16.5.09

Paradigmas II - a primeira resenha

Por Camila Fernandes

Não tenho o hábito de escrever resenhas, mais por falta de tempo e preguiça do que pela idéia em si. Mas depois de novamente revisar um livro inteiro não posso perder a oportunidade de soltar a primeira resenha de Paradigmas – volume 2, lançado ontem, 15 de maio, no já consagrado Bardo Batata!

Este livro se diferencia do primeiro por trazer uma quantidade maior de contos com um pé (ou os dois) na FC e mais alguns contos de época. A diversidade de temas permanece e se manifesta especialmente nos personagens: temos detetives particulares, cavaleiros medievais, garotinhos curiosos, prostitutas, frades, seres antropomórficos mas inumanos, vampiros, lobisomens e até um gato. Vamos ver um pouco mais do que nos espera, conto por conto:

Ataíde Tartari abre o volume com uma ficção futurista e detetivesca narrada em primeira e irônica pessoa: Ricardo Edgar, detetive particular. Estão lá a loura misteriosa e o detetive com pouco serviço, mas também a reviravolta inesperada da trama e as facilidades de uma sociedade altamente tecnológica para a qual estamos caminhando. Uma quedra de paradigmas noir-high-tech.

O pequeno Oenteph é um conto narrado por um avô ao seu neto como uma aventura autobiográfica: quando era rapaz, fez uma excursão a um local curioso que mudou sua forma de enxergar a vida. Em tom nostáligico e sonhador, o autor Raul Tabajara fala de um mundo onírico, separado do nosso e ao mesmo tempo presente em cada um de nós.

Flávio Medeiros escreveu uma ficção científica acessível e imprevisível em Efeitos adversos, onde um cientista vê seu corpo se distorcer e mudar contra sua vontade. Ao lê-la, é impossível não pensar no Doutor Jeckyl se tornando Mister Hyde ou no Doutor Banner virando o Hulk. Mas Medeiros vai além, mostrando-se um autor criativo e bem-humorado.

Entrei no volume com o conto A boa senhora de Covent Garden, uma história gótica urbana com toques de sobrenatural. Escolhi como ambiente a Londres do século 17 e, como protagonista, uma prostituta que não é nem heroína nem mártir, mas uma moça ambiciosa que adora seu trabalho e não pesa esforços – ou ética – para ganhar um tostão a mais. Picante sem passar do limite, eu espero.

Fuga é uma história acelerada em que Fernando Trevisan faz protagonista e antagonista se defrontarem em uma só pessoa – ou será uma só pessoa que vê o inimigo como espelho? Um conto complexo, instigante, com ritmo forte da primeira à última linha. Ótima ficção científica com profundidade emocional.

Gabriel Boz vem com O deus de muitas faces, uma aventura com sabor de mitologia grega na qual um jovem se vê diante do momento mais importante de sua vida: sua iniciação à vida adulta, na forma de um encontro com o deus misterioso do título, que pode definir os rumos de sua vida e da de sua tribo. Parece que os deuses, assim como os homens, escolhem suas faces conforme a ocasião.

Em Frei François, Ademir Pascale narra em primeira pessoa uma trama medieval, na qual um aventureiro, em viagem por uma cidadezinha no interior da França, se depara com misteriosos assassinatos no mosteiro local e toma para si a missão de deter o autor dos crimes. Mas a tarefa é menos simples do que ele pensa e vai lhe tomar muito mais do que espera, marcando-o para o resto da vida.

Luciana Muniz nos leva para uma viagem às profundezas da Terra em Abaixo de nós. Num ritmo ligeiro, a autora apresenta uma comunidade primitiva de seres semi-humanos que vive numa camada subterrânea do planeta e evita a todo custo um encontro com os seres da superfície, até que um jovem geólogo revolve meter o nariz onde não foi chamado…

Carta a Monsenhor é um conto de horror na Idade Média. Historiadora medievalista, a autora Ana Cristina Rodrigues sabe bem do que está tratando ao nos arrastar pela mão nesta história sobre a Peste Negra, a histeria coletiva, o bem, o mal e seus dirfarces em nosso mundo.

Triângulo em tempo rubato e gota de sangue é um dos mais belos contos deste volume. Saint-Clair Stockler nos brinda com uma trama muito simples na qual a complexidade fica por conta das emoções profundas que a permeiam. Narrando em primeira pessoa, o autor veste a pele de um gato recolhido por uma garota. Com a inserção de um terceiro e indigesto personagem, cria-se um triângulo amoroso de difícil solução. Um conto cheio de sutilezas.

