15.4.09
Clitoridectomia reversa
Sobre chaves e fechaduras por Carlos Orsi
A tenda do mercador de castidade era de quitina avermelhada por fora e pele rosada por dentro. O material estava vivo: a superfície interna arrepiava-se ao toque, exalando um aroma de flores exóticas e estendendo cerdas sedosas, numa carícia que surpreendia todos os visitantes, deleitava a maioria e desagradava profundamente a outros.
Lars viu-se no grupo minoritário: tanta ostentação, pensou – corretamente – só poderia significar uma conta muito salgada ao final da operação. Mas o mercador tinha sido recomendado pelas esposas mais velhas: e, se a experiência de Lars com mulheres lhe havia ensinado algo, era que sempre se podia contar com o ciúme de umas para pôr fim aos prazeres de outras.
Este fato, e um breve olhar para a mulher que trazia ao mercador – Hilde, a mais jovem de suas esposas e a única ainda em idade fértil – obrigou-o a engolir os receios. Hilde era bela, desejável. Sob o vento forte do deserto, nem mesmo o tecido rústico e pesado dos véus e vestidos deixava de moldar-se às curvas do corpo, destacando seios, cintura, quadris, coxas, ombros – coisas que os homens de outros clãs certamente notavam com avidez.
Era sua descendência que estava em jogo, disse Lars a si mesmo, a continuidade do clã, da herança. Seria melhor gastar um pouco mais agora do que investir toda a fortuna de sua linhagem em um bastardo, trabalhar décadas para ver prosperar o fruto da virilha de outro.
Hilde, por sua vez, encantou-se com a pele da tenda. Tinha ouvido histórias – da avó, ou de uma tia, não estava certa – sobre como uma ancestral, recém-chegada a Rudianos, ainda na primeira onda de colonizadores, trouxera um vestido de fibras vivas, homeotermas, que mantinham uma temperatura constante de 22 graus e respiravam exalando perfume de rosas.
O traje era hidratante e alimentava-se de gordura da pele e de células mortas: usá-lo por um dia era como rejuvenescer uma semana.
Não havia durado mais de um mês. Tinha sido calcinado pelos raios ultravioleta do sol de Rudianos, corroído pelos radicais livres no vento. Sentindo um estremecimento não de todo desagradável no braço, enquanto os pelos lambiam-lhe a ponta dos dedos, Hilde perguntava-se quanto tempo a tenda do mercador sobreviveria neste mundo.
– Mulher – era a voz de Lars, a voz do marido, a voz que Hilde conhecia melhor que a sua própria – o homem quer ver você. É por ali – enquanto Hilde se voltava para encará-lo, Lars apontava para uma tapeçaria decorada que divida o espaço interno da tenda em dois compartimentos. – No consultório.
* * *
O mercador era de fora. Hilde podia dizer isso só de olhar para ele – principalmente por causa da pele escura, naturalmente escura, não marcada pelo sol. Isso a confundiu por um momento. Havia mercadores de castidade em outros mundos?
– Dispa-se – disse o homem escuro.
Hilde sentiu um pequeno choque ao ouvir a ordem, uma ponta de indignação misturada a – ela se viu obrigada a admitir – um certo prazer perverso: é assim que o velho Lars vai preservar a fidelidade da esposa mais nova? Despindo-a diante de estranhos?
Que assim seja, pensou. Ouço e obedeço.
A frieza do olhar com que o mercador analisou seu corpo nu desconcertou Hilde. Ninguém nunca lhe dissera nada a respeito, mas ela sabia que era desejável – esta não era a grande verdade oculta por trás de tudo o que estava acontecendo? Que marido gastaria fortunas para tirar o prazer de uma mulher que não deleitasse os homens?
Mas não era frieza, Hilde disse para si mesma, parada ali, sem roupas, uma brisa que vinha não se sabe de onde enrijecendo-lhe os mamilos e arrepiando a pele dos seios, desejáveis mas, ainda assim, pequenos o bastante para dispensar suporte.
Era interesse profissional.
– Deite-se – ordenou o mercador.
