26.4.09

A vez de Gustav

Uma nova aventura nazipunk

Por Michel Argento


Fazia frio naquele final de outono no sul da Inglaterra, e Gustav fechou o zíper do casaco e se encolheu dentro dele. Fora da casamata o vento era gelado e cortante, com um eterno odor de grama molhada, e o mar era cinzento e triste. Ele acendeu um cigarro e se encostou no concreto frio da construção.

De todos os lugares para onde poderiam mandar um jovem tenente, graduado em engenharia de telecomunicações pela Universidade Militar de Munique, a Inglaterra era o segundo pior, só perdendo apenas para as estepes geladas da Rússia desmembrada.

Ele, como muitos de sua geração, e da geração anterior, crescera aprendendo a detestar ingleses e franceses devido às humilhações que as antigas potencias haviam infligido ao povo alemão após a derrota na primeira guerra. Agora, diferente de outros tempos, não mais os odiava, apenas tratava-os como os inferiores que eram. E aquele molho inglês era nada menos que horrível.

O Reich, diferente de seus inimigos, não os humilhara ao derrotá-los, pelo contrário, os mantiveram de posse de sua ilha gelada e os deixava viver em relativa independência, com exceção dos expurgos raciais no campo de concentração de Liverpool, e de uma série de fortificações espalhadas pelo país. A maioria delas ficava ao longo do Canal da Mancha, e uma delas, localizada em Dover, onde Gustav estava condenado a servir pelos próximos dois anos, era a mais importante, pois era onde terminava o cabeamento submarino proveniente da França. Por ali passavam todas as comunicações entre a ilha e o continente, e enquanto a tal tecnologia orbital de transmissão não fosse concluída, para que as informações pudessem ser transmitidas sem a necessidade de cabos, ela era de fundamental importância, e alvo constante dos guerrilheiros ingleses.

Jogou a ponta do cigarro no chão e acendeu um segundo. Se fosse fazer uma lista das vantagens que via na Inglaterra, talvez só houvesse uma: o cigarro. Os ingleses fumavam aos montes e não viam problema nenhum nisso, enquanto nas principais cidades da Alemanha o fumo era estritamente proibido, e nas menores e nos novos territórios era altamente restrito. Mas nas bases inglesas os oficiais faziam vista grossa, não chegavam a ser tão liberais quanto na Rússia, mas não criavam casos, desde que se fumasse fora das construções.

Durante uma folga, em Paris, seis meses atrás, havia pegado três dias de prisão por fumar do lado de fora de um café. Foi uma lição que não esqueceria tão cedo.

Terminou o segundo cigarro e começou a andar de volta para o prédio principal. Eram quase quatro horas da tarde, e logo partiria o último transporte para a cidade, e Gustav não queria perdê-lo, ou teria de andar quase cinco quilômetros naquelas estradas poeirentas e frias. Ele, como muitos outros, alugava um pequeno apartamento na cidade, que não era grande coisa, mas era um lugar onde podia ter a privacidade que a vida na caserna lhe negava.

Subiu na parte de trás do caminhão e sentou-se ao lado de dois sargentos no lado direito da carroceria. Os três espremeram-se entre uma infinidade de caixas que seriam despachadas para sabe-se lá onde. Os dois sargentos falavam animadamente, fazendo planos para a noite na cidade, quando o caminhão começou a rodar e sacudir sobre a estrada esburacada e, após uma pequena parada para verificação na saída da base, deslizou pelo asfalto em direção a cidade.

- Podiam asfaltar esse trecho de inferno – disse o primeiro sargento.

- Pelo menos não está chovendo – falou o segundo e voltaram a sua conversa sobre pubs, cerveja e prostitutas.

Talvez algum dia alguém em Berlim ou Londres lembrasse de mandar asfaltarem aquela estrada, tanto pela poeira insuportável nos raros períodos sem chuva, quanto pelos buracos desagradais ou a lama eterna. Mas parece que no futuro próximo nada seria feito com relação aquela estrada, visto que a eterna “fronteira quente” da Rússia ficava cada vez mais quente e as relações com a China continental e o Império Japonês pareciam se deteriorar a cada dia. Do outro lado, os EUA estavam começando a abrir mão de sua passividade, dando sinais de estarem recuperados da surra levada na década de 1940.

Após um sacolejo, por uma fração de segundos, Gustav pensou estar flutuando no ar. Viu claramente as caixas subirem vagarosamente em direção ao teto de lona, como se desprovidas de todo o seu peso, bem como os dois sargentos ao seu lado. Ele mesmo se viu subindo, placidamente, até bater com a cabeça em um dos arcos de metal que sustentavam a cobertura.

Depois, sem aviso, tudo despencou, e aquilo só poderia acontecer por uma razão: o caminhão havia passado sobre uma mina terrestre.

Gustava caiu pesadamente contra o banco, tendo seu braço direito sido prensado entre seu corpo e a madeira dura. Algumas caixas caíram sobre suas pernas, e ele sentiu perfeitamente quando uma delas, que devia conter uma bigorna, segundo sua imaginação, caiu pesadamente sobre seu tornozelo, quebrando-o. Ele podia jurar, diante de qualquer tribunal, que ouviu nitidamente o barulho dos ossos sendo partidos, mas isso seria impossível, devido a surdez temporária ocasionada pela explosão.