Um nobre cavaleiro aceita arriscar sua vida combatendo o dragão que assola uma cidadezinha medieval. Seria uma trama convencional se alguma coisa aqui fosse o que parece, mas nada é como que se espera em A dama e o cavaleiro. Ricardo Delfin cria uma narrativa elegante na qual o direcionamento clássico é rompido pelas reviravoltas da trama.

Ubiratan Peleteiro vem com O fazedor de terra contar a história de criaturas que evoluíram a partir dos caprinos e criam uma civilização primitiva, limitada pelo medo e pelo apego a tradições. A trama funciona por si só e também como metáfora para a atitude humana de se esconder atrás de costumes e convenções por receio de enfrentar as novidades e a própria evolução natural das sociedades.

Richard Diegues fecha os paradigmas da vez com chave de sangue. Muito sangue. No conto Clausura, o autor e editor começa alia o suspense ao terror e o realismo violento de nossos dias a uma sutileza sobrenatural que torna a leitura ainda mais intrigante. Tudo começa com um seqüestro e deslancha para situações apavorantes. Leitores saudosos de Necrópole encontrarão nestas últimas páginas um bom alimento para sua sede de medo.

Quem sabe depois dessa eu adquira também o excelente hábito de resenhar, já adotado por talentosos escritores da nossa geração, como Cristina Lasaitis, Fernando Trevisan e Romeu Martins.

Os 2 volumes já lançados da coleção Paradigmas podem ser adquiridos na loja virtual da Tarja Editorial ou direto com os autores (inclusive eu!). É só me mandar um e-mail: camilailustradora@gmail.com

14.5.09

Paradigmas II - O lançamento


O segundo volume da coleção Paradigmas vai ser lançado nesta sexta, dia 15, às 18h30. O local vai ser o Bardo Batata, Rua Bela Cintra 1.333, São Paulo - SP.

13.5.09

Uma parte que não tinha

“Saturno já cobre toda a visão da minha escotilha. Ouço gritos pelos corredores" Por Hugo Vera

Eram 22h13 GMT. A cosmonave Explorer 2-B aproximava-se velozmente da parte exterior da atmosfera de Saturno. Sérgio estava em sua cabine, sozinho, registrando informações no seu diário de bordo. Programou o hipercomputador para que o mesmo transmitisse aquelas informações para a Terra.

“Querida Vanessa,”

“Sei que a incomodo mais uma vez com esta mensagem, mas julguei necessária. Estamos nos aproximando cada vez mais de Saturno. Toda a tripulação do Explorer 2-B está apavorada. É a primeira vez que uma cosmonave tripulada se aproxima tanto deste planeta gigante. Nós não queríamos bater um recorde, nem tampouco entrar para a história. Após meses de viagem desde o espaçoporto de Phobos, em Marte, estávamos preparados para a aerofrenagem. Talvez eu não devesse perder tempo explicando isso. No entanto, sei que não está familiarizada com viagens espaciais. Sendo assim, creio que posso perder alguns momentos explicando-lhe o que está acontecendo.”

“Ao partirmos para Saturno, fomos lançados ao espaço em grande velocidade. Chegando por fim ao nosso destino, iniciamos o processo de aerofrenagem da cosmonave, visando colocá-la em uma órbita suave em torno do planeta. Tudo é matemática. Caso a aerofrenagem não seja calculada de maneira adequada, a cosmonave pode ser lançada para além da órbita do planeta, utilizando a gravidade de Saturno como uma espécie de catapulta, seguindo sua viagem sem destino certo. Ou então, podemos ser capturados pela gravidade deste monstro e cair no planeta. Só para que entenda, a técnica de aerofrenagem utiliza a atmosfera de um planeta para diminuir a velocidade de um veículo espacial, através do atrito com as moléculas de ar, possibilitando colocar o veículo espacial em determinada órbita pré-estabelecida.”

“É o que tentamos fazer. Mas não conseguimos.”

“As mais de 40 almas a bordo desta cosmonave preparavam-se para descer na base espacial em Titã. Todos estávamos ansiosos, afinal não é fácil ficar trancado nesta lata de sardinha por tanto tempo.”

