9.11.08

Uma Arca para Marte

Uma história clássica reescrita por Flavio Moutinho

O trânsito estava ótimo naquela manhã de segunda-feira, e disso o rapaz muito se admirava. Graças a Deus, pensou, mas logo se arrependeu, ao lembrar que esse tipo de comentário, quando cedo demais, dá azar, e o sinal duzentos metros adiante passava para o amarelo. Sua primeira reação foi acelerar, e em segundos calculou o quanto seria necessário afundar o pé no pedal para atravessar o sinal ainda amarelo, antes que se fizesse vermelho, mas, obtendo como resultado um valor maior que a fundura do pedal, resignou-se em frear. Diabo, exclamou, como se fosse o capiroto, antítese de Deus, a obstruir seu caminho e atrasá-lo para o trabalho.

Pacientemente, tamborilando os dedos no volante ao ritmo de um rock guardado na memória, esperou até que a contagem regressiva chegasse a zero. O sinal piscou e então ficou verde.

Noah, pensou ouvir, olhou para a esquerda, para a direita, para trás, e, não encontrando quem pudesse tê-lo chamado, convenceu-se de que era apenas o ronco do motor a acelerar. Noah, por que finges não me escutar? Agora era uma frase inteira, e não apenas o nome gutural que pudesse ser confundido com o motor. O carro já se ia a sessenta, setenta quilômetros por hora e a voz grave e rouca não parava de lhe encher a cabeça com Noah isso, Noah aquilo, Foste meu escolhido, A humanidade depende de ti, Uma chuva de meteoros está para acontecer e ameaça a vida na Terra. Chega! Cala a boca! Sua reação, contudo, não foi suficiente para parar a voz, que continuava a mesma ladainha. Somente tu podes salvar a minha obra, Não sabes do poder que se esconde por sob essa frágil pele humana, Com o cérebro te tornas mais forte que o vento e as pedras e o fogo. Olhou o rádio, estava desligado. Quem podia ter tido a infeliz idéia de esconder um gravador dentro do carro, era o que Noah procurava descobrir a todo instante, e pensando bem a voz parecia a de Jonas. Filho da mãe, vociferou, xingando até a centésima geração antepassada, nascida em tempos em que a Bíblia era um rascunho riscado e rabiscado, com setas de continua aqui e notas explicativas no rodapé, daquele que julgava responsável pelo trote. Pára com isso! Se não era brincadeira do colega, de quem seria, ou eram os primeiros sintomas de loucura? Para sua sorte já estava próximo do trabalho, e em quinze minutos, os mais longos e enlouquecedores quinze minutos de toda sua vida, estacionava diante do escritório.

Ainda não sabe quem eu sou, Noah? Sou o Pai... Chama-se Josué o meu pai... sou o Filho... qual dos três, Lucas, Tiago ou Mateus?... sou o Espírito Santo... E eu definitivamente estou ficando louco... Não, Noah, não está... Como eu posso ter certeza disso?... Ninguém que cogite a hipótese de ser louco pode de fato estar louco. Nisso a voz tinha razão: fosse a loucura ciente de si, não haveria loucos, ou seríamos todos. Noah concentrou-se em explicar logicamente o que acontecia, mas, não encontrando lógica em coisa alguma desde o sinal, deixou-se relaxar e escutar o que mais aquele grave e rouco Deus, ou fosse o que fosse, tinha a lhe dizer. Preciso que construas uma arca, e nela hás de salvar tua família e mais dois seres de cada espécie hoje vivente neste terceiro planeta do sistema solar. Uma arca, pensou o rapaz, mas para a voz tanto se lhe fazia se o pensamento era dito ou não dito, Sim, uma arca. Mas, por Diabo, desculpa-me Senhor, por Deus, uma arca seria útil em caso de um alagamento, uma enchente ou um dilúvio, mas de que adiantará frente a uma chuva de meteoros? Com ela, Noah, ponha-te daqui para fora, a tua família e aos outros casais, estareis a salvo no quarto planeta, a próxima estação. E como vou fazer para a arca sair desse planeta e chegar a Marte, um foguete não seria mais adequado? Vira-te, homem, que eu só sei construir arca!

