nossa organização. Me disseram que você nos prestou bons serviços em um caso recente. Espero que tenha sido bem tratado enquanto esperava.

- Com certeza. Todos que me trouxeram até aqui foram muito cordiais, apesar de não poderem me dar tantas respostas quanto eu gostaria. Eles não sabiam me dizer exatamente quando o senhor voltaria de viagem, por exemplo.

- Ah, mas isso ninguém saberia dizer mesmo, rapaz. Estive muito ocupado com as atividades do Tulip Collectors, nos Estados Unidos, desde setembro.

- Colecionadores de tulipa? Não fazia a menor idéia que o senhor se interessava por botânica.

Ele dá uma gargalhada. Será que você falou alguma bobagem?

- Eu me interessar por flores? Isso é muito engraçado. O nome do grupo é uma homenagem a um caso que ocorreu há 400 anos, na Holanda. Foi a primeira crise especulativa registrada pela história da economia. Já ouviu falar?

- Não, pelo menos não que eu me lembre.

- Amsterdã era uma cidade rica nos anos de 1600, capital de um império que, no auge do período das navegações, consumia produtos vindos de toda parte do mundo. Um desses produtos chegava do oriente e virou mania entre os milionários holandeses. Sei que parece ficção, mas a verdade é que um único bulbo de tulipa chegou a valer o mesmo que 24 toneladas de trigo naquela época. Existe o relato, feito no século XIX, sobre um marinheiro bêbado que comeu um desses bulbos. Pensou que era uma cebola, pobre coitado. O homem ficou seis meses na prisão por isso.

- Mas é inacreditável. Como pode uma flor, mesmo sendo, sei lá, exótica , valer tanto dinheiro?

- Keynes chamou a isso, usando uma expressão emprestada de Descartes, de “Espírito animal”, a euforia que faz investidores partirem em busca do lucro. É uma característica positiva, mas quando assume ares de irracionalidade vira a versão do mercado financeiro para a febre do ouro. O resultado é que, quando alguém finalmente percebe o tamanho do buraco em que se meteu, o encanto se acaba e o efeito manada leva a uma crise generalizada. Foi assim com as tulipas holandesas do século XVII, com a crise de 1929, com o estouro da bolha da Internet...

- Ou com o mercado de quadrinhos dos anos 90!

Sua intervenção parece ter pegado o homem mais velho de surpresa.

- Quadrinhos?

- Hã, sim. Na década passada colecionadores de revistas de super-heróis, tipo Marvel e DC, sabe?, pareciam acreditar que qualquer gibi com o número 1 na capa iria valer uma fortuna em poucos anos, como aconteceu com a Action Comics, a revista em que surgiu o Super-Homem antes da II Guerra e que hoje está avaliada em uns... 800 mil dólares por exemplar bem conservado.

Você percebe pelo rosto de seu interlocutor que todos os nomes listados não fazem muito sentido para ele, então só acrescenta mais uma frase, em voz baixa, meio envergonhado:

– Mas logo aquilo mostrou ser um erro, quem comprou várias edições de um mesmo gibi dos X-Men ou do Batman, mesmo sem nunca ter tirado do plástico, percebeu que jogou dinheiro fora.

- Bem, neste caso eu sou inocente. Nunca me meti com o ramo dos quadrinhos, apesar de já ter feito serviços para a indústria de cinema dos Estados Unidos, tempos atrás. E agora, com a queda de Wall Street, eu e meus associados fizemos tanto dinheiro quanto havíamos feito com a queda do outro muro, o dos anos 80. Mas vamos entrar na base e tirar os pés deste atoleiro. Nunca vi terra pra chover tanto, é impossível se erguer um país civilizado com este clima.

Basta um aceno do homem para que as portas do complexo se abram. Durante todas as horas em que esteve esperando por seu anfitrião, não o deixaram entrar no local, protegido por uma camuflagem de selva que o torna virtualmente invisível do alto, seja de observadores em aviões seja dos olhos eletrônicos dos satélites. Você só pôde esperar em um alojamento comunitário, uma área residencial para a equipe permanente daquilo que Neves chamou de “a base”.