Hilde estivera tão concentrada ao entrar no consultório que não havia notado nada além do homem, nenhum móvel, aparelho, nada. Agora, seguindo, com os olhos, a direção indicada pela mão aberta do estranho, viu o divã – se é que era um divã: uma peça onde ela poderia reclinar-se, mas que, na extremidade oposta ao apoio para a cabeça, era ondulada e bifurcada, um arranjo que manteria as pernas da mulher erguidas e afastadas.
Ouço e obedeço, pensou.
– Sabe – assim que Hilde se deitou, o mercador assumiu uma posição junto à extremidade bifurcada do divã, efetivamente desaparecendo em meio aos fartos pelos pubianos da mulher, que agora não podia mais vê-lo, mas apenas ouvi-lo e senti-lo – vocês rudianianas deviam tentar convencer os homens a autorizar exames de DNA. É uma tecnologia antiga, mas confiável.
Hilde já tinha ouvido falar desses testes, que permitiam a um homem saber, com certeza, se um filho era seu ou não. Curioso o mercador estrangeiro achar que o exame era proibido: de modo algum. Apenas era irrelevante: a honra rudianiana exigia que cada homem se responsabilizasse pelo que fosse semeado em suas terras e em seu harém. Só isso.
Então, o estranho passou a tocá-la. Hilde duvidava que alguém conseguisse sentir prazer naquelas circunstâncias, mas foi surpreendida por uma suave contração involuntária do abdome. Sentiu que estava ficando molhada.
– Seu marido me pediu para verificar se você realmente tinha sido operada. E você foi, posso garantir – disse o mercador. – A glande do clitóris foi totalmente removida. Não de forma elegante, pelo que vejo, mas bem eficiente.
O homem falava de um modo que não era exatamente frio, mas também não chegava a ser amistoso – o tom misturava interesse técnico e uma simpatia distante, profissional. Certamente, suas palavras não traduziam paixão nenhuma, exceto pelo trabalho.
Mas havia algo na precisão técnica de seu toque, uma doçura ao mesmo tempo tão impessoal, que fazia Hilde sentir como se estivesse com o marido, como se esta fosse mais uma das noites ruins. As noites que tinham feito Lars desconfiar, que faziam Hilde sentir-se culpada.
Ela estava molhada lá embaixo, e agora eram os músculos das nádegas que se contraíam. Havia algo elétrico nas pernas, também.
– O problema – o mercador falava como se não notasse o efeito que sua manipulação estava provocando, ou como se considerasse a reação de Hilde desimportante – é que o clitóris é um órgão muito maior que só a glande. Ele tem um corpo que se abre por trás dos lábios menores, envolve a vagina e penetra até abaixo do osso. A maior parte das terminações nervosas fica realmente na glande, mas o restante do corpo clitoriano é perfeitamente capaz de gerar um orgasmo.
Hilde mordia o lábio inferior e fechava os olhos com força, até lacrimejar. Não adiantou: seu corpo não era mais seu, era um elástico esticado até o ponto de ruptura, e só o que ela podia fazer agora era esperar para ver se ele iria rasgar ou...
Relaxar.
– Como demonstrado – disse o mercador, após ouvir o suspiro abafado de Hilde. – Claro, toda a idéia por trás da remoção da glande é tornar a mulher insensível, para matar, pela raiz, poderíamos dizer, a tentação de buscar intimidade com outros homens. Se o incentivo continua presente, portanto, há um problema. Ao menos, aos olhos do código de honra de vocês, aqui.
Hilde ouviu um tilintar de cristais enquanto o mercador continuava a falar:
– Toda a biologia funciona em sistemas de chave e fechadura – disse ele. – As coisas só acontecem quando duas moléculas, feitas sob medida uma para a outra, se encaixam. O que vou fazer, atendendo ao pedido de quem me chamou a este planeta, é criar uma caixa-forte química, com uma fechadura especial, para isolar o seu orgasmo.
Hilde sentiu quando o líquido gelado tocou sua vulva. No entanto, embora o toque em si a deixasse intrigada, não havia nenhuma excitação ligada ao fato – nem mesmo a do medo. Na verdade, o relaxamento progressivo que ela vinha experimentando consumou-se abruptamente, e Hilde se deu conta de que estava relaxada por completo, mas que não se sentia nem um pouco melhor com isso. De repente, seu corpo era como o corpo de outra pessoa.
