30.4.09

Romance on-line de Carlos Orsi

Uma ótima e uma má notícia para os leitores de ficção científica do Brasil. Carlos Orsi, um dos melhores escritores do gênero fantástico de nosso país, tornou disponível em versão e-book um romance voltado para o público juvenil. Nômade - Uma narrativa da grande viagem descreve o cotidiano de uma nave de geração, ou seja, uma em que a distância percorrida é tão grande que atravessa os anos, obrigando a tripulação e os passageiros a viver naquele ambiente, alguns não conhecendo outro tipo de lar ao longo da vida.

A parte ótima da notícia é que o paulistano de Jundiaí é mesmo uma referência nacional na ficção especulativa e sempre garantia de ótimas leituras. Já tive a oportunidade de resenhar um livro de contos dele, chamado Tempos de Fúria, seguramente ao lado das obras de Braulio Tavares e de Fábio Fernandes a melhor coletânea de um escritor de FC já lançada no país, e também de entrevistá-lo no meu projeto Ponto de Convergência. Com todas as credenciais, é certeza de que Nômade vai ser uma leitura indispensável (e fonte para mais uma resenha em breve).

Então qual pode ser a parte má da notícia? Ela está na motivação para que o autor tenha lançado sua obra em formato digital e não no impresso e pode ser lida no posfácio do livro, que reproduzo abaixo. Fica minha torcida pessoal pelo dia em que o mercado literário do Brasil amadureça, se profissionalize e passe a reconhecer seus escritores. Enquanto isso não acontece, temos a oportunidade de ler esta nova obra - ainda que escrita há meia década - de Carlos Orsi disponível neste endereço. Não é um castelo na França, mas...



Nota à edição free ebook – ou, por que este livro está aqui

Nômade tem uma história engraçada: o livro nasceu de uma encomenda estilo “contrato de risco” de uma importante editora do ramo de livros juvenis. Basicamente, perguntaram-me se eu topava escrever um romance para jovens sem compromisso, submeter a eles e, se gostassem, o livro saía.

Resumindo: escrevi. Submeti. Gostaram mais ou menos. Reescrevi. Gostaram pra valer. Não saiu.

Por quê? Não faço a menor idéia. O que sei é que passei a maior parte da presente década esperando que alguém na tal editora batesse o martelo, me apresentasse um contrato, fizesse alguma coisa. Depois de tanto tempo, até uma rejeição, tipo, “desculpe, mas o funcionário que deu aprovação inicial a seu livro foi diagnosticado com esquizofrenia, jamais publicaríamos um lixo desses”, teria sido bem-vinda.


Mas, bolas, para quê tratar escritores com cortesia e consideração, não é mesmo? Eles se vendem por aí, como diz o provérbio americano, por dez centavos a dúzia.


Então, o que pretendo ao lançar Nômade como um livro eletrônico grátis? Eu poderia responder dizendo que faço isso para exorcizar o fetiche do papel, que este livro representa meu grito de liberdade em relação às velhas mídias ultrapassadas que dependem de tinta e árvores mortas para subsistir.

Mas estaria mentindo.

Meu objetivo secreto, com este livro, é fazer tanto sucesso, mas tanto sucesso, que seja lá quem for o gênio que bloqueou a publicação lá naquela editora termine seus dias em desonra, opróbio e ostracismo, passando frio e fome e vendendo DVDs piratas na Praça da Sé.

Como conseguir o objetivo secreto é um pouco difícil, reconheço, meu objetivo expresso é, simplesmente, completar o parto iniciado tantos anos atrás. Cada escritor tem seu jeito, suponho, mas eu sou um maníaco da publicação: saber que tenho um texto acabado na gaveta é algo que me dói quase tanto quanto ter uma batata quente nas mãos.

Nestes quase 18 anos como escritor profissional (recebi meu primeiro cheque por uma obra de ficção em 1992) uma coisa que aprendi é que sou um péssimo vendedor: não adianta eu bancar uma tiragem e pôr a banquinha na rua, o livro vai encalhar, independentemente de seus méritos. A incapacidade psicológica de pedir dinheiro aos outros é um dos fantasmas que assombram minha vida.