Onisciente, pois que sabe até ler pensamentos, mas que onipotente é esse Deus, que manda o homem se virar em vez de lhe dar explicações mais detalhadas sobre sua idéia estapafúrdia de fazer caber numa arca todas as espécies da Terra e levá-las juntas para uma viagem interplanetária? Noah evitava pensar nesse tipo de coisa, sabia que a voz não aprovaria, e por isso se preocupou mais em como faria o que precisava ser feito. Não tinha qualquer experiência com engenharia, náutica ou aeroespacial, era apenas um graduado em administração, pós-graduado em marketing, e mal empregado como secretário executivo na mesma empresa por vinte anos. Esse Deus não tinha pessoa melhor para escolher? Possivelmente Noah não tinha outra opção, mas acabou aceitando de bom grado a empreitada, não perderia grande coisa em largar o emprego, e caso fosse verdade que a chuva de meteoros destruiria a Terra, riria do alto de sua arca espacial ao ver em pedaços o chefe que sempre o preterira em benefício dos puxa-sacos, que nunca lhe oferecera uma função condigna com sua formação acadêmica, a quem Noah diria, se tivesse oportunidade, Fui escolhido pelo Senhor, Por mim é que não, responderia desdenhoso o chefe, Não, de fato, mas por Nosso Senhor Todo Poderoso.

Telefonou para o escritório para avisar que não iria, estava doente, febre e dor de cabeça, dengue talvez, todos os vizinhos também tiveram, enquanto ligava o carro e tomava o caminho e volta para casa. O chefe só daria por sua ausência no meio da manhã, quando, em estado avançado de síndrome de abstinência de café, chamasse seu nome e o fizesse buscar-lhe uma xícara. A voz não o deixou um só segundo, Precisarás de muita madeira e pregos e betume para a calafetagem e panos para as velas e, Chega, Noah exasperou-se, cansado daquela lengalenga antiquada que teria ajudado seu antepassado a sobreviver a quarenta dias e quarenta noites de chuva, de água, porém, e não de asteróides, num tempo em que não havia fibra de vidro, aço inoxidável e motor de explosão a hidrogênio, Assim eu não consigo pensar direito. Com isso calou-se a voz pela primeira vez desde que surgira, e muda ficou até que Noah lhe desse uma segunda ordem.

Ester, chamou o homem à esposa ao chegar em casa, desça e traga as crianças. Crianças não eram mais, Lucas contava vinte e dois anos e cursava o terceiro ano da faculdade de engenharia florestal, Tiago completara dezessete um mês antes, e em Mateus recém nascera a primeira espinha aos treze, mas o pai teimava em chamá-los assim, o que muito os enfurecia, especialmente diante de visitas. Não era o caso, estavam sós. Sentaram-se os cinco na sala e, com o tom solene que a situação exigia, Noah se pôs a contar-lhes o que já se sabe, sobre a voz e a missão a ele outorgada. Eu não estou louco, concluiu, diante de quatro olhares reprovadores. Ninguém aqui disse que estás, respondeu-lhe o primogênito, o olhar sarcástico desmentindo suas palavras, E você, pare com isso, a mim me basta a voz a me chamar de tu. Deus se dirige a você em segunda pessoa do singular, surpreendeu-se a esposa, quanta intimidade. Quando Noah se levantou, porém, seu porte era outro, tinha se transformado em um general de dez estrelas, dando ordens e atribuindo funções, a Lucas coube a gerência intelectual, Tiago foi encarregado de conseguir os materiais, Mateus ficou com os arremates, ele próprio estudaria os manuais de direção no mar e no ar, obrigando a todos que unissem forças para o projeto, ainda que não dessem o necessário crédito ao que lhes dizia o pai, quem preferisse não ajudar que ficasse em terra quando adviesse o cataclismo. Com que madeiras, pregos, betume e panos, com que aço, fibra de vidro e motor a hidrogênio, com que projeto hidro e aerodinâmico, ainda não havia pensado em nada disso, mas que tinham de construí-la era fato consumado.

Em quanto tempo vem a chuva de asteróides? A pergunta foi feita pelo filho do meio no sétimo dia da empreitada. A arca já se ia com o esqueleto pronto, e as primeiras ripas do arcabouço de madeira estavam sendo encaixadas e devidamente pregadas. O pai não sabia a resposta, esquecera de perguntar ao divino patrão qual seu prazo para concluir a obra, e era melhor assim, ou corria o risco, como tinha o hábito de fazer, de deixar o grosso do trabalho para a véspera. Tudo deve ser feito como se o apocalipse fosse acontecer amanhã, porque um dia ele há de ser de fato amanhã, e nesse dia precisamos estar prontos para partir. Essas palavras sábias disse-as para que ninguém mais lhe perguntasse o prazo, enquanto ele próprio não conseguia deixar de pensar nisso, é difícil, ou impossível, segundo alguns teóricos da administração, planejar sem saber para quando.