Então, ela soube que as noites ruins tinham acabado. E experimentou a mais absurda mistura de alegria e desespero, como se o coração criasse asas e se transformasse em pedra ao mesmo tempo.
– Mas é claro que toda fechadura responde à chave ou combinação adequada – afirmou o mercador, afastando-se.
– Olá, Hilde.
A jovem virou a cabeça e viu Ingrid em pé, a seu lado. Desde quando ela estaria ali?, perguntou-se Hilde. Por onde teria entrado? Não pelo mesmo vestíbulo onde Lars aguardava, com certeza: Ingrid era uma das esposas mais velhas – e, na opinião de Hilde, a mais bela das mulheres estéreis de Lars. Diferente da maioria da população de Rudianos, tinha olhos escuros, profundos, que eram como grandes poços d’água à noite, à sombra e ao vento.
Era com esses olhos que Ingrid a contemplava, e sorria. Mesmo encapsulada na curiosa indiferença à sensação física criada pela intervenção do mercador, Hilde foi capaz de detectar um breve estremecimento, uma pequena tensão em si mesma. Ingrid era uma presença majestosa. Sempre tinha sido.
Comentava-se, no harém, que décadas atrás havia pagado um mercador para esgotar a fertilidade que ainda lhe restava, convertendo-a em uma forma duradoura de beleza, uma aura de poder mágico.
Sem mais nenhuma palavra, Ingrid contornou o divã até se colocar na posição que o mercador ocupara até então. Hilde não conseguia mais vê-la – mas de repente sentiu o toque feminino, tão diferente da textura áspera das mãos do mercador, na parte interna da coxa esquerda.
E então um outro toque, mais ao centro, mas indistinguível, indistinto, até um pouco desagradável – a princípio. Mas devagar, como uma imagem que entra lentamente em foco, Hilde foi se dando conta de nuances: úmido, quente, doce, rígido porém flexível, um hálito perfumado e uma língua curiosa, brincalhona, carinhosa.
A cápsula de insensibilidade derretia, mas não rápido o bastante: Hilde sentia-se como um personagem de conto de fadas, como a menina que comeu um biscoito mágico e agora cresce, cresce, chocando-se, empurrando, derrubando as paredes e o teto que a contêm.
As paredes explodiram ao redor de Hilde. Hilde explodiu ao redor de si mesma.
Quando voltou a abrir os olhos, a jovem viu Ingrid ajoelhada ao seu lado, os rostos tão próximos que quase se tocavam. Hilde mergulhou nos olhos escuros.
– Você gostaria de fazer o mesmo por mim? – perguntou a mulher mais velha.
Ofegando, Hilde só conseguiu assentir com a cabeça.
Ingrid sorriu:
– Esta noite, então. Lá em casa.
Ingrid se levantou e saiu, por alguma passagem que Hilde não conseguiu ver. Meia hora depois, a jovem já estava vestida e aguardava, atrás de um biombo, enquanto Lars conversava com o mercador.
– Demorou – queixou-se o marido.
– O processo é simples, mas é importante explicar para a mulher o que está acontecendo – desculpou-se o mercador. – Senão, sempre pode haver a tentação de testar a tranca, de buscar um homem que possa forçá-la. Essa é uma promessa que muitos sedutores fazem.
– E isso não é possível? – perguntou Lars.
– Nenhum homem pode abrir a fechadura que criei.
Não, pensou Hilde, lembrando-se das instruções que recebera enquanto se vestia: nenhum homem. Mas todas as mulheres tinham a chave, na ponta da língua.
A tenda do mercador de castidade era de quitina avermelhada por fora e pele rosada por dentro. O material estava vivo: a superfície interna arrepiava-se ao toque, exalando um aroma de flores exóticas e estendendo cerdas sedosas, numa carícia que surpreendia todos os visitantes, deleitava a maioria e desagradava profundamente a outros.