Então, por que não simplesmente soltar o livro no mundo? Prece ser a solução lógica.

Outra coisa que aprendi nestes 18 anos é que os textos têm um jeito de achar seus próprios caminhos. Dia desses, dando uma busca por meus próprios títulos no Google (narcisista! narcisista!) achei o blog de uma menina que cita minha primeira coletânea de contos,
Medo, Mistério e Morte, como um de seus livros favoritos. Essa moça provavelmente nem tinha nascido quando os primeiros contos daquele livro foram escritos.

Então, aqui está Nômade. Talvez um dia ele venha a ser o livro favorito de alguém que não nasceu ainda.

Não é um castelo na França, uma vaga na Academia ou um fim de semana na Ilha de Caras, mas acho que dá para o gasto.

29.4.09

Papai Noel volta para Casa

Um atípico conto de Natal

Por Antonio Luiz M. C. Costa

Só a barba branca era de verdade. A roupa vermelha era um artifício ridículo, a pança não passava de enchimento. Até um dos olhos azuis por trás dos óculos de aros finos e dourados – também falsos – era de vidro. E ainda mais fingidos que tudo isso ficaram os ho-ho-hos, depois de penar com o calor fora do comum do Rio de Janeiro nessa véspera de Natal. Data odiosa, maldita.

Os supostos ajudantes de Papai Noel, dois negros magros e sorumbáticos, sacolejavam no banco às suas costas. Como de costume, não abriam o bico, mas o velho sabia que eles ansiavam ainda mais por chegar em casa. Estavam todos suados, exaustos e de saco cheio. Mesmo depois de distribuir todos os brinquedinhos.

Ao menos, a palhaçada acabara. Enfrentar de novo aquela criançada toda, só no ano que vem.

Sua querida velha sempre o chamava de pessimista, mas ele sabia ser apenas realista. Conhecera bem demais a natureza humana, mais do que muitos outros idosos da mesma geração. Tivera dias de grandeza, caíra na miséria e passara a depender desse humilhante bico de fim de ano para equilibrar as contas e ter um mínimo de conforto. Mas o pior de tudo era ter de fazer isso a serviço do concorrente que o tirara do negócio.

Da primeira vez que o desgraçado mandou o mensageiro lhe oferecer o biscate – idéia do seu novo sócio-executivo, soube depois –, quase foi lá cuspir na compassiva e generosa fachada do manda-chuva, mais fingida que a pose de bom velhinho que queria obrigá-lo a representar. Se fosse chamado de anti-semita, azar. Era velho demais para tentar ser politicamente correto.

A muito custo, a esposa o convencera a aceitar até que as coisas melhorassem. Melhorassem! Acaso ela não entendia que iam de mal a pior e que não viveriam para sempre? E ter de desperdiçar o que lhe restava de vida promovendo o mais desleal de seus inimigos?

Mas agora o vento fresco da noite já o animava e as inevitáveis sacudidas do veículo não o incomodavam, nem lhe interrompiam os devaneios. Quase conseguia se sentir otimista. Boa parte do seu leve sorriso, admitia ele, era feito de germânica Schadenfreude, o sentimento de alegria pela desgraça alheia tão conhecido de seu povo. Seu empregador não ia bem, os problemas continuaram a piorar desde o ano anterior. Nunca o vira tão nervoso e rabugento.

A globalização agora só dava dores de cabeça ao patrão que antes tanto a elogiava. Um concorrente árabe lhe tirava mercados, usando as mesmas táticas brutais e inescrupulosas com as quais roubara os clientes de tantos negócios menores. Até aqueles indianos de fala mansa, que pareciam tão ingênuos e inofensivos, já o comiam pelas beiradas. A família brigava e se dividia, cada um exigindo sua parte para fundar o próprio negócio. Seus podres vinham à tona, os esqueletos despencavam dos armários.