“Ontem pela manhã cruzamos as órbitas das luas interiores do planeta. Os satélites Mimas e Encéladus forneceram-nos fantásticas visões de suas superfícies esburacadas em um melancólico azul glacial. E assim iniciamos assim a aerofrenagem, calculando nossa rota através dos instrumentos de bordo de modo a não sermos pegos pela grande força gravitacional de Saturno. Olho-o agora pela escotilha e tenho calafrios. Nem o magnífico sistema de anéis que tanto embeleza o planeta são o suficiente para tirar essa sensação de vazio que começo a sentir…”

“Tudo era controlado minuciosamente, até a falha geral em nossos sistemas acontecer. O hipercomputador não respondia aos comandos. Maldita Inteligência Artificial! Acionou os propulsores termonucleares e nos lançou sem rumo no espaço. Tentamos resolver a situação, e confesso que isso realmente nos apavorou, afinal, já estávamos em pleno processo de aerofrenagem, como já falei, entrando na atmosfera externa deste gigante gasoso. Mas, tudo foi em vão. Ficamos as cegas.”

“Quando finalmente conseguimos restabelecer o sistema constatamos que era tarde demais. Nossos instrumentos, agora já funcionando, indicavam-nos que estávamos em plena rota de colisão com Saturno. A gravidade havia nos pego de vez e não havia nada que nossos recursos pudessem fazer.”

“Ah, Vanessa. Conseguimos contato com a base em Titã, e aguardamos a chegada de um veículo de resgate, mas creio que a essa altura não há nada que possamos fazer. O resgate não chegará a tempo, e mesmo que chegue, o que poderá ele fazer a uma cosmonave condenada? Correriam eles o mesmo risco de serem apanhados como nós fomos?”

“Malditas máquinas! Ficamos tão dependentes delas! Confiamos tanto nelas e quando mais precisamos, elas nos traem”.

“Desculpe-me, minha querida Vanessa. Eu tinha que mandar esta mensagem a alguém. Achei que você seria a melhor pessoa a ouvi-la. Talvez quando receber esta transmissão, já tenha sido tarde demais”.

“Estou olhando pela escotilha. Saturno ocupa quase 90% do campo de visão e continua crescendo frente aos meus olhos. Vejo o turbilhão de nuvens de sua atmosfera sendo destroçadas pela alta velocidade de rotação daquele mundo. Tempestades e raios. E a sombra negra dos anéis. Temo que estejamos indo direto para a sombra.”

“Ah, Vanessa… Sempre fomos amigos, não fomos? Desde o colégio. Aprendi a gostar de você… E eu sempre quis sair com você. Sempre quis levá-la para assistir a um holodrama comigo ou a um luxuoso restaurante. Mas você sempre me rejeitou. Assumiu depois compromisso com o seu atual noivo e nunca me considerou mais do que um mero amigo. Eu entendia, mas não conseguia aceitar. E assim, mantinha essa esperança de tê-la junto a mim em meu coração.”

“Nunca interferi em sua vida. Jamais quis forçá-la a algo que provavelmente seria contra a sua vontade. Sempre a respeitei. Por vezes tinha medo de tocá-la pois… pois eu não sabia o que pensaria de mim. Ah, Vanessa! Quantas noites passei sozinho, sonhando em acariciá-la, em tê-la para mim… mas… esqueça! Esqueça o que eu disse!”

“Saturno já cobre toda a visão da minha escotilha. Ouço gritos pelos corredores. Definitivamente é tarde. Tenho em mãos uma fotografia sua. Tento me consolar com o seu sorriso, mas o medo toma conta de mim, meu amor. As luzes de emergência foram acionadas e uma irritante sirene está anunciando nosso fim! Não tenho muito mais tempo, minha querida.”

“Vanessa… Apesar de tudo, apesar do seu desprezo… eu sempre a amei. E sempre a amarei.”

“Quem dera se todos nós, simples seres humanos e mortais, pudéssemos amar mais e exigir menos o amor dos que nos cercam. Se Deus nos criou para sermos felizes, por que me sinto tão infeliz agora? Por quê tinha que ser assim?”

“Estou me sentindo sufocado. O calor da minha cabine está aumentando gradativamente. Estamos caindo no planeta. A pressão no casco da cosmonave é cada vez mais intensa. Consigo ouvir o ranger dos metais cedendo. Logo o casco se romperá! Oh! Meu Deus! Seremos esmagados pela gravidade do planeta!”

“Preciso me despedir agora, minha querida Vanessa. Preciso partir… para sempre…”

“Beijos carinhosos para você, meu grande amor. Minha querida Vanessa. A mulher que sempre sonhei e desejei. A mulher a qual sempre amei… mas que nunca me amou. Aquela que poderia ter sido… mas não foi… e nunca será… Você foi a minha outra parte… uma parte que não tinha…”

Pulp fiction à brasileira

O terceiro volume de Ficção de Polpa terá sessão de autógrafos hoje, a partir das 19h, no Cult Bar (Rua Comendador Caminha, 348 - Porto Alegre/RS).