Lars viu-se no grupo minoritário: tanta ostentação, pensou – corretamente – só poderia significar uma conta muito salgada ao final da operação. Mas o mercador tinha sido recomendado pelas esposas mais velhas: e, se a experiência de Lars com mulheres lhe havia ensinado algo, era que sempre se podia contar com o ciúme de umas para pôr fim aos prazeres de outras.
Este fato, e um breve olhar para a mulher que trazia ao mercador – Hilde, a mais jovem de suas esposas e a única ainda em idade fértil – obrigou-o a engolir os receios. Hilde era bela, desejável. Sob o vento forte do deserto, nem mesmo o tecido rústico e pesado dos véus e vestidos deixava de moldar-se às curvas do corpo, destacando seios, cintura, quadris, coxas, ombros – coisas que os homens de outros clãs certamente notavam com avidez.
Era sua descendência que estava em jogo, disse Lars a si mesmo, a continuidade do clã, da herança. Seria melhor gastar um pouco mais agora do que investir toda a fortuna de sua linhagem em um bastardo, trabalhar décadas para ver prosperar o fruto da virilha de outro.
Hilde, por sua vez, encantou-se com a pele da tenda. Tinha ouvido histórias – da avó, ou de uma tia, não estava certa – sobre como uma ancestral, recém-chegada a Rudianos, ainda na primeira onda de colonizadores, trouxera um vestido de fibras vivas, homeotermas, que mantinham uma temperatura constante de 22 graus e respiravam exalando perfume de rosas.
O traje era hidratante e alimentava-se de gordura da pele e de células mortas: usá-lo por um dia era como rejuvenescer uma semana.
Não havia durado mais de um mês. Tinha sido calcinado pelos raios ultravioleta do sol de Rudianos, corroído pelos radicais livres no vento. Sentindo um estremecimento não de todo desagradável no braço, enquanto os pelos lambiam-lhe a ponta dos dedos, Hilde perguntava-se quanto tempo a tenda do mercador sobreviveria neste mundo.
– Mulher – era a voz de Lars, a voz do marido, a voz que Hilde conhecia melhor que a sua própria – o homem quer ver você. É por ali – enquanto Hilde se voltava para encará-lo, Lars apontava para uma tapeçaria decorada que divida o espaço interno da tenda em dois compartimentos. – No consultório.
* * *
O mercador era de fora. Hilde podia dizer isso só de olhar para ele – principalmente por causa da pele escura, naturalmente escura, não marcada pelo sol. Isso a confundiu por um momento. Havia mercadores de castidade em outros mundos?
– Dispa-se – disse o homem escuro.
Hilde sentiu um pequeno choque ao ouvir a ordem, uma ponta de indignação misturada a – ela se viu obrigada a admitir – um certo prazer perverso: é assim que o velho Lars vai preservar a fidelidade da esposa mais nova? Despindo-a diante de estranhos?
Que assim seja, pensou. Ouço e obedeço.
A frieza do olhar com que o mercador analisou seu corpo nu desconcertou Hilde. Ninguém nunca lhe dissera nada a respeito, mas ela sabia que era desejável – esta não era a grande verdade oculta por trás de tudo o que estava acontecendo? Que marido gastaria fortunas para tirar o prazer de uma mulher que não deleitasse os homens?
Mas não era frieza, Hilde disse para si mesma, parada ali, sem roupas, uma brisa que vinha não se sabe de onde enrijecendo-lhe os mamilos e arrepiando a pele dos seios, desejáveis mas, ainda assim, pequenos o bastante para dispensar suporte.
Era interesse profissional.
– Deite-se – ordenou o mercador.
Hilde estivera tão concentrada ao entrar no consultório que não havia notado nada além do homem, nenhum móvel, aparelho, nada. Agora, seguindo, com os olhos, a direção indicada pela mão aberta do estranho, viu o divã – se é que era um divã: uma peça onde ela poderia reclinar-se, mas que, na extremidade oposta ao apoio para a cabeça, era ondulada e bifurcada, um arranjo que manteria as pernas da mulher erguidas e afastadas.
Ouço e obedeço, pensou.
