15.3.09

Chaves perdidas

Você se lembra de onde deixou as suas?

Por Marcelo Augusto Galvão


Quando vejo meu pai, encolhido numa poltrona da sala, lembro de uma frase que li em algum lugar: “a memória é o carcereiro do cérebro”. E então imagino as recordações do meu pai fugindo de suas celas, destrancadas pelas chaves daquele carcereiro, e correndo desordenadamente pelos corredores escuros que formam o seu cérebro, debilitado pelo mal de Alzheimer.


Sua cabeça está inclinada na direção do aparelho de som, que toca um CD com as melhores canções de Roberto Carlos, seu cantor preferido. O médico disse que a música “ajuda a estimular o humor e os processos da memória do paciente”. Se meu pai realmente entende alguma coisa que sai dos alto-falantes, eu não sei dizer.





Com 77 anos, meu pai aparenta duas décadas a mais. Ainda que tivesse sido diagnosticada há apenas três anos, a doença foi devastadora. Começou com aqueles esquecimentos bobos, do tipo que acontece com qualquer um, principalmente naquela faixa etária. Ele, por exemplo, vivia esquecendo onde colocava as chaves do carro. É normal, diziam todos ao seu redor. Coisa da idade, continuavam dizendo mesmo quando os esquecimentos tornaram-se freqüentes.


Depois do episódio das chaves perdidas, surgiram as conversas repetidas. Eram histórias antigas que ele, sem nenhuma razão aparente, contava para mamãe ou para seus amigos aposentados. Nelas, ele relembrava seus tempos de menino no interior, detalhando com riqueza o gosto de uma goiaba roubada do pomar da minha bisavó; em outras vezes, recordava-se da época em que, trabalhando para o governo, visitou diversos países estrangeiros. Ao mesmo tempo, seu vocabulário empobrecia, algo incompreensível para um homem tão culto e que agora procurava com dificuldade palavras para se expressar. Até que numa manhã o encontraram parado, diante de uma estante da sua pequena biblioteca; segurava um livro aberto, o observando com um olhar apalermado. Foi quando mamãe percebeu que ele simplesmente havia esquecido como manusear um livro.


Depois de confirmada a doença, os médicos logo avisaram que o mal ainda não tinha cura; podiam apenas melhorar a qualidade de vida dele através de tratamentos combinados, tentando evitar que a memória, a linguagem e o comportamento se deteriorassem rapidamente.


Mas apesar dos remédios de nomes complicados, da musicoterapia e de outros tratamentos, o estado de saúde dele piorou. Seu ciclo de sono inverteu-se e às vezes ele ficava noites inteiras acordado, para depois dormir pelo dia todo. Era necessário uma perspicácia especial para saber quando ele estava com frio, calor, fome e sede; manter-se em "sintonia fina com o paciente", como uma vez disse o médico.


Também era comum a perda da noção do tempo e espaço. Com as fronteiras do passado e presente indefinidas, sua mente voltava décadas atrás e ele perguntava por amigos e parentes já mortos; desorientado, queria saber onde se encontrava e quem eram aqueles estranhos ao seu redor, para desgosto de mamãe.


A doença afetara também o corpo. A locomoção foi prejudicada; a casa foi adaptada com protetores de batentes e corrimões nos cômodos, para evitar quedas. A perda de peso acompanhou seu declínio mental, enquanto que uma teia de rugas foi tecida no seu rosto. Tudo isto acabou por desgastar minha mãe, que sofreu um ataque do coração fulminante.


Meu pai sequer compareceu no velório; não sabia a quem lamentaria e muito menos que um dia fora amado por aquela mulher.
Aos poucos, ele estava sendo apagado da existência, como uma gravura deixada muito tempo sob a luz do sol. Os médicos calculam que ele ainda viva naquele estado por mais dez anos, até que o Alzheimer, depois de humilhar sua vítima de todas as maneiras, finalmente vença.


Dez anos. É muito tempo para alguém sofrer. Muito tempo.


O alarme do meu relógio de pulso soa; é hora do último remédio no dia, antes de eu colocá-lo na cama. Roberto Carlos morre de repente quando desligo o som, e meu pai nem percebe.


- Pai. Remédio.


É assim que me comunico com ele, usando uma linguagem curta e simples; parece que falo com um filhote de cachorro. Eu dou o medicamento e o levo até o quarto, esperando que ele durma tranqüilo a noite toda. Também espero dormir bem; ando muito cansado nestas últimas semanas, tentando me acostumar com aquela rotina cheia de imprevisibilidades. Um bom banho quente vai livrar meu corpo do estresse acumulado.


Estendo o cobertor até o peito dele. Na semi-escuridão do quarto, ele me encara com aqueles seus olhos negros. Às vezes, como naquele momento, tenho a impressão que seus olhos brilham de uma forma diferente, como se ele reconhecesse o ambiente em volta e que eu sou seu filho.