12.5.09

Liberdade ameaçada

Uma das melhores coisas da Internet é perceber que não estamos sozinhos com nossas manias, sempre podemos encontrar na rede vestígios de alguém que compartilha conosco algum hábito estranho. É o meu caso e o de um cara chamado Gerry Canavan. Tenho em comum com o sujeito uma enorme curiosidade desde que vi a cena abaixo pela primeira vez:



A imagem é tão incônica que nem preciso dizer que ela é o clímax da adaptação original, de 1968, de O planeta dos macacos, certo? Mas é também uma excelente representação de uma tendência do cinema para escolher a Estátua da Liberdade como protagonista em cenas que resumem o roteiro de algum evento catastrófico mostrado no filme. É assim que o monumento aparece submerso no cartaz de O dia depois de amanhã ou decapitado no de Cloverfield, por exemplo.

E é essa a mania que eu compartilho com o tal Canavan, relembrar todas essas catástrofes que já ocorreram com o símbolo de Nova Iorque. Só que o gringo é muito mais organizado e meticuloso que eu e compilou no blog dele uma preciosa coleção de imagens destes acontecimentos. O melhor é que ele não se restringiu apenas ao cinema: no acervo do cara estão diversas outras mídias em que Lady Liberty se deu mal, como em capas de discos, video games, revistas de Ficção Científica, animações, publicidade, quadrinhos e uma infinidade de outros exemplos.

Graças ao cara, e às dicas que ele recebeu pelos comentários do blog, dá para perceber que os antecedentes são muito mais antigos que eu poderia pensar. A destruição da estátua está no imaginário popular há muito tempo. Veja o caso deste pôster da época da Primeira Guerra Mundial:



Ou, melhor ainda, desta ilustração publicada pela revista Life para um artigo com o título "The Next Morning" de fevereiro de 1887:



A lista do cara é ótima. De memória eu só teria a acrescentar alguns exemplos a mais dos quadrinhos. Lembro o quanto a estátua sofreu em algumas edições da maxissérie Crise nas Infinitas Terras, da metade dos anos 80, pelas mãos de Marv Wolfman e Gerorge Pérez; assim como, no final daquela década, escombros do monumento serviram de esconderijo para uma gangue na minissérie Slash - O guerreiro do apocalipse , de Doug Moench e Paul Gulacy. Mais recentemente, em outra minissérie da DC, Reino do Amanhã, Mark Waid e Alex Ross retrataram aquele símbolo com um rombo no lado esquerdo do peito, para demonstrar uma insatisfação com os rumos políticos que vinham sendo tomados no país deles. O protesto ficou ainda mais evidente nesta outra pintura de Alex Ross:



Só pra terminar. Uma mania paralela minha também tem a ver com aquela primeira imagem deste post. Desde que o episódio "É o fim do mundo", da saudosa série Armação Ilimitada, fez uma citação ao filme e substituiu a estátua original pelo Cristo Redentor, que eu tento imaginar outras situações catastróficas com o habitante mais famoso do Corcovado. Não é por acaso que, no conto "Apagão no tempo", pensei numa Estátua da Igualdade no lugar do cartão postal carioca em uma versão stalinista do Rio de Janeiro (aliás, Prestesgrado, capital da União das Repúblicas Socialistas das Américas). Da mesma forma, em uma certa noveleta steampunk, também há uma "homenagem" do tipo.

8.5.09

Perseguidos

Um casal foge da polícia; qual o crime cometido?

Por Marcelo Augusto Galvão

O fôlego ficava mais curto a cada metro. Ela não agüentava mais correr. O seu companheiro parecia estar na mesma situação.


- Rápido - ele conseguiu falar, ofegante - Os cornos devem estar logo atrás da gente. Se eles nos pegam...


A possibilidade de serem pegos passou pela mente dela. Mas o pensamento sumiu assim que se lembrou do prazer proibido que carregava na bolsa.


- Por aqui, Cinthia!!


Eles viraram numa esquina deserta, tão deserta e suja quanto qualquer outra rua que formava o bairro que tinha a reputação de ser o mais violento e perigoso de São Paulo.


- Pra onde a gente tá indo? - ela perguntou.


- Relaxa, menina! A gente vai se safar dessa - ele sorriu, confiante como sempre.