Em quinze dias já se via no quintal de Noah algo que pudesse ser chamado de arca. Longe dos trezentos côvados, o que é um côvado, afinal, quarenta, cinqüenta, sessenta centímetros, depende de ser egípcio, hebreu ou mesopotâmio, mas a estrutura, enfim, era suficiente, de acordo com os cálculos de Lucas, para suportar o enorme peso da biomassa que precisariam carregar. No princípio os vizinhos estranharam a movimentação, ainda mais quando o motivo foi ganhando os contornos de uma embarcação, Noah nunca fora arquiteto, marceneiro, escultor, nunca calejara as mãos com serrotes, martelos e chaves de fenda, mas com o tempo foram se acostumando com a mudança, que ele se interessasse por trabalhos manuais era bem visto na redondeza. Como faremos para levarmos os peixes e baleias e golfinhos? Ninguém tinha pensado nisso antes que Mateus perguntasse, só ele mesmo, naquela fase em que nem o próprio nem o mundo sabem se é um adolescente ou uma criança, umas vezes agindo como esta, noutras falando como aquele. Eles não tiveram problema com o dilúvio, adaptados que estavam à vida sob as águas, um pouco a mais, um pouco a menos, tanto se lhes dá, mas agora o caso era outro. Não tiveram problema uma ova, corrigiu Lucas, se choveu água doce e diluiu o sal dos mares, todos deviam ter inchado até explodir. Se souberam escapar a isso, agora que dêem um jeito de novo ou se extingam, vamos voltar ao trabalho. A Ester não agradou a resposta, Coitados dos golfinhos, pensou, não dos tubarões e baleias assassinas, mas os golfinhos são tão fofos, adjetivo esse que só sai bem da boca de uma mulher, e concluiu em voz alta, para que todos que não lessem pensamentos pudessem escutar, Antes levarmos os golfinhos às hienas. Não me oponho, respondeu o marido, se você achar uma forma de levá-los, eu é que não posso interromper a obra para pensar nisso.

Ao longo do vigésimo dia a arca já era capaz de flutuar sobre as águas, embora ainda estivesse no quintal de Noah, por dentro madeira, por fora fibra de vidro. Soubessem do caso, os donos de estaleiros estariam se perguntando como, em tão pouco tempo, pôde uma família sem qualquer instrução náutica construir um barco daquele tamanho, Inspiração divina, era a única reposta possível, e os senhores sabem-tudo se ririam da ingenuidade do interlocutor. Veremos o quão histriônico será o riso desses homens quando as rochas espaciais, primeiro umas míseras bolas de gude, capazes de, com a queda em alta velocidade, abrir fendas do tamanho do Grand Canyon, depois pedregulhos grandes como um campo de futebol, começarem a se suicidar neste planeta em breve estéril. Faltava apenas, e não era pouco, adaptar a embarcação para uma viagem interplanetária. A idéia partiu de Tiago. Com um tanque de cinqüenta metros cúbicos de água e uma bateria de 70 quilowatts-hora conseguimos hidrogênio suficiente para nos servir de combustível até Marte. Como chegou a esses valores, perguntaram o pai e a mãe, surpresos com a precisão do filho do meio, Fácil, saiu-se bem Tiago, mostrando-lhes o rascunho de seus cálculos, fórmulas e números e letras, romanas e gregas em igual proporção, que não faziam o menor sentido a quem não estivesse familiarizado com a notação matemática, aí inclusos Noah e Ester. Não temos espaço no barco para cinqüenta metros cúbicos de água, garantiu o pai, e o filho prometeu que tentaria de alguma forma diminuir o volume necessário, se otimizando a eficiência da hidrólise, se aumentando a voltagem da bateria, ainda não sabia. De toda forma, precisariam ainda fechar hermeticamente a nave, para que, chegando o esperado momento da gravidade zero, não saíssem todos, homens e animais, um para cada lado, flutuando no vazio do espaço sideral, imagina o azar da zebra se a deriva ao acaso a levasse diretamente para as mandíbulas do leão.