Mas aquilo não dura mais do que um segundo e o olhar dele volta a ser vago. Saio do quarto no instante em que o pai começa a ressonar. No banheiro, ligo a hidromassagem; enquanto ela se enche lentamente com água, busco uma cerveja gelada para beber até que o banho esteja pronto. Abro a lata e tomo um gole.


Dez anos. É muito tempo para se esperar que alguém morra. Muito tempo.


Não suporto mais este fardo, cada dia mais pesado. Não tenho paciência para a tal "sintonia fina com o paciente" e nem disposição para ser o enfermeiro de um homem com quem nunca me entendi. Minha mãe dizia que a teimosia dele e o meu orgulho eram a origem de todos os problemas entre nós dois.


Para mim, a culpa sempre foi dele. Foi ele quem disse que publicitário não era profissão decente, foi ele quem nunca respeitou meus planos de abrir uma agência de publicidade. Quando meu casamento não deu certo, ele comentou que ao menos eu não fizera a burrada de ter um filho para pagar pensão alimentícia; quando a agência faliu, depois de dois anos de atividade, ele disse “não falei?”; quando fui despejado do meu apartamento, tive que engolir o orgulho e voltar a morar com ele e com mamãe.
Ele já estava doente nessa época e não passaria muito tempo para que mamãe morresse. Eu fui nomeado curador legal dele, administrando todo seu patrimônio para que, ao final, os rendimentos virassem remédios, fisioterapia, consultas ao médico e, é claro, fraldas, pois há muito tempo o velho esquecera como desabotoar as calças, imagine então urinar ou defecar. Agora, sou responsável por cuidar de um homem que nem sabe que eu sou seu filho. Mas eu sei muito bem quem é aquele velho enfiado em uma pijama.


Não acho justo ser forçado a vê-lo morrer aos poucos, sofrendo ao seu lado, quando tenho uma vida toda pela frente, podendo aproveitar melhor todo aquele patrimônio. Já está mais do que na hora dele finalmente descansar.


O único problema é que ele se esqueceu também como morrer. Por isso que darei uma ajuda.


Termino a cerveja, atravesso o corredor e sigo para o seu quarto. Acendo a luz; ele continua na mesma posição que o deixei. Seu braços estão cruzados sobre o peito, que sobe e desce devagar; da sua boca entreaberta, sai um ronco baixinho. Vou ao armário e tiro um travesseiro grande e macio, com cheiro de lavanda. É o que mamãe sempre utilizou para perfumar a roupa de cama.


Sinto uma sensação esquisita, como se alguém me observasse; volto-me e encontro seus olhos negros fixos em mim, com aquele brilho diferente, aquele brilho de reconhecimento.


De repente, o travesseiro parece chumbo nas minhas mãos. Respiro fundo; não posso desistir agora. O que estou prestes a fazer é um ato de misericórdia, digo para mim mesmo. Vou poupar seu sofrimento, assim como o meu.


Aproximo-me da cama. Nossos olhares se encontram. O brilho persiste; sei que ele me reconhece. Mas existe algo a mais naquele olhar: é medo. Sim, pois o velho reconhece a própria morte chegando.


O brilho acaba quando enterro o travesseiro no seu rosto, apertando-o com força. Escuto um gemido abafado. Seu corpo debilitado se contorce procurando por ar. Suas mãos se estendem na minha direção, tentam agarrar meus braços, arrancar o travesseiro. Tudo é inútil.


Continuo naquela posição por mais um, dois, três minutos, até os espasmos acabarem. O cheiro de lavanda espalha-se pelo quarto. Retiro o travesseiro e vejo aqueles olhos negros fitando o teto. Não há brilho algum neles.


Um ato de misericórdia, foi o que aconteceu hoje. É isto que sempre terei que lembrar.


***


Meu ombros não estão mais pesados; o fardo sumiu. É uma sensação ótima, que sinto enquanto faço o nó da minha gravata, preparando-me para a missa de sétimo dia.


Depois daquela noite, chamei o médico, que confirmou a morte súbita do paciente; pelo visto, as estimativas dele de dez anos de vida estavam erradas. Ninguém, inclusive a polícia, desconfia do meu ato de misericórdia.


Vou vender essa casa, que só traz más lembranças, e investir todo o patrimônio em uma nova vida. Ontem, por exemplo, comprei um carro zero quilômetro, bonito e veloz. Depois da missa, vou passear com ele pela cidade. Não tenho que me preocupar com mais nada, agora que herdei todo esse dinheiro. Na verdade, minha única preocupação no momento é descobrir onde coloquei as chaves do carro. Eu simplesmente não consigo lembrar onde as coloquei.

Este texto foi premiado na 16ª edição do Prêmio Cataratas de Contos e Poesias (2007), patrocinado pela Fundação Cultural de Foz do Iguaçu.

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