Não dá para dizer que impressiona muito as instalações por trás da alta e provavelmente pesada porta que se destranca à sua frente. As instalações lembram alguns laboratórios dos cursos de engenharia lá na sua antiga universidade. Um saguão amplo e uma série de escadas e passarelas de metal chumbadas em paredes de tijolo à vista são tudo o que você percebe. No chão de cimento pintado de branco vocês dois deixam pegadas de lama enquanto avançam para o interior do prédio, tão iluminado quanto uma fábrica, com iluminárias de lâmpadas fluorescentes, divididas de quatro em quatro. Poucas pessoas percorrem o lugar, algumas entram e saem pelas portas dos andares superiores. Mas todas as que notam a presença do senhor Neves, a seu lado, imediatamente trocam com ele algum cumprimento. O líder daquela equipe retribuí com simpatia, chamando boa parte dos homens e mulheres pelos respectivos nomes.

Você procura ansiosamente algo para dizer e com isso disfarçar o nervosismo com a situação. É quando nota uma placa de bronze parafusada em uma parede com aparência bem mais sólida e antiga que a do restante da base. Não dá para resistir a curiosidade em relação ao que está escrito e sua voz sai mais alta do que o planejado quando consegue ler o alto-relevo.

- TC, 1810, Príncipe Regente D. João VI...

- Surpreso com alguma coisa?

- Bem, desculpe se estou sendo indiscreto, mas não esperava uma citação tão antiga a..., bem, à nossa organização. E muito menos que ela estivesse relacionada com um antigo rei português.

Neves pára diante do retângulo metálico com certa reverência, mãos para trás, na postura de um acadêmico que estuda detalhes de alguma pintura clássica. Ele não tem pressa em falar.

- É verdade. Esta placa é um dos registros mais antigos da pré-história de nosso grupo. Ela representa o agradecimento de D. João a quem o salvou de um atentado planejado por Napoleão Bonaparte para matá-lo em solo brasileiro.

Sua cara de espanto é o suficiente para divertir o homem mais velho e o incentivar a continuar a história.

- É isso mesmo. Sei que você nunca leu sobre isso nos livros de história, mas quando a família real portuguesa conseguiu escapar do cerco francês, escoltada pelos navios ingleses, Napoleão secretamente decretou a morte de D. João e de Carlota Joaquina. Para executar a ordem, o imperador recrutou o serviço de agentes que imaginava serem leais a ele. Não contava que haveria um traidor no grupo.

- Um homem de nossa organização?

- Eu falei que esse caso dizia respeito à nossa pré-história. E essa história, como a outra que lhe contei, também diz respeito a uma flor. O fato é que umas das pessoas envolvidas na missão de matar os portugueses era diretamente ligado a um antigo inimigo dos republicanos que fizeram a revolução na França. Um homem que, disfarçando sua identidade, salvou muitos nobres da morte certa na guilhotina e que enfrentou Robespierre e seu bando de decapitadores. Este nosso amigo, assim que aportou no Brasil, conseguiu impedir os planos regicidas de Napoleão. Com isso, ganhou o reconhecimento da família real portuguesa e dos aliados ingleses e espanhóis. Aquele evento foi a origem de um pacto entre representantes dessas casas reais, cujos integrantes se faziam reconhecer por aquela sigla gravada na placa.

- T e C? – Você se arrisca a falar, quase para tirar o narrador de um transe.

- Isso, isso mesmo. Aquelas letras representavam expressões que faziam sentido na língua tanto dos aliados quanto na do inimigo de então. T e C significavam Três Coroas para os brasileiros e portugueses; Three Crowns, para os ingleses; Tres Coronas, para os espanhóis; e Trois Couronnes, para os franceses. Juntas, em selos, marcas d’água, brasões, sinetes, anéis e toda série de subterfúgios as duas letras abriam portas, serviam como senha e passe livre além de distinguir os membros de uma das mais secretas e poderosas sociedades internacionais que já existiram.

Ambos ficam devotando atenção àquela sigla centenária feita de metal. Não com menos ênfase que uma dupla de maçons dedicaria a um monumento com o G emoldurado pela régua e pelo compasso. Você mal pode acreditar que algo assim lhe foi contado com tamanha facilidade, não depois de semanas e semanas de mistérios, de tentativas dissimuladas para ganhar confiança que pareciam não dar em nada... Todo aquele trabalho estava sendo recompensado com uma conversa em tom casual revelando nada menos que duzentos anos da história secreta do seu país. E além!