Com um tanto de criatividade e competência, a uns mais da primeira, a outros mais da segunda, só não brigaram feio porque a discussão, além de inútil, consumia o tempo de que dispunham para os retoques finais, sob a responsabilidade de Mateus, no dia trinta e cinco de contínuo labor batizaram à arca Gênesis 2.0 e partiram para a fase seguinte do projeto. Chamamo-la arca por força das circunstâncias, para não dizer que o produto da gestação se afastou sobremaneira do objetivo da concepção, mutante adaptada ao propósito, porquanto mais semelhasse um ovóide, com a proa adelgaçada e a popa bojuda, e uma casca metálica, que, quando aberta, expunha, não clara e gema, mas cinco mastros e suas respectivas velas. A arca, pois, conversível, transformava-se em nave espacial com o fechamento da superfície de aço inoxidável. O problema do combustível foi resolvido com um acerto nas equações de Lucas, tanto no que diz respeito ao volume de água como à energia da bateria necessários para a viagem de setenta milhões de quilômetros. Ester também saiu satisfeita, tendo conseguido permissão para colocar o casal de golfinhos, de que ela fazia tanta questão, no tanque de água, Se eles não se incomodarem com os choques, gracejou Noah à proposta da esposa. E agora, perguntou-se a si próprio Noah, e manifestou-se a voz, que até então se mantivera calada, lembremos que por ordem deste homem mais de um mês antes, Queres que eu responda, ou a pergunta é figura de retórica. Noah se assustou, não se lembrava mais de como a voz era parecida com a de Jonas, e julgou por um instante que o colega brincalhão estava em sua casa. Diga-me, por favor, e agora? É chegada a hora de partires, Noah, chama tua família e sai à cata de um casal de cada espécie. Qual a verdadeira definição de espécie, Senhor, quis saber o escolhido, se nem os cientistas chegam a um consenso quanto a isso, se o que diferencia a onça parda da onça pintada é apenas a proporção de material genético que compartilham, um pouco a mais que com os gatos? Descobrirás em tua jornada, encontrou a voz esse subterfúgio para não responder de forma objetiva, Saberás distinguir o essencial do supérfluo assim que o vires.

Chamou pelos três filhos, pela esposa, Vamos embora que as pedras vão rolar, e quando viu lá estavam eles com os primeiros tripulantes da arca, Lucas e dois cachorros, precisavam se certificar de não estarem levando mais de um casal de pulgas, Mateus e dois coelhos, maldita a hora em que o filho caçula incluiu entre os leporídeos uma fêmea no cio, sairiam dois e chegariam sabe-se lá quantos, Tiago e dois iguanas, se um casal, se ambos machos ou fêmeas, quem há de saber distinguir o sexo dos répteis. Também tinham de se limitar a duas formigas, mas a espécie estaria fadada à extinção se uma delas não fosse a rainha, bem como as abelhas e cupins, estes, então, melhor nem tê-los a bordo, se Deus lhes permitisse, pois se corria o risco de ter o esqueleto de madeira transformado em queijo suíço antes de atravessarem a atmosfera. Gênesis 2.0 saiu rebocado de seu porto seco, de todos os passantes chamando à atenção, um gigantesco ovo prateado a atravessar a cidade, não atrairia menos olhares se estivesse aberto, com as velas amarradas e os mastros rasgando as nuvens do céu, até o mar mais próximo. O projeto lhes permitiria que fossem pelo ar, decerto chegariam mais rápido, mas decidiram, Noah, é bem verdade, decidiu sozinho, e os outros só puderam concordar, ir por terra, primeiro porque dessa forma o translado é mais discreto, segundo porque gastariam uma quantidade desnecessária do precioso combustível, e terceiro porque já poderiam ir recolhendo uns casais pelo caminho. Foi o caso dos gambás, içados a bordo em uma esquina e devolvidos ao solo na seguinte, Eu é que não vou até Marte com um cheiro desses, reclamou Ester, dos crocodilos e das capivaras, imediatamente separados em jaulas para chegarem as duas espécies ao novo hábitat, vivas estas e famintos aqueles.

Duas horas depois a arca já se encontrava em água, o trabalho que deu a Noah, sua família e uma dúzia de estivadores mal pagos para descê-la do reboque será propositalmente omitido, tendo em vista a fluência do relato, desnecessário seria gastar linhas e linhas, parágrafos, páginas inteiras até, dependendo da prolixidade do narrador, para contar como fizeram. Não sabiam os tais estivadores que, em os ajudando, e sobretudo em não aproveitando da carona, estariam se condenando ao mesmo destino que todo o resto da Terra que não arrumasse uma forma de se mandar para Marte, ou outro sítio qualquer fora do alcance dos asteróides. Interessa, pois, que o motor de popa foi testado com sucesso, e zarparam tão logo foi suprido o estoque de óleo diesel, sim, diesel, a um planeta ameaçado por asteróides não se poupa da emissão de gases tóxicos, o efeito estufa mataria em séculos, no mínimo décadas, enquanto a chuva de meteoros era iminente, e do hidrogênio muito precisariam para vencer a barreira atmosférica.