Melhor, o poderoso sócio executivo, sem o qual o maldito déspota jamais teria chegado onde chegou, controlava cada vez mais as operações e mal lhe dava atenção. Negociava abertamente com os concorrentes e até mesmo nas datas comemorativas da fundação da casa esquecia-se de mencionar o nome do patrão e fundador, do qual cada vez menos clientes se lembravam.

Nessa época do ano, ria-se o falso Papai Noel, até o palhaço de vermelho era mais popular. O patrão tivera mais um daqueles hediondos ataques de ira e ciúme e tentara demiti-lo de uma vez por todas. Mas o executivo-chefe arquivou o memorando, chamou o velho caolho em particular, pediu-lhe desculpas pelo mau comportamento do sócio, elogiou seu trabalho e agradeceu antecipadamente os lucros que continuaria a lhe trazer. Até prometeu um aumento.

Continuava a ser um trabalho odioso, mas os momentos divertidos estavam se tornando mais freqüentes. E tinha de dar o braço a torcer à esposa: graças às seus sagazes conselhos de paciência, as coisas começavam a melhorar. Além de lhe deixar acumular uma pequena reserva, o bico lhe dera oportunidade de sair de casa, exercitar suas faculdades e as de seus ajudantes, manter contatos, fazer novos amigos e conquistar um punhado de fãs e clientes ocasionais.

Já pensava em reabrir o negócio. Anteontem à noite, naquele boteco à beira-mar, conversara confidencialmente com antigos rivais e eles se mostraram receptivos à idéia de uma nova sociedade. O safado do grego estava ainda mais falido do que ele, mas também queria voltar à ativa e tinha muita experiência. Sua velha amiga irlandesa também vinha sondando o mercado, tinha um punhado de bons clientes e estava disposta a contribuir. O baiano, único da velha guarda a manter seu ponto, também se interessou por ampliar os horizontes.

Um trovão distante o fez se lembrar da conversa do filho com um cineasta entusiasmado na história da família. Se desse certo, seria uma ótima propaganda. Ao contrário do pretensioso concorrente, o falso Papai Noel sabia não ser imortal. O fim podia não estar distante. Mas agora quase podia jurar que haveria de brilhar de novo antes desse dia chegar, e seu filho também. Todos iam ver!

Ah, sim. Precisava se trocar antes de chegar em casa. No ano passado, se esquecera e o porteiro quase perdera o fôlego de tanto rir. Ficara com vontade de lhe dar uns tabefes, mas acabou por rir com ele. Estava ridículo, teve de admitir. Mas este ano, não. Era hora de recuperar a dignidade.

Sentiu mais um sacolejo forte, ao atravessar outra inesperada corrente de jato. Olhou em volta, calculou que já havia cruzado o Círculo Ártico e procurou um lugar para pousar o trenó. Aquilo ali em baixo eram as geleiras da Groenlândia, a montanha devia o Gunnbjørn. Puxou as rédeas e conduziu o time de oito renas nessa direção, até encontrar um platô adequado.

O Papai Noel de mentirinha apeou-se do falso trenó e esticou as pernas cansadas. Admirou a paisagem noturna, o suave brilho da aurora boreal, o silvo do vento gelado, os poucos flocos de neve que lhe tocavam as bochechas rosadas. Apreciou a sensação familiar. Estava quase em casa, longe do inferno das selvas, savanas e metrópoles tropicais onde tivera de distribuir milhões de malditos presentes. Só faltava uma coisinha.

Disse aos ajudantes para descerem e os dois negros o obedeceram, animados pela primeira vez naquela noite. Começaria por eles. Arregaçou a manga, tocou o bracelete mágico, sussurrou sílabas misteriosas e os dois voltaram a ser corvos e lhe pousaram nos ombros. Logo teriam de retornar à tarefa de conferir se as crianças se comportariam bem ou mal, mas teriam uma merecida semana de férias.

E ele tinha razões para esperar que em poucos anos poderia voltar a lhes confiar missões mais importantes. Os dias de tirania de Javé e Mammon estavam contados. Zeus, Morrigan e Oxalá se uniriam à sua luta.

