3.11.08

O Criador e o Espírito

Uma história sobre finais trágicos
por Rita Maria Felix da Silva

Num recanto fora da realidade, o Criador do Universo ponderava. Estava de pé, braços cruzados, o semblante pesaroso e sombrio. Em seu ombro direito, o Espírito, segundo membro da Trindade, repousava.

Após o que pode ter sido alguns segundos ou até mesmo uma eternidade, ele apontou para sua obra e assim falou:

— Veja, Espírito, o que tragicamente ocorreu com este universo: corrompido de modo irrevogável, irremediavelmente degenerado, desviado e perdido de qualquer propósito original. Um reino de caos e maldade, uma abominação que ofende a si mesmo... E a mim. Que isso termine agora!

E estalou os dedos da mão direita e o universo se contorceu, gritou e explodiu. Da infinidade de energias liberadas, o Criador ordenou que um novo cosmo começasse a se formar, enquanto lágrimas escorriam-lhe dos olhos.

— Mais uma vez você chora. — observou o espírito.

— Sim. Essa foi a versão 2718 do universo. Uma das que mais gostei... Particularmente aquele mundo...

— A Terra?

— A Terra. Eu tinha muita esperança sobre ela. Você me conhece: não há maior felicidade para mim que criar um universo... Nem tristeza mais profunda que destruir um. Trilhões de seres extintos num só instante. Nada me machuca o coração mais que isso.

— Criador, embora nenhuma coisa possa ser escondida de mim, sempre escolhi respeitar sua privacidade. Há, porém, uma pergunta que, há tempos, desejo fazer. Importa-se?

O Criador do Universo sorriu, um riso que poderia gerar uma centena de sóis numa galáxia e apagar uma centena em outra:

— Não. Entenderei como uma cortesia entre nós. Pergunte o que desejar.

— 2718 universos. Todas essas vezes, em nenhuma ponderou sobre a moralidade disso? Quero dizer, não seria mais correto deixar que o universo — se corrompido, pervertido, como fosse — continuasse existindo, do que retirar a vida de tantas criaturas? Nunca se questionou sobre o que está fazendo?

— Todo o tempo, Espírito, todo o tempo... — respondeu o Criador e naquelas palavras havia dor suficiente para que a população de um bilhão de mundos cometesse suicídio — Mas... Vamos. Devemos agora ir falar com o Terceiro de nós... Meu Filho. Suponho que ele vai querer tentar salvar este novo universo também.

Lá foram ambos. O Criador nada mais disse o resto do caminho. O Espírito cantarolou a melodia mais triste que se possa imaginar.


FIM

Dedicado a Jean Gabriel

6 comentários:

Helena disse...

Eu conhecia este conto, Rita e ja devo ter elogiado pra você. Muito bom, bem no meu espírito apocalíptico. O Romeu escolhe sempre bem.

beijão,

Mhellraiser

Romeu Martins disse...

Eu escolho e sou escolhido, Mhellraiser.

Ficções com temas bíblicos estão entre as minhas predileções.

Octavio Aragão disse...

Muito, muito bom!
E Romeu, FC Bíblica será a próxima moda, quer apostar? ;-)

Romeu Martins disse...

Hehehe, seria legal, Octavio.

Saiu uma coletânea ha pouco tempo de ficção biblíca (não necessariamente FC). Li só um conto, do Karel Capek, retratando Pilatos...

Mas eu gostaria muito de ver uma boa coletânea com contos fantásticos inspirados em religiões... Incluiria este da Rita e o teu da Terra Incognita, sem dúvida...

Octavio Aragão disse...

Depois do New Weird, o Post-Theologic (fala rápido pra ver que efeito fonético maneiro que dá... soa *posteológico* e tem pinta de neologismo dos bons).

Romeu Martins disse...

Pós-teologismo, hahaha

Se um dia eu tiver tempo e inspiração suficientes, ainda quero fazer uma continuação para "A diabólica comédia".

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