Uma vez no mar, portanto, com as velas içadas e o vento de través, finalmente pôde partir Gênesis 2.0 em direção à África, a primeira escala. O plano de viagem traçado por Lucas incluía a passagem pelo Cabo da Boa Esperança, depois Oriente Médio, Índia, China, Japão... Lucas pensou antes na geografia que na física, pois se era mais próximo começarem pela África, mais dispendioso era dar a volta ao mundo carregando elefantes, rinocerontes e hipopótamos, melhor seria deixá-los para o final. Não nos esqueçamos da Austrália, lembrou-se Mateus dos ornitorrincos, a prova real da criatividade de Deus, Ou do reaproveitamento de modelos prontos, o pai respondeu de imediato, um bico de pato, um rabo de castor, põe ovos e dá leite. Sim, precisamos ir à Austrália, concordou Ester, mas seu motivo era outro, tinham de levar os coalas e cangurus. Passariam ainda pelas ilhas da Polinésia, Galápagos, Havaí, chegariam de volta à América pela costa pacífica, e, de lá, a parada seguinte era Marte. Pelas contas de Tiago, a viagem náutica duraria três meses ao vento ou setenta dias ao diesel, mais provavelmente um tempo intermediário, a vela e o motor têm lá suas vantagens e desvantagens, mas o que ninguém sabia era se ainda haveria setenta ou noventa dias antes que o céu, sob a forma de asteróides, caísse sobre suas cabeças.

Noah! O que é agora? O que é o quê, não falei nada, respondeu Ester, franzindo as sobrancelhas, surpresa com a reação do marido. Não é você, mulher, é a voz... Como, se eu não escuto? Não escuta porque ela só fala comigo, e voltando-se para o divino, Diga, Senhor, o que é agora? Tens mais sete dias para concluir tua missão, nem uma manhã a mais, nem duas horas, nem nada, em sete dias deverás estar em segurança no quarto planeta. O que Ele diz, o que Ele diz, perguntou curiosa a esposa, é detestável saber que os dados estão sendo jogados e não poder saber qual sua sorte, mas mais detestável é quando alguém lhe faz perguntas insistentes aos cutucões, como se a pressão do dedo indicador sobre a pele fosse capaz de extrair as respostas. Ele diz que nós estamos ferrados, nós não, que a qualquer momento podemos desistir dos animais e nos mandar para Marte, para isso temos a arca, mas as outras espécies não estão em boa situação. Por quê, e ele repetiu o prazo que tinham, como a voz dissera pouco antes, os sete dias, os mesmos sete dias, Noah não chegou a fazer ele próprio essa comparação, que o dono da voz uma vez tivera para fazer do Nada aquilo tudo que eles tinham diante dos olhos e além. O capitão convocou a tripulação para discutir a nova informação, E agora, concluiu com um questionamento. Agora vamos correr para pegar a maior quantidade possível de casais, e quando chegar o momento nós partimos com quem já tivermos recolhido, Mateus e suas palavras jovens e sensatas. Faltava um dia de viagem à vela para que dessem à costa africana ocidental, mas não podiam mais depender do vento, tinham de acelerar a previsão de três meses para uma semana. Liguemos, então, o motor a hidrogênio, sugeriu o calculista Lucas, e, sugestão aceita, velas recolhidas, casca metálica fechada, em trinta minutos fizeram o percurso que de outra forma teria durado no mínimo vinte horas.

Leões, leopardos, chitas e hienas, mais difícil era convencê-los a entrar na arca que separá-los de girafas, zebras, gnus e antílopes, não adiantava explicar-lhes a nobreza do objetivo, a salvação das espécies e tal, que, em indo, estariam salvos, e, principalmente, que melhor seria esperar a reprodução daquelas caças no novo planeta para saborearem um banquete mais faustoso. Incrível como os seres não pensantes, os pensantes com certa freqüência também, se importam tão-somente com o aqui e o agora, quando o amanhã e o depois de amanhã conflitam com o imediato, como nos arrependemos de não termos entrado em algumas arcas passadas na nossa vida. Teimoso como uma mula, dizem, mas Noah descobriu da forma mais difícil que muitas espécies caberiam nessa comparação, as mulas, coitadas, é que ganham a fama, e delas já havia sem tanto esforço o casal dentro da embarcação.

