10.4.09

Amor incondicional

Até que a fome os separe
por Afonso L. Pereira



Desespero. Eu estava desesperado!

Minha esposa, apesar do que os outros diziam em contrário, amava-me! Disto tenho a mais absoluta certeza! Amava-me, sim, lá do seu jeito meio turrão de ser, pois cumpre dizer, a bem da verdade, que ela não era muito dada a expressar os próprios sentimentos. Há pessoas que detestam discursos de aniversário, confraternizações de fim de ano, declarações de amor a qualquer hora e toda sorte de acontecimentos sociais do tipo que envolvam emoções fortes! Elisa era assim! Nunca tive a oportunidade de ouvir dela o que ela sentia por mim, mas isso pouco me importava. O que se sente pelo outro, às vezes, não precisa ser traduzido em palavras, não é mesmo? Pode-se, muito bem, “sentir-se” na pele, no olhar, no abraço, no gestual de carinhos!

Elisa, minha tão adorada esposa, encontrava-se jogada no canto do quarto de dormir, o cômodo mais protegido de nossa casa. Queriam matá-la! A turba de desocupados, violentos, ensandecidos, insensíveis, havia tomado a frente do pequeno sobrado onde morávamos. Clamavam por vingança! A cidade achava-se em polvorosa no mais completo caos! Mas não fora só a cidade onde havíamos escolhido para viver que perdera-se na barbárie; era igualmente certo afirmar, uma vez posto, que notícias davam conta de que a tragédia se propagara pelo país inteiro. O massacre da população que se devorava não tinha precedentes históricos conhecidos: “Zumbis”, “mortos-vivos”, “infectados”, ou sabia-se lá que nomes se atribuíam aquelas “coisas” destituídas de humanidade, vagavam sem rumo, matando e multiplicando a doença!

As pancadas na porta da frente, no intento de arrombá-la, ocorriam cadenciadas. As criaturas nojentas tinham tido a idéia de usar algum objeto pesado como aríete. Os móveis que eu havia empilhado na entrada, a única entrada desimpedida por grades de ferro, cediam terreno a cada estocada. A invasão iminente me levava ao desespero, pois a preocupação não se dava por mim, mas se dava por ela: Elisa, minha adorada esposa. Não! Não! Eu não queria perdê-la! Prometera ao padre que a amaria e a respeitaria na alegria e na adversidade conquanto tal compromisso, naquelas circunstâncias, pudesse me causar a morte. Quem ama sabe o quanto é doloroso não poder proteger a pessoa amada!

Quando os boatos chegaram a meu conhecimento de que a situação se invertia, ou seja, que a população de algum modo, movida pelo instinto de auto-preservação, estava conseguindo deter os morto-vivos, aniquilando-os por meios que, naquele momento, pouco me interessavam, a nossa situação familiar se havia ruído irreversivelmente: Elisa fora atacada e infectada! E naquele momento terrível, digo-vos sinceramente, senhores, dilacerava-me o coração ver a pobre coitada lutando incansavelmente contra as correntes que a prendiam aos pés da pesada cama de estilo colonial de que tanto gostava. Ela já não era a mesma pessoa. O corpo, mal coberto pelos trapos que lhe serviam de roupa, carregado de enormes feridas abertas, o rosto esverdeado e indiferente, onde se projetavam os olhos embranquecidos pela doença, afligiam violentamente os meus sentidos. Eu não sabia fazer outra coisa senão chorar e ficar sentado na frente dela implorando que voltasse para mim!

Às vezes a minha Elisa aparecia angustiada naquele rosto transfigurado, como alguém que se afogando procurasse, num impulso desesperado, romper à superfície na busca da última golfada de ar. Estes breves momentos, não raros, quando ocorriam, levavam-me a um sentimento de aflição e impotência ainda maiores. Os olhos de minha amada surgiam nos globos embranquecidos e conectavam-se com os meus me transmitindo uma mensagem que eu entendia perfeitamente: “me ajude, por favor!” E antes que eu pudesse dizer qualquer coisa inteligível, ela se afundava naquela criatura abjeta que se transformara. O horror voltava-me em ondas sucessivas a cada tentativa que ela fazia para comunicar-se comigo.

O hall de entrada, após os sucessivos golpes da turba, cedera causando o enfraquecimento da improvisada barricada de móveis. Eu não tinha muito tempo! Fui até o corredor do segundo andar e olhei para baixo. Verifiquei, muito a contragosto, que no vão da porta entreaberta algumas cabeças nervosas com braços invasores tentavam empurrar o amontoado de sofás, mesas, armários e cadeiras. Uma daquelas cabeças, meio que afastadas das que forçavam a entrada, me percebeu no alto da escada.