A rua foi se estreitando até o asfalto esburacado sumir e dar lugar a um matagal. Por detrás do capim e mato que cresciam ali, apareceram as luzes dos barracos de uma favela. Uma vez lá, eles estariam salvos. Por um instante, Cinthia sentiu uma paz recompensadora pelo que tinha feito naquela noite.


Mas foi apenas por um instante. O barulho de sirenes e da pisada de coturnos surgiram às suas costas.


- Merda! - foi a única interjeição encontrada por Periquito para expressar a sua mistura de frustração, angústia e, principalmente, medo. Ele sabia o que acontecia quando a polícia encontrava um traficante como ele. “ A polícia não leva bandido pra cadeia, leva pro IML” era o provérbio mais verdadeiro por aqueles lados.


O casal disparou pelo matagal. No labirinto formado pelas ruelas da favela ainda existia uma esperança. Que desapareceu quando eles se viram cercados por meia dúzia de homens de uniforme e coturnos.


Não havia como se livrar daquilo que seria chamado de “evidência do crime” no processo que Cinthia e Periquito sofreriam, se sobrevivessem. Engolir a “evidência” seria suicídio, tentar subornar os homens uma perda de tempo: o casal não possuía nada para oferecer em troca da sua liberdade.


- Pro chão, seus bandidos! RÁPIDO! - gritou o que comandava o grupo. Eles obedeceram prontamente. Lágrimas brotaram nos olhos da garota quando viu a bolsa ser arrancada dos seus braços.


- Ei, sargento, achamos o bagulho!


- Traz esses dois pra cá!


Ambos foram colocados de joelhos em frente do sargento, enquanto um soldado derrubava no solo tudo que tinha na bolsa. Dezenas de cilindros de fina espessura foram parar na mão do sargento, que uma insígnia identificava como Moraes.


- Onde vocês conseguiram esse bagulho todo? - disse.


Ninguém respondeu. A pergunta foi repetida na forma de um chute no estômago de Periquito.


Um soldado interrompeu a entrevista, apontando para um dos “bagulhos”:


- Olha só esse daqui, deve ter pelo menos uns 6 anos. Ainda tá escrito “Ministério da Saúde informa: fumar é prejudicial à saúde”.


- Quem forneceu essa droga toda pra vocês, hein? - o sargento perguntou - Ou não sabiam que é crime hediondo o tráfico de nicotina no país? - e esbofeteou Periquito.


Tal gesto, na teoria, intimidaria a vítima. Mas o rapaz, cansado e frustrado, respondeu com um “vá pro o inferno”, seguido por uma escarrada que atingiu a calça do oficial. Este replicou sacando o revólver:


- Fumantezinho de merda! - e virando-se para os seus subordinados - Coloquem eles de pé!


Enquanto era levantada, Cinthia olhava fixo para os maços e cigarros espalhados no solo. Tudo o que queria, naquele momento, era sentir a tragada quente escorrendo pela garganta...


- Guimarães, Pereira, venham cá!


...ver a hipnótica e sedutora dança da fumaça em direção ao céu...


- Fiquem a 3 metros de distância deles. Ao meu comando, atirem.


...ou pelo menos sentir o gosto do filtro do cigarro nos lábios. Seria pedir muito?


O sargento foi interrompido pela moça:


- P-por favor, eu gostaria de...fumar...só um pouquinho... - suplicou.


- Como é que é? - o oficial disse, não acreditando no que tinha ouvido.


Ela repetiu a súplica, com a voz um pouco mais firme desta vez.


E apesar de tudo que ocorrera naquela noite, o sargento Moraes ainda estava de bom humor. Um pensamento divertido cruzou a sua mente por um segundo.


- Um último pedido, hein? Vá em frente, moça - ordenou.


Cinthia se curvou e pegou o cigarro mais próximo. Com as mãos trêmulas, colocou-o na boca. Sorrindo maliciosamente, Moraes continuou:


- Precisa de fogo, não é?


Ingenuamente ela concordou, até perceber que era tarde demais...


- Guimarães, Pereira. FOGO!


E os estampidos, tão comuns naquela região, ecoaram pelo bairro.

FIM

5.5.09

FC em quadrinhos

Peguei a dica, via Twitter, do Gabriel Rocha, responsável pelo blog Quadriteca. O ilustrador e artista gráfico Pedro Franz anuncia um projeto de ficção científica em quadrinhos chamado Promessas de amor a desconhecidos enquanto espero o fim do mundo. Por trás do título quilométrico e de altas doses de citações, a promessa é a de uma série retratando uma versão futurística e despótica de Florianópolis. O autor criou um blog bem interessante para divulgar o material e onde deve liberar as HQs para download gratuito. A seguir, reproduzo uma ilustração e um dos posts sobre o projeto, com meus desejos de sucesso ao autor nesta empreitada.