Atravessaram a África por sobre o continente, se iam a hidrogênio já não era necessário o desvio pelo sul da África do Sul, e logo chegaram ao Oriente Médio, de onde recolheram camelos e dromedários, estes menos se importariam de morar em um planeta sem água. Tem água em Marte, corrigiu a voz, não são os canais que um dia os homens disseram ver, mas tem, e não é pouca. Salgada ou doce, era importante saber, um atum não sobreviveria no rio, no mar um pirarucu murcharia como um maracujá, De uma e de outra, lá é como cá. E cabem os golfinhos que Ester pretende levar? Cabem os golfinhos, cabe também um casal de cada espécie de animal aquático. Mas como, quis saber Noah, prevendo que por uma segunda vez Deus o mandaria que se virasse. Uma pescaria não estava em seus planos, não dispunham de tempo suficiente para fisgar marlins, baiacus, tucunarés, peixes de mar e de rio, peixes abissais, de toca e de superfície, se pescassem um terceiro da mesma espécie teriam de devolvê-lo à própria sorte, um triângulo amoroso seria problema bastante difícil de contornar, e, além do mais, onde arranjariam espaço na arca para toda essa população, se mal transportados já seriam os golfinhos, talvez pudessem levar um par de enguias que servissem de recurso renovável e multiplicável de eletricidade para a hidrólise da água em hidrogênio e oxigênio. Perdoe-me, Senhor, mas isso é impossível, a Ester já me custa convencer a deixar de lado os golfinhos, que levemos, portanto, esse casal apenas. Seja feita a tua vontade, homem, assim na Terra como em Marte. Minha qual nada, da minha esposa, que por mim nem os golfinhos levaríamos, o trabalho a mais que nos darão para capturá-los não compensa a salvação da espécie, para o que Deus respondeu, a contragosto de Noah, a satisfação de Ester, A vontade do homem é a vontade da mulher atribuída a si, desde a opção de Eva pela maçã em vez do éden. Sobrevoavam Israel, a cidade de Belém, mais especificamente, quando esse diálogo se deu, e da voz se fez um quase choro, empastando o que antes era grave e rouco, ao se recordar do tempo em que seu filho ali vivia, se para uma entidade onipresente a noção de tempo faz algum sentido.

Os tigres da Índia, as renas da Rússia, os pandas da China, mas o momento mais tenso da travessia supra-asiática aconteceu quando Gênesis 2.0 e sua tripulação passavam por sobre o Tibet. Foi Mateus o primeiro a avistar a estranha criatura branca e peluda que andava com segurança às bordas dos penhascos himalaios, Pai, venha ver, gritou, a voz trêmula, se pela descarga de adrenalina ou pela puberdade, provavelmente uma composição dos dois, e não só o pai correu como também a mãe e os irmãos, O que houve, perguntaram todos em uníssono. Vejam, é o pé grande! O pé grande, pois sim, aquilo era um urso, grande decerto, mas ainda assim um urso como tantos outros, como, inclusive, os casais que já podiam ser encontrados dentro da arca, brancos, pardos, era o que faltava, chamar-lhes Mateus à atenção por um animal mitológico, chegassem à América e o filho mais novo juraria ter visto a anaconda de vinte metros, ou na Escócia o monstro do Lago Ness. Os animais reais já davam trabalho suficiente, não precisavam que um adolescente imaginasse novas espécies da carochinha.

Gênesis 2.0 voava em céu de brigadeiro, a uma velocidade de oitocentos quilômetros por hora, sobre o Oceano Índico Norte, por cima da linha imaginária do Equador, a noventa e cinco graus leste de longitude, com rumo fixo em sul-sudeste, aproado à costa oeste da Austrália, quando o mar, vinte mil pés abaixo da nave, começou a se revoltar. Um tsunami, gritou Tiago, Sim, parece, mas pelas minhas contas ainda temos dois dias antes da chuva de meteoros, respondeu o pai. Desculpa-me, era a voz, Noah já não mais a confundia com Jonas, este asteróide escapuliu sem querer. E por pouco não nos acertou, reclamou o chefe de família, desdenhando daquele Deus que não demonstrava tanta ciência quanto pretendia, tanto poder quanto imaginava, tanta presença quanto julgava. Do alto, Noah, Ester e seus filhos acompanharam quando as ondas se formaram e destruíram pouco a pouco a Indonésia, a Tailândia, a Índia e o Sri Lanka, versão índica do que poderia estar acontecendo a qualquer momento ao longo dos trezentos e sessenta graus do planeta, inundando, como a Ásia, também a América, Europa, África e Oceania, para estes não precisaria de tanta água, milhares de atóis habitados por gente que espera que o dia de se afogar chegue depois da morte por causas naturais, e quem há de dizer que não é uma causa natural a onda gigante. Vamos para Marte, pediu Mateus aos soluços, Vamos sim, meu filho, mas não sem os cangurus e ornitorrincos, e já estamos próximos de pegá-los. E os golfinhos, acrescentou Ester, e diante deste comentário chiou o marido, Eu avisei para não deixarmos a pesca para a última hora, agora vai ser mais complicado.