Sentiu quando o caminhão tombou de lado e pareceu se arrastar pela terra, com um grande chiado. Ele foi jogado para o lado e bateu novamente com a cabeça no arco de metal, mas dessa vez com força suficiente para perder os sentidos.

Recobrou levemente a consciência e viu, em meio a visão turva que seus olhos lhe propiciavam, os dois sargentos serem executados a tiros de fuzil por três homens encapuzados, que em seguida o ergueram pelos braços e começaram a arrastá-lo para fora do caminhão, pela estrada, com seu tornozelo quebrado batendo na terra e pedras, e depois o jogaram por cima da cerca baixa do campo verde, onde ao longe, ante de perder novamente os sentidos, ele pode divisar o imenso vulto branco sobre fundo de verde de um rebanho de ovelhas.

Acordou algemado a uma cadeira, com os ouvidos zunindo e latejando pela explosão, no que parecia ser um porão fedendo a terebentina e mijo velho, com um toque de cerveja azeda. A única iluminação provinha de uma pequena lâmpada no teto, que lançava luz a sua volta.

Sua cabeça estava amarrada por tiras de couro ao encosto da cadeira, de forma que só podia olhar para frente. Tentou mexer os baços, mas estes estavam amarrados pelo que ele julgou serem cabos de aço e ao tentar mexer as mãos, pontadas gêmeas de dor subiram por seus nervos lhe avisando que havia dois gigantescos pregos atravessando carne e ossos e indo de encontro com a madeira.

- Dói menos se você ficar parado – falou alguém fora de seu campo de visão, com um sotaque do norte, provavelmente da Escócia.

- Dói menos se você falar – disse outra voz, com um sotaque parecido e alguém, talvez o dono dessa voz, lhe desferiu um soco no ouvido esquerdo e o zunido aumentou.

- Responder... o... que... – tentou dizer, mas sua língua estava inchada e cortada, e sentia gosto de sangue e terra em sua boca.

Outro soco lhe foi desferido, dessa vez na face esquerda. Ele sentiu a carne ser prensada e cortada contra os dentes, que por final cederam e caíram, talvez dois ou três, dentro de sua boca. Cuspiu-os junto com uma bola de sangue e saliva.

- Acho que seria melhor perguntar, e não somente agredi-lo – falou uma terceira voz, que transmitia calma e confiança.

- Eles não pensaram nisso quando dizimaram nosso exercito em Dunquerque – rugiu a segunda voz. – Meu pai estava entre eles, e foi morto como um cachorro de costas para o mar.

Uma pontada de dor subiu das costelas de Gustav e o fez se contorcer de dor. Não era uma agressão nova, mas provavelmente uma fratura do acidente, que agora começava a fazer sentir-se.

- Ele tem que falar pra evitarmos outro Dunquerque, ou outra Birmingham – disse a terceira voz.

- Birmingham... foi um infeliz... acidente... – conseguiu dizer Gustav entre gemidos e dentes quebrados.

- Infeliz acidente? – perguntou a primeira voz, em tom de incredulidade.

O golpe em sei peito foi tão forme, com certeza ocasionado por um taco de críquete, que a cadeira oscilou para trás enquanto o peito de Gustav era esmagado e o ar deixava seus pulmões como ratos deixando um navio.

- Se vocês dois não se acalmarem, todo o trabalho terá sido em vão.

- Pro inferno com o trabalho – esbravejou a segunda voz. – Quando quiser matar alemães, chame escoceses, ou até mesmo irlandeses. Agora se queria só conversar com ele e tomar um chá, devia ter chamado qualquer maldito inglês.

A cadeira foi derrubada e Gustav sucumbiu sob uma avalanche de socos e pontapés. Sentiu cada osso de seu corpo ser quebrado e cada vaso sangüíneo ser rompido.

Ian subiu as escadas em direção ao pub, estava com seu terno cinza e o guarda-chuva debaixo do braço. Fechou a porta que dava acesso à escada atrás de si e contornou o balcão. O lugar estava apinhado com oficiais alemães, técnicos europeus e diversos ingleses que bebida cerveja em grandes canecas de vidro e davam tapinhas nas costas de algum alemão conhecido.

- Ian, meu velho! – quase gritou o um capitão da AS, velho conhecido de Ian.

- Como vai? – respondeu enquanto colocava o avental branco com o brasão do pub estampado, um Spitfire descendo sobre uma esquadrilha de Stukas, Messerschmidts e um ou outro Dorniers, dependendo de que ilustrasse. Os alemães achavam aquilo divertido.

- Vou bem. E aqueles seus primos da Escócia?

- Estão vindo – disse olhando para a porta do porão. – Só estão terminando de retalhar um carneiro.

- Vamos ter um cozido hoje então? – perguntou outro capitão, que Ian não conhecia ainda. Provavelmente recém-chegado de Londres ou Paris.

- Sim, vamos sim. Hoje o cozido vai ser por conta da casa.

4 comentários:

Alexandre Lancaster disse...

Bom ver os contos de volta!

Romeu Martins disse...

Valeu, Lancaster!

Tem mais alguns que eu publiquei desde a minha parada e esta série nazipunk pode ter crossover com os TCs, se eu e o Michel conseguirmos acertar a parada a quatro mãos, rs

Michel Santos disse...

Opa...

O conto da primeira parte do crossover tá saindo...

Romeu Martins disse...

Beleza, Michel!

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