Mais um gesto mágico. O trenó voador transformou-se em enorme lança de arremesso, poderosa e infalível. Outro. As oito renas se fundiram em um único e espantoso animal, um enorme cavalo de oito patas. Terceiro gesto. A ridícula fantasia vermelha transformou-se em uma armadura imponente e completa e o corpo retornou à sua majestosa estatura verdadeira. O olho de vidro lhe caiu da órbita ampliada, enquanto os corvos erguiam vôo.

O velho recolocou a ameaçadora venda negra, empunhou a lança e montou. Com um relinchar impressionante, o colossal Sleipnir ganhou os céus, seguido pelos fiéis Hugin e Munin. Sua velocidade espantosa sacudiu as geleiras desertas com um estrondo sônico, pouco antes de alcançar Bifröst, o portal entre os dois mundos.

O leal porteiro o reconheceu e fez soar a trombeta Giallarhorn, como nos velhos tempos. O rei agradeceu a Heimdall com um acenar de cabeça, enquanto as valquírias convergiam de todas as direções para formar a guarda de honra e escoltar o soberano ao Valhalla. Frigg, Thor e toda Asgard o esperavam para abrir a festa de Yule, o solstício de inverno. Odin sentiu-se em casa.

Arte: Georg Von Rosen - Odem som vandringsman, 1886

26.4.09

A vez de Gustav

Uma nova aventura nazipunk

Por Michel Argento


Fazia frio naquele final de outono no sul da Inglaterra, e Gustav fechou o zíper do casaco e se encolheu dentro dele. Fora da casamata o vento era gelado e cortante, com um eterno odor de grama molhada, e o mar era cinzento e triste. Ele acendeu um cigarro e se encostou no concreto frio da construção.

De todos os lugares para onde poderiam mandar um jovem tenente, graduado em engenharia de telecomunicações pela Universidade Militar de Munique, a Inglaterra era o segundo pior, só perdendo apenas para as estepes geladas da Rússia desmembrada.

Ele, como muitos de sua geração, e da geração anterior, crescera aprendendo a detestar ingleses e franceses devido às humilhações que as antigas potencias haviam infligido ao povo alemão após a derrota na primeira guerra. Agora, diferente de outros tempos, não mais os odiava, apenas tratava-os como os inferiores que eram. E aquele molho inglês era nada menos que horrível.

O Reich, diferente de seus inimigos, não os humilhara ao derrotá-los, pelo contrário, os mantiveram de posse de sua ilha gelada e os deixava viver em relativa independência, com exceção dos expurgos raciais no campo de concentração de Liverpool, e de uma série de fortificações espalhadas pelo país. A maioria delas ficava ao longo do Canal da Mancha, e uma delas, localizada em Dover, onde Gustav estava condenado a servir pelos próximos dois anos, era a mais importante, pois era onde terminava o cabeamento submarino proveniente da França. Por ali passavam todas as comunicações entre a ilha e o continente, e enquanto a tal tecnologia orbital de transmissão não fosse concluída, para que as informações pudessem ser transmitidas sem a necessidade de cabos, ela era de fundamental importância, e alvo constante dos guerrilheiros ingleses.

Jogou a ponta do cigarro no chão e acendeu um segundo. Se fosse fazer uma lista das vantagens que via na Inglaterra, talvez só houvesse uma: o cigarro. Os ingleses fumavam aos montes e não viam problema nenhum nisso, enquanto nas principais cidades da Alemanha o fumo era estritamente proibido, e nas menores e nos novos territórios era altamente restrito. Mas nas bases inglesas os oficiais faziam vista grossa, não chegavam a ser tão liberais quanto na Rússia, mas não criavam casos, desde que se fumasse fora das construções.

Durante uma folga, em Paris, seis meses atrás, havia pegado três dias de prisão por fumar do lado de fora de um café. Foi uma lição que não esqueceria tão cedo.