Subiram os golfinhos, tiveram de subi-los, ou Ester se queixaria por toda a viagem, e Noah bem sabia como a esposa podia ser inquieta quando se punha a reclamar, um cadinho a misturar de forma desenfreada todos os problemas dos últimos trinta anos, como se fosse tudo da mesma ordem de grandeza. Sim, querida, o marido assentiu, ou se lhe acabaria a audição até Marte, não iam como quem vai e volta de bicicleta à padaria. Noah desceu a arca no mar de Timor, a meio caminho entre a ilha indonésia e a costa norte da Austrália. A casca metálica foi abaixada, os mastros expostos à luz do sol e as velas panejaram até que Noah achasse a melhor posição. Com o que pegariam os golfinhos, ninguém previra este detalhe, um puçá improvisado, grande o suficiente para caber um casal dos cetáceos, mas mesmo depois de aprisionados, graças à arte de Ester no preparo da rede e à maestria de Lucas, surpresa para todos, talvez até para si próprio, em seu manuseio, ninguém ainda tinha pensado na alimentação dos pobres golfinhos, o que haveriam eles de comer em um planeta sem peixes e moluscos e crustáceos, condenados estavam à morte por inanição, se antes não os matassem os eletrochoques. Como fizera Noé com os polvos e as lulas e os caranguejos, como fizera para recolher dos ursos árticos aos pingüins antárticos, e pô-los junto aos gatos do Saara, em meio a tais pensamentos hereges Noah aproou o rumo à cidade de Darwin, porto mais próximo, onde podiam se abastecer de comida, para que não fosse necessário carnear os animais a salvo dos asteróides mas não dos estômagos famintos, de combustível e dos últimos tripulantes, ainda não se tinham esquecido dos cangurus e ornitorrincos.

Não tiveram tempo de escolher. Cada filho foi para um lado à procura dos animais, não seria fácil encontrá-las, espécies silvestres, no meio de uma cidade cosmopolita, mas Tiago deu a sorte de tomar o rumo do zoológico, Achei, gritou pelo walkie-talkie, Como não pensamos nisso antes, no Brasil mesmo já teríamos enchido a arca. Não era o ideal, animais de zoológico não são como os da vida selvagem, como se sairão fora das grades é sempre uma incógnita. A cada par de ouvidos chegava simultaneamente o Achei de Tiago, fundo sonoro para o que cada par de olhos via no firmamento, rochas flamejantes cruzando o céu, vindo de todos os lados, indo para todos os lados, com destino ao solo, cada uma poderia por si só destruir a Terra, do que não seriam capazes todas juntas. Corra, Tiago, esqueça os animais, vamos embora, gritou a mãe, mas o filho teve uma idéia melhor, pôs dois coalas debaixo da blusa, pegou um ornitorrinco pelo bico, outro pela cauda, montou no dorso de um canguru e, aos saltos, mandou-se para a arca mais rápido do que se fosse sozinho a pé, a fêmea veio atrás, temendo que aquele humano fosse levar seu marido para um harém de cangurus, como podem os animais ser assim tão ciumentos, e como pôde o ciúme salvar-lhe a vida, levando-a para sua condução para fora do planeta ameaçado.

A arca cheia, a família completa na cabine, os animais acondicionados ao longo e ao largo da nave, Noah fechou a casca prateada, ligou o motor a hidrogênio, e em pouco tempo estavam sobrevoando a costa leste da Austrália, o mar tinto de arco-íris pelos corais, que pena será uma cratera no lugar dessa maravilha da natureza, por anos e séculos e milênios esculpida pelas mãos da mesma criatura que agora ordenava sua destruição, como um Michelangelo a dinamitar a capela Sistina, tempos antes de Alfred Nobel inventar a dinamite. Sendo a reta a menor distância entre dois pontos, Noah não podia pegá-la, ou corria o risco de dar com a embarcação em um asteróide, tantos eram os que então começaram a cair, um pela esquerda, outro pela direita, uma tempestade sólida, e manobras a mil e duzentos quilômetros por hora não eram exatamente com o que ele estivesse acostumado. Pelo menos não tem sinal vermelho, pensou, e mais uma vez se viu enganado, Diabo, ato falho, quando estava para cruzar a rota de migração das gaivotas do Pacífico, acelerou, antes que o vértice de pássaros chegasse à arca, pouco se lhe dava se alguns fossem morrer com o choque, o perigo maior é entrarem na turbina e quebrarem algum componente do motor, freou, mas parar não era possível, pois parados a tendência é que despencassem em terra como mais um daqueles asteróides. Abaixou a altitude, precisavam ganhar velocidade novamente para deixar a atmosfera para trás.