Você se sente tirando a sorte grande. Tem medo de pôr tudo a perder se for muito intrometido, mas medo ainda maior é o de não arriscar. Continuar com as perguntas é sua obrigação.

- Quer dizer então que tudo começou como uma sociedade secreta monarquista?

O transe foi oficialmente interrompido. Neves tira os olhos da placa histórica e se volta para você, girando não o pescoço, mas todo o corpo. Cintura primeiro, calcanhares depois, ainda com as mãos cruzadas nas costas. Ele parece voltar a se dar conta de sua presença ali, mesmo que a expressão do rosto seja indecifrável.

- Desde o início os fundadores de nossa organização tiveram o objetivo claro de moldar a realidade de acordo com nossos interesses. Não somos nós quem devemos nos adaptar ao mundo, é ele que deve se curvar a nós. Se no primeiro momento era útil contar com a aliança de cabeças coroadas, mais tarde chegou a vez dos republicanos. Prova disso é que tanto Deodoro quanto Bolívar estiveram acompanhados nos seus momentos decisivos por agentes com o emblema TC . E assim foi ao longo das décadas, trabalhamos tanto com ditadores de direita quanto com revolucionários de esquerda; estamos ao lado de teocracias fundamentalistas e de estados ateus. Derrubamos mercados liberais do mesmo modo que arruinamos economias planificadas. No final, nossa vontade é o que conta.

É até difícil engolir em seco. A medida em que a voz dele ia se tornando mais firme e o tom se elevava, sua garganta parecia se contrair. O medo que você está sentindo deve ser tão visível ou tão sensível ao olfato de seu interlocutor que ele muda de atitude. Abandona o ar de sermão e se aproxima para dar um tapa em suas costas e voltar a guiá-lo na caminhada pelas instalações.

- Mas você está certo em sua observação. Foi nossa origem pró-monarquia que garantiu nosso futuro. D. João nomeou seu salvador como barão e concedeu muitas vantagens ao grupo que estava sendo criado naqueles dias. Entre elas, a posse de terras como o pedaço de selva em que está construída esta base. Ela começou como uma simples casamata e foi crescendo de acordo com nossas necessidades operacionais.

Neves aponta para funcionários carregando equipamentos de telecomunicação, partes de antenas de transmissão, centenas de metros de fios dourados, placas de circuito integrado. Mas ele o conduz por uma porta da ala antiga da base, longe da maior parte da agitação provocada pelo entra e sai dos técnicos.

- E deve ter sido uma coincidência e tanto vocês estarem instalados em um local com tantos acontecimentos históricos. Afinal, aqui perto fica aquela base militar onde tentaram desenvolver uma bomba atômica nacional, não é mesmo? Sem falar naquele acidente aéreo terrível...

Antes de completar a frase você se dá conta sozinho do tamanho de sua ingenuidade, algo só reforçado pelo som da risada de seu anfitrião.

- Ora, coincidência é o nome que pessoas desinformadas dão a nosso trabalho.

O local está bem mais escuro que o restante das instalações. Neves indica com um gesto que você deve continuar em frente enquanto ele se aproxima da parede oposta, onde estão localizados os interruptores. Mesmo na penumbra, pelo som de suas passadas, você percebe que a partir de certo trecho o chão não é mais de cimento. Só não consegue identificar exatamente o que seja.

- Estranho, essa parte aqui parece ser feita de um metal... mas não é de ferro, né?

Um ligeiro clique e as luzes se acendem.

- Não, não é de ferro...

Um novo som, mais seco e muito mais alto, e o chão a seus pés desaparece.

- ... é feito de chumbo, na verdade.

De chumbo ou de ferro, para sua própria e máxima surpresa, apesar dos anos de ócio improdutivo, você consegue se agarrar à borda do buraco que surge como um alçapão de desenho animado.

Mesmo com o impacto da barriga e dos joelhos contra as paredes metálicas, o desespero empresta forças suficientes para você não largar o apoio, isso às custas das unhas fincadas, arranhando ruidosamente o piso. Arfando e bufando, você tenta se manter a salvo e escalar a saída. Só que o revestimento das paredes é liso demais para seus pés conseguirem impulsioná-lo, a borracha do tênis patina, patina e não encontra aderência o suficiente. No outro extremo, os braços sozinhos não dão conta de puxar seu corpo para fora.