– Sabe – assim que Hilde se deitou, o mercador assumiu uma posição junto à extremidade bifurcada do divã, efetivamente desaparecendo em meio aos fartos pelos pubianos da mulher, que agora não podia mais vê-lo, mas apenas ouvi-lo e senti-lo – vocês rudianianas deviam tentar convencer os homens a autorizar exames de DNA. É uma tecnologia antiga, mas confiável.
Hilde já tinha ouvido falar desses testes, que permitiam a um homem saber, com certeza, se um filho era seu ou não. Curioso o mercador estrangeiro achar que o exame era proibido: de modo algum. Apenas era irrelevante: a honra rudianiana exigia que cada homem se responsabilizasse pelo que fosse semeado em suas terras e em seu harém. Só isso.
Então, o estranho passou a tocá-la. Hilde duvidava que alguém conseguisse sentir prazer naquelas circunstâncias, mas foi surpreendida por uma suave contração involuntária do abdome. Sentiu que estava ficando molhada.
– Seu marido me pediu para verificar se você realmente tinha sido operada. E você foi, posso garantir – disse o mercador. – A glande do clitóris foi totalmente removida. Não de forma elegante, pelo que vejo, mas bem eficiente.
O homem falava de um modo que não era exatamente frio, mas também não chegava a ser amistoso – o tom misturava interesse técnico e uma simpatia distante, profissional. Certamente, suas palavras não traduziam paixão nenhuma, exceto pelo trabalho.
Mas havia algo na precisão técnica de seu toque, uma doçura ao mesmo tempo tão impessoal, que fazia Hilde sentir como se estivesse com o marido, como se esta fosse mais uma das noites ruins. As noites que tinham feito Lars desconfiar, que faziam Hilde sentir-se culpada.
Ela estava molhada lá embaixo, e agora eram os músculos das nádegas que se contraíam. Havia algo elétrico nas pernas, também.
– O problema – o mercador falava como se não notasse o efeito que sua manipulação estava provocando, ou como se considerasse a reação de Hilde desimportante – é que o clitóris é um órgão muito maior que só a glande. Ele tem um corpo que se abre por trás dos lábios menores, envolve a vagina e penetra até abaixo do osso. A maior parte das terminações nervosas fica realmente na glande, mas o restante do corpo clitoriano é perfeitamente capaz de gerar um orgasmo.
Hilde mordia o lábio inferior e fechava os olhos com força, até lacrimejar. Não adiantou: seu corpo não era mais seu, era um elástico esticado até o ponto de ruptura, e só o que ela podia fazer agora era esperar para ver se ele iria rasgar ou...
Relaxar.
– Como demonstrado – disse o mercador, após ouvir o suspiro abafado de Hilde. – Claro, toda a idéia por trás da remoção da glande é tornar a mulher insensível, para matar, pela raiz, poderíamos dizer, a tentação de buscar intimidade com outros homens. Se o incentivo continua presente, portanto, há um problema. Ao menos, aos olhos do código de honra de vocês, aqui.
Hilde ouviu um tilintar de cristais enquanto o mercador continuava a falar:
– Toda a biologia funciona em sistemas de chave e fechadura – disse ele. – As coisas só acontecem quando duas moléculas, feitas sob medida uma para a outra, se encaixam. O que vou fazer, atendendo ao pedido de quem me chamou a este planeta, é criar uma caixa-forte química, com uma fechadura especial, para isolar o seu orgasmo.
Hilde sentiu quando o líquido gelado tocou sua vulva. No entanto, embora o toque em si a deixasse intrigada, não havia nenhuma excitação ligada ao fato – nem mesmo a do medo. Na verdade, o relaxamento progressivo que ela vinha experimentando consumou-se abruptamente, e Hilde se deu conta de que estava relaxada por completo, mas que não se sentia nem um pouco melhor com isso. De repente, seu corpo era como o corpo de outra pessoa.
Então, ela soube que as noites ruins tinham acabado. E experimentou a mais absurda mistura de alegria e desespero, como se o coração criasse asas e se transformasse em pedra ao mesmo tempo.
– Mas é claro que toda fechadura responde à chave ou combinação adequada – afirmou o mercador, afastando-se.
– Olá, Hilde.