Em junho, estará disponível o primeiro capítulo de Promessas de amor a desconhecidos enquanto espero o fim do mundo. A série será publicada de forma sequencial, em doze capítulos (contendo, em média, de doze a dezesseis páginas cada), que poderão ser baixados aqui no blog do projeto.

Um recurso que será utilizado em Promessas (…) é, no início de cada capítulo, apresentar uma breve descrição-sinopse antecipando fatos que acontecerão no mesmo:

Capítulo 1: No qual Jolly Roger foge de seu esconderijo

O recurso foi utilizado por Bertold Brecht (e, mais tarde, por Lars Von Trier na trilogia iniciada com Dogville), com a proposta de gerar distanciamento. Aqui, o objetivo é funcionar como spoilers (palavra inglesa que vem do verbo “to spoil”, estragar e pode ser traduzida como “estraga-prazeres”), questionando a própria estrutura tradicional dos quadrinhos em série convencionais, nos quais a expectativa pelo “continuará…”, ou seja, o quê acontecerá na história acaba, muitas vezes, tendo mais importância do que seu conteúdo ou a forma como este é transmitido. A expectativa “por-saber-o-que-vai-acontecer” gera uma estranha cultura no meio, no qual a grande maioria de resenhas e notícias em sites sobre quadrinhos acaba sempre lidando exatamente com “spoilers”, em vez de desenvoler um jornalismo cultural que através da crítica contribua para o desenvolvimento, como acontece (às vezes) em outras áreas.

A imagem do post serve como divulgação do projeto e se você quiser passá-la adiante, publicar em seu blog, mandar pros amigos por e-mail, recebe meus agradecimentos desde já.

A última revolta de Jesus Cristo

(baseado numa história que tudo indica ser real)

Por Rogers Silva

Para Sinvaldo Jr,
que sempre achou que Jesus deveria ter morrido por algo melhor.