Terminou o segundo cigarro e começou a andar de volta para o prédio principal. Eram quase quatro horas da tarde, e logo partiria o último transporte para a cidade, e Gustav não queria perdê-lo, ou teria de andar quase cinco quilômetros naquelas estradas poeirentas e frias. Ele, como muitos outros, alugava um pequeno apartamento na cidade, que não era grande coisa, mas era um lugar onde podia ter a privacidade que a vida na caserna lhe negava.

Subiu na parte de trás do caminhão e sentou-se ao lado de dois sargentos no lado direito da carroceria. Os três espremeram-se entre uma infinidade de caixas que seriam despachadas para sabe-se lá onde. Os dois sargentos falavam animadamente, fazendo planos para a noite na cidade, quando o caminhão começou a rodar e sacudir sobre a estrada esburacada e, após uma pequena parada para verificação na saída da base, deslizou pelo asfalto em direção a cidade.

- Podiam asfaltar esse trecho de inferno – disse o primeiro sargento.

- Pelo menos não está chovendo – falou o segundo e voltaram a sua conversa sobre pubs, cerveja e prostitutas.

Talvez algum dia alguém em Berlim ou Londres lembrasse de mandar asfaltarem aquela estrada, tanto pela poeira insuportável nos raros períodos sem chuva, quanto pelos buracos desagradais ou a lama eterna. Mas parece que no futuro próximo nada seria feito com relação aquela estrada, visto que a eterna “fronteira quente” da Rússia ficava cada vez mais quente e as relações com a China continental e o Império Japonês pareciam se deteriorar a cada dia. Do outro lado, os EUA estavam começando a abrir mão de sua passividade, dando sinais de estarem recuperados da surra levada na década de 1940.

Após um sacolejo, por uma fração de segundos, Gustav pensou estar flutuando no ar. Viu claramente as caixas subirem vagarosamente em direção ao teto de lona, como se desprovidas de todo o seu peso, bem como os dois sargentos ao seu lado. Ele mesmo se viu subindo, placidamente, até bater com a cabeça em um dos arcos de metal que sustentavam a cobertura.

Depois, sem aviso, tudo despencou, e aquilo só poderia acontecer por uma razão: o caminhão havia passado sobre uma mina terrestre.

Gustava caiu pesadamente contra o banco, tendo seu braço direito sido prensado entre seu corpo e a madeira dura. Algumas caixas caíram sobre suas pernas, e ele sentiu perfeitamente quando uma delas, que devia conter uma bigorna, segundo sua imaginação, caiu pesadamente sobre seu tornozelo, quebrando-o. Ele podia jurar, diante de qualquer tribunal, que ouviu nitidamente o barulho dos ossos sendo partidos, mas isso seria impossível, devido a surdez temporária ocasionada pela explosão.

Sentiu quando o caminhão tombou de lado e pareceu se arrastar pela terra, com um grande chiado. Ele foi jogado para o lado e bateu novamente com a cabeça no arco de metal, mas dessa vez com força suficiente para perder os sentidos.

Recobrou levemente a consciência e viu, em meio a visão turva que seus olhos lhe propiciavam, os dois sargentos serem executados a tiros de fuzil por três homens encapuzados, que em seguida o ergueram pelos braços e começaram a arrastá-lo para fora do caminhão, pela estrada, com seu tornozelo quebrado batendo na terra e pedras, e depois o jogaram por cima da cerca baixa do campo verde, onde ao longe, ante de perder novamente os sentidos, ele pode divisar o imenso vulto branco sobre fundo de verde de um rebanho de ovelhas.

Acordou algemado a uma cadeira, com os ouvidos zunindo e latejando pela explosão, no que parecia ser um porão fedendo a terebentina e mijo velho, com um toque de cerveja azeda. A única iluminação provinha de uma pequena lâmpada no teto, que lançava luz a sua volta.

Sua cabeça estava amarrada por tiras de couro ao encosto da cadeira, de forma que só podia olhar para frente. Tentou mexer os baços, mas estes estavam amarrados pelo que ele julgou serem cabos de aço e ao tentar mexer as mãos, pontadas gêmeas de dor subiram por seus nervos lhe avisando que havia dois gigantescos pregos atravessando carne e ossos e indo de encontro com a madeira.