Olhe, papai, voltamos para a América do Sul, observou Mateus, para quem a viagem mais valia em estudos de geografia que mil livros de oitava série. A uma velocidade daquelas mal puderam ver o Chile, fino como uma bengala, com o cajado voltado para o sul. Minutos mais tarde passavam por sobre a cidade de onde tinham saído, Nosso bairro, nossa casa, tudo está destruído, soluçou Ester, no momento em que uma rocha do espaço caiu no meio da rua e a onda de choque fez ruir casas e prédios e hospitais, bem como antes viram o tsunami fazer na Ásia, É o edifício do seu trabalho, Noah, veja como eles correm. Noah identificou Jonas, definitivamente não era ele o dono da voz, por mais xingamentos que tivesse recebido, quanta injustiça, Noah já o sabia, mas agora era certo, viu o chefe, e pôde jurar, por leitura labial, ainda que nunca tivesse aprendido a técnica e a distância não permitisse sequer ao maior experto, que ele o chamava Noah, Noah, aprendera o nome do secretário executivo, talvez o promovesse, lhe aumentasse o salário, se ganhasse uma carona na arca espacial, nessas horas os safados oferecem propinas e cargos e vantagens, mas de nada valeria a promoção e o salário se nem planeta haveria mais. Noah aproveitou o vôo rasante para ganhar impulso e velocidade, sem os quais não conseguiria vencer a atmosfera, deu um último adeus para o povo em desespero e subiu, subiu, até se transformar em um ponto, até nem mesmo ponto se ver.

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A história acaba quando Gênesis 2.0 entra no espaço sideral, deixando para trás a atmosfera terrestre, porque o narrador, não sendo Deus, é onisciente apenas na Terra e no que diz respeito à família de Noah, não se teria resposta para o que acontecia na França quando Noah estava na África, e por que, aliás, alguém haveria de perguntá-lo, que relevância teria para o andamento do relato, mas há quem precise de detalhes, a cor dos olhos, a cor da calça, não faz diferença se preta ou verde fosforescente. Da mesma forma não se há de perguntar o que se deu em Marte, se lá chegaram de acordo ou se um atalho os levou à terceira lua de Saturno. Fato é que em Terra nunca mais se ouviu falar de pererecas, lagartixas, pingüins e seres humanos.

7 comentários:

tibor disse...

Pouquíssimas vezes senti tanto prazer numa leitura como agora. Ex-ce-len-te conto. Parabéns entusiásticos ao Flávio. Prosa maravilhosa.

Romeu Martins disse...

Opa, valeu pelo comentário entusiasmado, Tibor. Também achei o texto muito prazeroso e divertido. Flávio é um baita prosador, espero que tenha muitos mais contos para nos mostrar...

Helena disse...

Maravilha, Phla! Reli de novo com o maior prazer. E olha que ja lera (odeio este tempo verbal) umas 3 vezes para o CACAUS. Mas a leitura descompromissada de notas e comentários é a ideal. Acho que só agora curti totalmente a divertida saga do novo Noé embora sempre tenha adorado como já coloquei nos comentários na OE. Lembro que, inclusive sugeri que mandasse para concurso.

besos,

Mhelionese

Romeu Martins disse...

Pena que o blogger não separa as postagens em categorias, como faz o wordpress, ou eu criaria uma tag para esses textos pós-bíblicos...

Brigado, Mhelionese pelo comentário e pela indicação

Fernando S. Trevisan disse...

Maaaas como amigo Romeu, o blogger não tem tags? E o que são aquelas lá no meu blog, hum? Claro que separa em tags, como o wordpress - só não em tags *E* em categorias. Mas, para que?

E vou me unir ao coro: excelente! E mini-resenhado :D

Abs e obrigado!

Romeu Martins disse...

Hehehe, pois agora, ter tem, né? Mas acho o sistema do wpress mais organizado que este daqui...

Eu que agradeço, Trevisa e ainda aguardo um conto teu.

Octavio Aragão disse...

Flávio, uma graça de conto. Que domínio de linguagem e que leveza.

Parabéns!

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