Doía, muito doía, e não havia nada que pudesse fazer para estancar o sangue, que escorria. A impotência doía. Doía e não enxergavam, não viam – ou não queriam ver? Doía e não era dor pouca, pois em todos os momentos se vira sozinho, todos desapareciam, sua única companhia era o desgosto, era. As aves no céu voavam indiferentes. E doía. Agora percebia enfim que doía, e não só percebia como sentia agora todas as dores passadas, agora. A solidão. A ausência machucava, doía. A ferida aberta, e os vermes vindouros. As mãos doíam, e muito. As pernas doíam, e muito. O tronco doía, muito. A flechada, os cuspes, a coroa, os espinhos – tudo doía. Os sarcasmos feriam, e doía. Os risos. Os socos tão-somente nesse instante sentia, e doíam, como socos dados em vão, porque em vão foram. Apenas serviram para aumentar a dor. A hostilidade. Valeria o sacrifício, valeria? O sol quente. O céu claro. A vontade de urinar doía. Os rins doíam, sobretudo. O suor que sujo escorria. O sal. O fel. O mau hálito. As lembranças também doíam. Herodes (Jesus ainda bebê) mandara matar todas as crianças abaixo de dois anos. As mentiras inventadas, a hipocrisia. Herodes não queria adorá-lo, não queria. E o Pai, sabia? Fora cúmplice? Não fora tudo profetizado, não estava escrito? Doía. A crueldade de Arquelau. Os avisos de Deus. As interferências. As tentações de Satanás – tudo premeditado. Doía. Sua história não fora escrita por Si mesmo? A morte de João feria e fazia doer. A cabeça ensangüentada de João. Sangue. Os demônios. A lepra. Os fariseus, que tramaram sua morte. Hipocrisia. Ai de Jerusalém! Doía, porque davam dízimo, conheciam as Escrituras, jejuavam, oravam, mas não viviam segundo a justiça e a fé. Muito. Doía. Os judeus hostis. As enganações doíam, e muito. Todas as dores possíveis nele se convergiam. O tremor. A ira. O ódio. A vingança. As mortes dos que não estavam na Arca de Noé. Doía a piedade e o conseqüente remorso que sentia, agora, só agora, pelos não privilegiados do Pai. As crianças afogadas nas águas do dilúvio. As crianças se debatendo contra as águas salgadas. Seriam salgadas, seriam? A compaixão que nutria, agora, e só agora, por Caim. O sofrimento de Jó era ele, Jesus, que sentia e doía, doía mais do que doeu em Jó. O gosto da fruta (amarga) que Adão comeu doía o estômago. A liberdade, a esperança perdidas, o paraíso, a felicidade perdidos – doíam, e era uma dor que feria. O pranto sobre a cidade condenada. A figueira estéril. As profecias doíam. A ambição dos homens. A agonia passada. E, após todo o sofrimento, a sentença. Meu Pai. Este suor que escorre e se mistura ao sangue, estas lágrimas que escorrem e se misturam ao sangue, esta saliva que escorre e se mistura ao sangue, estes cuspes que escorrem e se misturam ao sangue. As feridas. Os raios do sol nos olhos ardem, doem. Ver a mãe chorando e nada poder fazer dói. Ver os irmãos chorando e nada poder fazer dói. Ver os amigos, sobretudo os falsos, e nada poder fazer dói. Ver os inimigos zombando e nada poder fazer dói. E o Pai, sabia? Fora cúmplice? Não fora tudo profetizado, não estava escrito? Doía. Zombaria. Zombarias? Este peso nas costas dói. O fardo pesado. Os pecados de todos. Os erros. Os desvios de conduta. Os assassinatos. As vinganças. Os adultérios. As ingratidões. Doía. As feridas. As traições. As armadilhas e provações. O fardo. Os tapas no rosto. Os socos. Esta barba espessa e suja. Essa feiúra. Esta ausência. Trinta e três anos de falta doem. Trinta e três anos de mentiras e maldades doem. As marcas das correntes nos pulsos doem. Este zunido intenso nos ouvidos. Os zunidos, conseqüência dos gritos nos ouvidos, doem. Esse riso cínico dói, e muito, demais. As marcas profundas nas costas doem. As pernas cansadas, em conseqüência do longo trajeto com esta cruz pesada nos ombros, doem. E os tombos. Meu Deus, afaste este cálice de mim. Afaste a onisciência de mim, afaste essa capacidade de imaginar o futuro de mim. Afaste a lucidez de mim. Afaste este choro amargo de mim. Afaste de mim este soluço convulso que ninguém vê. Pai, por que não disseste antes que minha morte não era para todos? Pai, por que me enganaste? Pai, que culpa têm os que não reconheceram nem reconhecerão como verdade o que eu preguei? Pai, Tu me fizeste profetizar a traição de Judas. Pai, por que me fizeste antever que Pedro me negaria? Se tudo continuar assim, entre ódios privilégios injustiças rancores pesares mortes gratuitas, sobretudo por causa dos seres à imagem e semelhança de Ti, ó Pai, renego a condição de Salvador. Se for para eu ter remorsos eternos, renego, ó Pai. Pai, porque lhes perdoar o que fazem se eles sabem exatamente o que fazem e mesmo assim continuam fazendo? Essas zombarias. Se tu és o rei dos judeus... Não és tu o Cristo? ...mas este nenhum mal fez. Mulher, eis aqui o teu filho. Sim, filho, e eis aqui tua mãe, chorando. Dor. Deus meu, Deus meu, por que me desamparaste também desamparo a Ti e aos teus. Vede, chama por Elias. Tenho sede... Rãnnn. Este gosto acre. Ha-ha-ha. Sei, Pai, que sempre fizeste todas as coisas para os Teus próprios fins, e até o ímpio para o dia do mal. Sei, Pai, que tudo acontece para que as Escrituras se cumpram. Mas, Pai, que não seja feita mais a Tua vontade. Apenas por um segundo quero ter vontade, por um segundo apenas.

E (talvez porque ainda doía) com a pouquíssima força que restara enfim murmurou:

__ Pelos camelos...

Deus, perplexo, com toda autoridade possível:

__ QUÊ?! – esbravejou.

__ Pelos camelos... came... eu... eu vou... morrer... pelos camelos... – fechou os olhos e expirou.

Não escurecera. Nem escureceria.

Este conto foi originalmente publicado na coletânea Portal Solaris e também pode ser baixado em pdf neste endereço.

4.5.09

Campanha Espelhos Irreais

Uma conclamação de Ana Cristina Rodrigues

Agora o assunto é sério e venho pedir a ajuda de todos os 4,56 leitores do Talkative Bookworm.

Ano passado, entreguei duas coletâneas para uma editora. As duas foram aceitas, os contratos assinados… A primeira, de Fantasia e FC, foi publicada recentemente. É Espelhos Irreais, resultado de quatro anos de trabalho na Fábrica dos Sonhos, com cinco contos de autores que estão começando na literatura fantástica, de forma promissora.