- Dói menos se você ficar parado – falou alguém fora de seu campo de visão, com um sotaque do norte, provavelmente da Escócia.

- Dói menos se você falar – disse outra voz, com um sotaque parecido e alguém, talvez o dono dessa voz, lhe desferiu um soco no ouvido esquerdo e o zunido aumentou.

- Responder... o... que... – tentou dizer, mas sua língua estava inchada e cortada, e sentia gosto de sangue e terra em sua boca.

Outro soco lhe foi desferido, dessa vez na face esquerda. Ele sentiu a carne ser prensada e cortada contra os dentes, que por final cederam e caíram, talvez dois ou três, dentro de sua boca. Cuspiu-os junto com uma bola de sangue e saliva.

- Acho que seria melhor perguntar, e não somente agredi-lo – falou uma terceira voz, que transmitia calma e confiança.

- Eles não pensaram nisso quando dizimaram nosso exercito em Dunquerque – rugiu a segunda voz. – Meu pai estava entre eles, e foi morto como um cachorro de costas para o mar.

Uma pontada de dor subiu das costelas de Gustav e o fez se contorcer de dor. Não era uma agressão nova, mas provavelmente uma fratura do acidente, que agora começava a fazer sentir-se.

- Ele tem que falar pra evitarmos outro Dunquerque, ou outra Birmingham – disse a terceira voz.

- Birmingham... foi um infeliz... acidente... – conseguiu dizer Gustav entre gemidos e dentes quebrados.

- Infeliz acidente? – perguntou a primeira voz, em tom de incredulidade.

O golpe em sei peito foi tão forme, com certeza ocasionado por um taco de críquete, que a cadeira oscilou para trás enquanto o peito de Gustav era esmagado e o ar deixava seus pulmões como ratos deixando um navio.

- Se vocês dois não se acalmarem, todo o trabalho terá sido em vão.

- Pro inferno com o trabalho – esbravejou a segunda voz. – Quando quiser matar alemães, chame escoceses, ou até mesmo irlandeses. Agora se queria só conversar com ele e tomar um chá, devia ter chamado qualquer maldito inglês.

A cadeira foi derrubada e Gustav sucumbiu sob uma avalanche de socos e pontapés. Sentiu cada osso de seu corpo ser quebrado e cada vaso sangüíneo ser rompido.

Ian subiu as escadas em direção ao pub, estava com seu terno cinza e o guarda-chuva debaixo do braço. Fechou a porta que dava acesso à escada atrás de si e contornou o balcão. O lugar estava apinhado com oficiais alemães, técnicos europeus e diversos ingleses que bebida cerveja em grandes canecas de vidro e davam tapinhas nas costas de algum alemão conhecido.

- Ian, meu velho! – quase gritou o um capitão da AS, velho conhecido de Ian.

- Como vai? – respondeu enquanto colocava o avental branco com o brasão do pub estampado, um Spitfire descendo sobre uma esquadrilha de Stukas, Messerschmidts e um ou outro Dorniers, dependendo de que ilustrasse. Os alemães achavam aquilo divertido.

- Vou bem. E aqueles seus primos da Escócia?

- Estão vindo – disse olhando para a porta do porão. – Só estão terminando de retalhar um carneiro.

- Vamos ter um cozido hoje então? – perguntou outro capitão, que Ian não conhecia ainda. Provavelmente recém-chegado de Londres ou Paris.

- Sim, vamos sim. Hoje o cozido vai ser por conta da casa.

Paradigmas - a resenha lusa

A coletânea que inaugurou a Coleção Paradigmas recebeu atenção de uma leitora portuguesa, Cristina Alves, do blog Rascunhos. Ela analisa alguns dos treze contos do livro e conclui:

A antologia constitui um conjunto diversificado de contos, que misturam o horror com a ficção científica, a fantasia ou o folclore. Aconselhável a quem deseje ler algo diferente, histórias de origem dispare da anglo-saxónica. Por último, resta apenas agradecer o envio do exemplar!


Para ler o texto completo, é só clicar aqui.