A jovem virou a cabeça e viu Ingrid em pé, a seu lado. Desde quando ela estaria ali?, perguntou-se Hilde. Por onde teria entrado? Não pelo mesmo vestíbulo onde Lars aguardava, com certeza: Ingrid era uma das esposas mais velhas – e, na opinião de Hilde, a mais bela das mulheres estéreis de Lars. Diferente da maioria da população de Rudianos, tinha olhos escuros, profundos, que eram como grandes poços d’água à noite, à sombra e ao vento.
Era com esses olhos que Ingrid a contemplava, e sorria. Mesmo encapsulada na curiosa indiferença à sensação física criada pela intervenção do mercador, Hilde foi capaz de detectar um breve estremecimento, uma pequena tensão em si mesma. Ingrid era uma presença majestosa. Sempre tinha sido.
Comentava-se, no harém, que décadas atrás havia pagado um mercador para esgotar a fertilidade que ainda lhe restava, convertendo-a em uma forma duradoura de beleza, uma aura de poder mágico.
Sem mais nenhuma palavra, Ingrid contornou o divã até se colocar na posição que o mercador ocupara até então. Hilde não conseguia mais vê-la – mas de repente sentiu o toque feminino, tão diferente da textura áspera das mãos do mercador, na parte interna da coxa esquerda.
E então um outro toque, mais ao centro, mas indistinguível, indistinto, até um pouco desagradável – a princípio. Mas devagar, como uma imagem que entra lentamente em foco, Hilde foi se dando conta de nuances: úmido, quente, doce, rígido porém flexível, um hálito perfumado e uma língua curiosa, brincalhona, carinhosa.
A cápsula de insensibilidade derretia, mas não rápido o bastante: Hilde sentia-se como um personagem de conto de fadas, como a menina que comeu um biscoito mágico e agora cresce, cresce, chocando-se, empurrando, derrubando as paredes e o teto que a contêm.
As paredes explodiram ao redor de Hilde. Hilde explodiu ao redor de si mesma.
Quando voltou a abrir os olhos, a jovem viu Ingrid ajoelhada ao seu lado, os rostos tão próximos que quase se tocavam. Hilde mergulhou nos olhos escuros.
– Você gostaria de fazer o mesmo por mim? – perguntou a mulher mais velha.
Ofegando, Hilde só conseguiu assentir com a cabeça.
Ingrid sorriu:
– Esta noite, então. Lá em casa.
Ingrid se levantou e saiu, por alguma passagem que Hilde não conseguiu ver. Meia hora depois, a jovem já estava vestida e aguardava, atrás de um biombo, enquanto Lars conversava com o mercador.
– Demorou – queixou-se o marido.
– O processo é simples, mas é importante explicar para a mulher o que está acontecendo – desculpou-se o mercador. – Senão, sempre pode haver a tentação de testar a tranca, de buscar um homem que possa forçá-la. Essa é uma promessa que muitos sedutores fazem.
– E isso não é possível? – perguntou Lars.
– Nenhum homem pode abrir a fechadura que criei.
Não, pensou Hilde, lembrando-se das instruções que recebera enquanto se vestia: nenhum homem. Mas todas as mulheres tinham a chave, na ponta da língua.
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10 comentários:
Nooooossaaaaaadoreeeeiiii!!
Hehe, não me surpreendo.
Adorei também. Irrepreensivelmente perfeito. A naturalidade com que o Orsi insere uma infinidade de dados na narrativa deixa a gente de queixo caído.
Grato pelo comentário, Ludimila.
Hmmm, nem preciso dizer que curti :P
Ah, apareceu ;-P
Tinha marcado para ler, mas tinha esquecido, foi bom você ter me lembrado hehehe.
No aguardo de mais coisas do tipo :P
Hmmm, se você tiver algum conto do tipo... já sabe ;-)
Ei, gente, que bom que vocês curtiram (as meninas, principalmente: escrever sobre a sexualidade do "outros lado" é meio como pisar em ovos).
E, já qe gostaram, espalhem para os amigos, por favor!! :-)
E tem como não gostar, Orsi?
Valeu pela confiança!
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