Neste momento, você parece brotar do chão, da altura do peito, com os braços esticados para frente e olhos esbugalhados de espanto.

Pouco a pouco, caminhando calmamente, Neves aparece em seu campo de visão. Ele se reclina um pouco para falar com você, como faria um adulto para conversar com uma criança pequena.

- Parabéns, não esperava que um bostinha feito você conseguisse evitar a queda, jornalista.

O esforço na luta contra a gravidade provoca um chiado em seus ouvidos, é como se sua cabeça tivesse se tornado um enorme balão que deixa o gás escapar por um furo microscópico. Mesmo assim, dá para ouvir claramente que aquele homem descobriu sua identidade.

- É, seu idiota, sabemos quem é você. Sabemos que você estava tentando escrever uma matéria sobre nós para aquela revistinha patética que publica seus, como é mesmo?, seus frilas. Sabe, foram vários os motivos para termos comprado nossa própria empresa de telefonia celular. Espalhar antenas por todo o Brasil foi um deles; garantir meios para que ninguém consiga grampear nossos aparelhos foi outro.

Neste momento ele se abaixa ainda mais e fala quase cuspindo diretamente em sua direção.

- Ninguém escuta nossas conversas sem nossa permissão, seu bos-ti-nha. E nós sempre – sempre – sabemos quem está tentando nos bisbilhotar.

Seus dedos começam a sangrar, as unhas parece que vão ser arrancadas pela tensão que são obrigadas a suportar. Entre suor e baba você consegue falar em um tom audível, mas não tão alto quanto os sons guturais que lhe escapam da boca e do nariz.

- Muita gente sabe que onde eu estou... se eu não voltar vão haver buscas...

A risada do outro lado é sonora.

- Você é mesmo um tolo, rapaz! O monomotor que o trouxe aqui - isso já está em todos os telejornais - sofreu um acidente e caiu no fundo do mar, com seu corpo e o do piloto. Vocês nunca serão encontrados, é claro. Neste momento, todos os arquivos de seu computador pessoal já estão conosco. Invadimos seu hotel, sua casa, o computador que você usa naquela redação... As pessoas que falaram com você, que deram entrevistas e passaram informações, serão procuradas. Você serviu direitinho para o que queríamos, jornalista. Foi nossa isca perfeita para nos mostrar elos fracos em nosso grupo.

A vontade é de largar tudo e se deixar cair. Só o instinto, na forma de um iceberg gelado na barriga e no de pêlos ouriçados na nuca, é que o impede de se entregar ao precipício.

- Mas depois de todo esse esforço, você merece ao menos a confirmação da história que veio buscar. Sim, o que você leu naquele documento militar confidencial que lhe entregaram estava certo, é tudo verdade. Havia mais um projeto secreto financiado com dinheiro das contas Delta durante a última ditadura. Não era só o exército que queria construir seu artefato nuclear; a marinha com o submarino atômico; e a aeronáutica com o míssil balístico. Existia um quarto projeto, coordenado por um grupo independente, o nosso grupo. Mas sabe qual era a diferença entre nós e eles, os militares?

Neste momento ele volta a se levantar, apenas mantém o olhar fixo em você e cutuca o polegar direito contra o próprio peito enquanto fala em voz mais alta.

- Nós tivemos o espírito animal que faltou àqueles incompetentes. Hoje, o resultado de nossa pesquisa está usando um capacete azul no Haiti.

Neves avalia durante alguns segundos o efeito que as palavras tiveram sobre você. Porém seu estado não é muito promissor para continuar a conversa. A dor, o cansaço e a gravidade vão vencer a luta a qualquer momento.

- Posso ajudá-lo em mais alguma coisa para a sua matéria, jornalista? Quem sabe quer mais alguma declaração minha ou uma foto para a capa da revista? Já sei, que tal uma imagem do futuro para você? Tome!

A última coisa que você vê é a bota enlameada vindo em sua direção. Ela esmaga seu nariz e o empurra em uma queda de dezenas de metros até o fundo de um túnel com uma inquietante fosforescência radioativa. O brilho tênue vai se apagando aos poucos diante de seus olhos.


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