A segunda… Bem, a segunda NÃO VAI SAIR… Pelo menos não enquanto o resultado da Espelhos Irreais não for satisfatório.

Vou ser sincera: não culpo exatamente a editora, porque eles têm certa razão em não querer arriscar muito. Mas estou preocupada porque a Multifoco "criou" um selo de "antologias-loteamento", ou seja o escritor paga para ter um pedacinho de livro para chamar de seu.

Não foi o caso de Espelhos Irreais. Não vai ser o caso de Ficções Virtuais, se elas sairem. Ainda não é o esquema correto de publicação, em que o autor é pago pelo uso de seu conto, porém ele não vai desembolsar nada e terá seu texto em uma antologia feita da forma mais apurada possível, com a minha integral dedicação, com trabalho e suor meu para ter certeza que o resultado vai compensar.

Então, caro amigo deste blog: AJUDE!

Divulgue o livro, a venda aqui. Leia a ótima resenha do Eric Novello .

Dia 9 de maio vai ser o lançamento paulista, às 20h na Livraria Cultura do Shopping Bourbon Pompéia. Comemore lá conosco! Coloque esta data no seu blog! Avise aos amigos. Mande mensagens pros seus contatos.

Dia 23 de maio, eu vou dar uma palestra para relançar o livro no Rio de Janeiro, sobre Idade Média e Fantasia, no Espaço Multifoco, a partir das 17h. Apareça lá, divulgue, espalhe!

Em breve, teremos eventos em Belo Horizonte e Vitória.

Ajude a nova literatura fantástica brasileira a colocar a sua cara!

3.5.09

O Vale de Gurjal-Al-Fadi



Um conto curto e afiado
por Rita Maria Felix da Silva

Foi no Vale de Gurjal-Al-Fadi, aquele local amaldiçoado por deuses antigos e perversos, que Garen Ordonax lutou sua primeira batalha, cortou a primeira cabeça, transpassou carne humana e assassinou pela primeira vez.

Lá ele renegou seu credo, perdeu a alma de poeta, baniu para sempre o eu-idealista e, por fim, o homem que um dia fora um menino sonhando com glórias, louvores e grandes vitórias, compreendeu o que verdadeiramente era a guerra.

Em Gurjal-Al-Fadi, numa tarde de calor semelhante ao Inferno, ajoelhado e chorando em meio a corpos e sangue e abutres que se banqueteavam, Garen entregou sua alma à sombria deusa da guerra, e com seu espírito foi-se embora o que nele havia de bondade e a humanidade. E a deusa gargalhou satisfeita para Ordonax, pois ele agora era um guerreiro.

2.5.09

Resenha de Nômade

Acabo de publicar uma resenha do livro comentado no post anterior no site Overmundo. Caso gostem do texto, vou pedir para que votem nele, o que aumenta a visibilidade da matéria na home do site. Abaixo segue um trecho da resenha que pode ser lida e votada e comentada aqui.

E o ebook nacional consegue o feito de sustentar o senso de maravilhamento sem deixar de lado a apuração técnica típica do autor, jornalista especializado em divulgação científica. Provando que escrever para adolescentes não é e nunca foi sinônimo de textos mal pesquisados e implausíveis, muito menos de tratados didáticos sem sabor, o jundiaiense encontrou um equilíbrio excelente para sua narrativa. Nem os detalhes relacionados a sobrevivência na selva, ambientes de gravidade zero ou sobre efeitos de ótica, nem o ritmo de aventura, ganchos narrativos entre os capítulos e a construção de personagens foram desprezados. O autor deu tanta atenção ao lado científico quanto ao juvenil de sua ficção e se saiu muito bem em ambos.

Apesar das poucas páginas, nós, leitores, passamos por uma impressionante variedade de ambientações neste breve romance. Tudo começa com uma selva aparentemente normal, onde se encontram os principais personagens do livro, um grupo de adolescentes com idade aproximada de 15 anos. Logo percebemos que aquele é um cenário artificial, construído no interior da tal nave com o objetivo de treinar a ala jovem da tripulação, em uma espécie de acampamento, para enfrentar qualquer eventualidade no novo planeta para onde são transportados. Não demora para uma série de incidentes, gradativamente mais perigosos, deixar claro que algo de errado acontece no mundo tecnológico que envolve aquele pequeno oásis artificial. O casal de protagonistas, Peleu e Helena, são escalados para tentar descobrir o que está havendo, o porquê de eles não conseguirem mais se comunicar com os adultos ou mesmo com Nestor, a inteligência artificial que comanda a nave Nômade.

Ibope