25.4.09

Paradigmas - a entrevista

O organizador da coletânea Paradigmas e um dos sócios da editora Tarja concedeu uma entrevista sobre o projeto da coleção ao site Fantasitik. Leia a seguir um trecho e confira a íntegra aqui:

Qual a proposta do projeto Paradigmas?

A idéia principal do Projeto Paradigmas é traçar um perfil dos autores que vem atuando com freqüência nessa época, independente da mídia utilizada. Muitos escritores tem uma boa produção, porém não possuem trabalhos expostos ao público em uma mídia permanente, ou mesmo catalogados em uma compilação que resista para a posteridade. Esta coleção tem previsão inicial de doze volumes, com projeção para alcançar 25, dessa forma pode cumprir essa meta a contento. O processo de seleção dos textos é extremamente rigoroso, de tal maneira que além de grandes nomes, teremos também o melhor dessa produção.

23.4.09

Paradigmas - nova resenha

Dica do paradigmático Bruno Cobbi: saiu a segunda resenha da coletânea Paradigmas. O texto pode ser conferido no blog Lote do Betão. Segue um trecho:

Recebi o livro faz quase um mês. Mas só o terminei poucas horas antes deste post ir ao ar. Por quê? Porque dias antes recebi um e-mail do Cobbi perguntando se eu tinha recebido o livro. Sim, eu havia recebido, mas não queria terminar. Tinha devorado alguns contos, regurgitado outros e ainda usado um ou outro como poderoso sonífero – mas o livro tinha uma qualidade estranhamente diferente. Como uma cabeça esquizofrênica de muitas vozes falando de mundos diferentes e realidades bizarras, tudo ao mesmo tempo agora. Dragões adormecidos em motos ultravelozes esgarçando combates com taças de ouro e homens de prata.

15.4.09

Clitoridectomia reversa

Sobre chaves e fechaduras por Carlos Orsi



A tenda do mercador de castidade era de quitina avermelhada por fora e pele rosada por dentro. O material estava vivo: a superfície interna arrepiava-se ao toque, exalando um aroma de flores exóticas e estendendo cerdas sedosas, numa carícia que surpreendia todos os visitantes, deleitava a maioria e desagradava profundamente a outros.

Lars viu-se no grupo minoritário: tanta ostentação, pensou – corretamente – só poderia significar uma conta muito salgada ao final da operação. Mas o mercador tinha sido recomendado pelas esposas mais velhas: e, se a experiência de Lars com mulheres lhe havia ensinado algo, era que sempre se podia contar com o ciúme de umas para pôr fim aos prazeres de outras.

Este fato, e um breve olhar para a mulher que trazia ao mercador – Hilde, a mais jovem de suas esposas e a única ainda em idade fértil – obrigou-o a engolir os receios. Hilde era bela, desejável. Sob o vento forte do deserto, nem mesmo o tecido rústico e pesado dos véus e vestidos deixava de moldar-se às curvas do corpo, destacando seios, cintura, quadris, coxas, ombros – coisas que os homens de outros clãs certamente notavam com avidez.

Era sua descendência que estava em jogo, disse Lars a si mesmo, a continuidade do clã, da herança. Seria melhor gastar um pouco mais agora do que investir toda a fortuna de sua linhagem em um bastardo, trabalhar décadas para ver prosperar o fruto da virilha de outro.

Hilde, por sua vez, encantou-se com a pele da tenda. Tinha ouvido histórias – da avó, ou de uma tia, não estava certa – sobre como uma ancestral, recém-chegada a Rudianos, ainda na primeira onda de colonizadores, trouxera um vestido de fibras vivas, homeotermas, que mantinham uma temperatura constante de 22 graus e respiravam exalando perfume de rosas.

O traje era hidratante e alimentava-se de gordura da pele e de células mortas: usá-lo por um dia era como rejuvenescer uma semana.

Não havia durado mais de um mês. Tinha sido calcinado pelos raios ultravioleta do sol de Rudianos, corroído pelos radicais livres no vento. Sentindo um estremecimento não de todo desagradável no braço, enquanto os pelos lambiam-lhe a ponta dos dedos, Hilde perguntava-se quanto tempo a tenda do mercador sobreviveria neste mundo.