— Parem! – Gritou Victor, meu melhor amigo. Ele fora testemunha de minha união matrimonial com Elisa e mais do que ninguém ali sabia o quanto ela me era preciosa.

Todos pararam!

— Amigo, meu irmão! – disse ele, em voz alta e emocionada, dando início ao trabalho de me convencer o que todos na cidade consideravam como o melhor para mim. - Não adianta protegê-la. Não faça isso! Elisa já morreu há muito. Esta coisa que você diz ser a sua mulher, me perdoe o áspero das palavras, não passa de um animal doente infectado, contagioso, que precisa ser sacrificado. Não há cura, não há salvação, não há solução na terra que a traga de volta!

Olhei-os com nojo!

— Não! Ninguém há de encostar um dedo na minha esposa enquanto eu estiver vivo!

Minha decisão irrevogável, como sabia, provocou o ódio do grupo empedernido em dar cabo da única coisa de valor para mim no plano terreno! Eles voltaram-se a arremeter esforços no sentido de forçar a entrada e já não precisavam de muito para invadir a minha casa.

Voltei para Elisa, decidido, já sabendo o que iria fazer. Não me dei o menor trabalho de refletir sobre os meus atos porque já o fizera antes, nas incontáveis horas em que estive preso aquele quarto com ela. Fui até à janela, lancei um olhar já saudoso à pequena cidade que voltava a sua normalidade, despi-me, e num movimento rápido me joguei de costas na cama.

— Venha querida! – Mal cheguei a terminar o convite e ela me atacou esfomeada.

Num pulo Elisa se aproximou violenta, uma das mãos me foi ao rosto forçando minha cabeça para o fundo do colchão, a outra apertou uma de minhas pernas no intento de imobilizar-me e, sem a menor indecisão, sem o menor remorso, enterrou as mandíbulas animalescas em minha barriga. Se pensam vocês, meus amigos, a quem envio este relato psicografado após minha recente morte, que me arrependi ao sentir as primeiras mordidas. Não! A dor foi terrível, a dor foi indescritível porque não queiram sequer imaginar o que é ser devorado vivo. O sofrimento daí decorrente é algo que eu não desejaria nem para o meu pior inimigo.

Mas... no momento derradeiro, no estertor da morte, em meio aquela agonia onde a percepção das coisas se confundem e nos enganam pude ser agraciado na constatação de um fato que atormenta o imaginário das pessoas. Sempre me disseram que no momento final, onde o moribundo entrega-se a conformidade de seu destino, mesmo aquele que sofre da dor atroz e dos delírios febris da doença mais torturante, um instante de lucidez lhe é dado como recompensa para despedir-se do mundo terreno. E assim o foi comigo!

Elisa devorava minhas entranhas, mastigava minha carne, quando o movimento parou de súbito. Meu corpo, torturado pela dor violenta, num repente, adormecera anestesiado e senti uma trégua no sofrimento. E a vi pela última vez. Sim, senhores, eu a vi. Ela apareceu lentamente no foco de minha visão. A fisionomia retorcida pela virulência da doença ainda lhe cobria o rosto pelo qual um dia me apaixonara. O meu sangue impregnado nela, respingava do nariz, dos longos cabelos, da boca cheia onde escorria a baba do que estivesse a mastigar e no conjunto estarrecedor do que se apresentou a mim consegui extrair a “vida” nos seus olhos, que insubordinaram-se sob o esbranquiçado medonho de seus globos oculares. Foi através deles, dos olhos, que a alma de minha adorada esposa queria dizer-me o que, apesar de eu fingir não dar importância, sempre quis ouvir: “Eu te amo”.

Aquele instante mágico, efêmero, não passou mais do que três ou quatro segundos porque em seguida ela enterrou o rosto novamente em minhas entranhas e continuou a me devorar! No entanto, afirmo sem medo de me julgarem louco: Todo o sofrimento valeu à pena, valeu sim! Sou sabedor de que causei traumas psicológicos, noites insones e a perda da fé no divino em muitas das pessoas que invadiram nosso quarto àquela noite. Não lhes peço desculpas, de modo algum, tampouco ei de perdoá-los!

Quero que eles, malditos sejam, fiquem a ruminar pensamentos, a vida inteira se preciso for, para entenderem o sorriso que perpassava minha fisionomia enquanto minha adorada Elisa saciava a sua fome!

4 comentários:

Ludimila Hashi disse...

Esse deve ser o conto mais romântico do blog. Aposto que provocou suspiros apaixonados.

Romeu Martins disse...

aiai

Helena disse...

Romantismo no estilo Poe - raro de encontrar hoje em dia - e bem escrito. Gostei muito.

merrel ( aos poucos voltando a frequentar o blog e a comentar)

Romeu Martins disse...

É... amor carnal ;-)

Ibope