5.5.09

A última revolta de Jesus Cristo

(baseado numa história que tudo indica ser real)

Por Rogers Silva

Para Sinvaldo Jr,
que sempre achou que Jesus deveria ter morrido por algo melhor.

Doía, muito doía, e não havia nada que pudesse fazer para estancar o sangue, que escorria. A impotência doía. Doía e não enxergavam, não viam – ou não queriam ver? Doía e não era dor pouca, pois em todos os momentos se vira sozinho, todos desapareciam, sua única companhia era o desgosto, era. As aves no céu voavam indiferentes. E doía. Agora percebia enfim que doía, e não só percebia como sentia agora todas as dores passadas, agora. A solidão. A ausência machucava, doía. A ferida aberta, e os vermes vindouros. As mãos doíam, e muito. As pernas doíam, e muito. O tronco doía, muito. A flechada, os cuspes, a coroa, os espinhos – tudo doía. Os sarcasmos feriam, e doía. Os risos. Os socos tão-somente nesse instante sentia, e doíam, como socos dados em vão, porque em vão foram. Apenas serviram para aumentar a dor. A hostilidade. Valeria o sacrifício, valeria? O sol quente. O céu claro. A vontade de urinar doía. Os rins doíam, sobretudo. O suor que sujo escorria. O sal. O fel. O mau hálito. As lembranças também doíam. Herodes (Jesus ainda bebê) mandara matar todas as crianças abaixo de dois anos. As mentiras inventadas, a hipocrisia. Herodes não queria adorá-lo, não queria. E o Pai, sabia? Fora cúmplice? Não fora tudo profetizado, não estava escrito? Doía. A crueldade de Arquelau. Os avisos de Deus. As interferências. As tentações de Satanás – tudo premeditado. Doía. Sua história não fora escrita por Si mesmo? A morte de João feria e fazia doer. A cabeça ensangüentada de João. Sangue. Os demônios. A lepra. Os fariseus, que tramaram sua morte. Hipocrisia. Ai de Jerusalém! Doía, porque davam dízimo, conheciam as Escrituras, jejuavam, oravam, mas não viviam segundo a justiça e a fé. Muito. Doía. Os judeus hostis. As enganações doíam, e muito. Todas as dores possíveis nele se convergiam. O tremor. A ira. O ódio. A vingança. As mortes dos que não estavam na Arca de Noé. Doía a piedade e o conseqüente remorso que sentia, agora, só agora, pelos não privilegiados do Pai. As crianças afogadas nas águas do dilúvio. As crianças se debatendo contra as águas salgadas. Seriam salgadas, seriam? A compaixão que nutria, agora, e só agora, por Caim. O sofrimento de Jó era ele, Jesus, que sentia e doía, doía mais do que doeu em Jó. O gosto da fruta (amarga) que Adão comeu doía o estômago. A liberdade, a esperança perdidas, o paraíso, a felicidade perdidos – doíam, e era uma dor que feria. O pranto sobre a cidade condenada. A figueira estéril. As profecias doíam. A ambição dos homens. A agonia passada. E, após todo o sofrimento, a sentença. Meu Pai. Este suor que escorre e se mistura ao sangue, estas lágrimas que escorrem e se misturam ao sangue, esta saliva que escorre e se mistura ao sangue, estes cuspes que escorrem e se misturam ao sangue. As feridas. Os raios do sol nos olhos ardem, doem. Ver a mãe chorando e nada poder fazer dói. Ver os irmãos chorando e nada poder fazer dói. Ver os amigos, sobretudo os falsos, e nada poder fazer dói. Ver os inimigos zombando e nada poder fazer dói. E o Pai, sabia? Fora cúmplice? Não fora tudo profetizado, não estava escrito? Doía. Zombaria. Zombarias? Este peso nas costas dói. O fardo pesado. Os pecados de todos. Os erros. Os desvios de conduta. Os assassinatos. As vinganças. Os adultérios. As ingratidões. Doía. As feridas. As traições. As armadilhas e provações. O fardo. Os tapas no rosto. Os socos. Esta barba espessa e suja. Essa feiúra. Esta ausência. Trinta e três anos de falta doem. Trinta e três anos de mentiras e maldades doem. As marcas das correntes nos pulsos doem. Este zunido intenso nos ouvidos. Os zunidos, conseqüência dos gritos nos ouvidos, doem. Esse riso cínico dói, e muito, demais. As marcas profundas nas costas doem. As pernas cansadas, em conseqüência do longo trajeto com esta cruz pesada nos ombros, doem. E os tombos. Meu Deus, afaste este cálice de mim. Afaste a onisciência de mim, afaste essa capacidade de imaginar o futuro de mim. Afaste a lucidez de mim. Afaste este choro amargo de mim. Afaste de mim este soluço convulso que ninguém vê. Pai, por que não disseste antes que minha morte não era para todos? Pai, por que me enganaste? Pai, que culpa têm os que não reconheceram nem reconhecerão como verdade o que eu preguei? Pai, Tu me fizeste profetizar a traição de Judas. Pai, por que me fizeste antever que Pedro me negaria? Se tudo continuar assim, entre ódios privilégios injustiças rancores pesares mortes gratuitas, sobretudo por causa dos seres à imagem e semelhança de Ti, ó Pai, renego a condição de Salvador. Se for para eu ter remorsos eternos, renego, ó Pai. Pai, porque lhes perdoar o que fazem se eles sabem exatamente o que fazem e mesmo assim continuam fazendo? Essas zombarias. Se tu és o rei dos judeus... Não és tu o Cristo? ...mas este nenhum mal fez. Mulher, eis aqui o teu filho. Sim, filho, e eis aqui tua mãe, chorando. Dor. Deus meu, Deus meu, por que me desamparaste também desamparo a Ti e aos teus. Vede, chama por Elias. Tenho sede... Rãnnn. Este gosto acre. Ha-ha-ha. Sei, Pai, que sempre fizeste todas as coisas para os Teus próprios fins, e até o ímpio para o dia do mal. Sei, Pai, que tudo acontece para que as Escrituras se cumpram. Mas, Pai, que não seja feita mais a Tua vontade. Apenas por um segundo quero ter vontade, por um segundo apenas.

E (talvez porque ainda doía) com a pouquíssima força que restara enfim murmurou:

__ Pelos camelos...

Deus, perplexo, com toda autoridade possível:

__ QUÊ?! – esbravejou.

__ Pelos camelos... came... eu... eu vou... morrer... pelos camelos... – fechou os olhos e expirou.

Não escurecera. Nem escureceria.

Este conto foi originalmente publicado na coletânea Portal Solaris e também pode ser baixado em pdf neste endereço.

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