– Mulher – era a voz de Lars, a voz do marido, a voz que Hilde conhecia melhor que a sua própria – o homem quer ver você. É por ali – enquanto Hilde se voltava para encará-lo, Lars apontava para uma tapeçaria decorada que divida o espaço interno da tenda em dois compartimentos. – No consultório.

* * *
O mercador era de fora. Hilde podia dizer isso só de olhar para ele – principalmente por causa da pele escura, naturalmente escura, não marcada pelo sol. Isso a confundiu por um momento. Havia mercadores de castidade em outros mundos?

– Dispa-se – disse o homem escuro.

Hilde sentiu um pequeno choque ao ouvir a ordem, uma ponta de indignação misturada a – ela se viu obrigada a admitir – um certo prazer perverso: é assim que o velho Lars vai preservar a fidelidade da esposa mais nova? Despindo-a diante de estranhos?

Que assim seja, pensou. Ouço e obedeço.

A frieza do olhar com que o mercador analisou seu corpo nu desconcertou Hilde. Ninguém nunca lhe dissera nada a respeito, mas ela sabia que era desejável – esta não era a grande verdade oculta por trás de tudo o que estava acontecendo? Que marido gastaria fortunas para tirar o prazer de uma mulher que não deleitasse os homens?

Mas não era frieza, Hilde disse para si mesma, parada ali, sem roupas, uma brisa que vinha não se sabe de onde enrijecendo-lhe os mamilos e arrepiando a pele dos seios, desejáveis mas, ainda assim, pequenos o bastante para dispensar suporte.

Era interesse profissional.

– Deite-se – ordenou o mercador.

Hilde estivera tão concentrada ao entrar no consultório que não havia notado nada além do homem, nenhum móvel, aparelho, nada. Agora, seguindo, com os olhos, a direção indicada pela mão aberta do estranho, viu o divã – se é que era um divã: uma peça onde ela poderia reclinar-se, mas que, na extremidade oposta ao apoio para a cabeça, era ondulada e bifurcada, um arranjo que manteria as pernas da mulher erguidas e afastadas.

Ouço e obedeço, pensou.

– Sabe – assim que Hilde se deitou, o mercador assumiu uma posição junto à extremidade bifurcada do divã, efetivamente desaparecendo em meio aos fartos pelos pubianos da mulher, que agora não podia mais vê-lo, mas apenas ouvi-lo e senti-lo – vocês rudianianas deviam tentar convencer os homens a autorizar exames de DNA. É uma tecnologia antiga, mas confiável.

Hilde já tinha ouvido falar desses testes, que permitiam a um homem saber, com certeza, se um filho era seu ou não. Curioso o mercador estrangeiro achar que o exame era proibido: de modo algum. Apenas era irrelevante: a honra rudianiana exigia que cada homem se responsabilizasse pelo que fosse semeado em suas terras e em seu harém. Só isso.

Então, o estranho passou a tocá-la. Hilde duvidava que alguém conseguisse sentir prazer naquelas circunstâncias, mas foi surpreendida por uma suave contração involuntária do abdome. Sentiu que estava ficando molhada.

– Seu marido me pediu para verificar se você realmente tinha sido operada. E você foi, posso garantir – disse o mercador. – A glande do clitóris foi totalmente removida. Não de forma elegante, pelo que vejo, mas bem eficiente.

O homem falava de um modo que não era exatamente frio, mas também não chegava a ser amistoso – o tom misturava interesse técnico e uma simpatia distante, profissional. Certamente, suas palavras não traduziam paixão nenhuma, exceto pelo trabalho.

Mas havia algo na precisão técnica de seu toque, uma doçura ao mesmo tempo tão impessoal, que fazia Hilde sentir como se estivesse com o marido, como se esta fosse mais uma das noites ruins. As noites que tinham feito Lars desconfiar, que faziam Hilde sentir-se culpada.

Ela estava molhada lá embaixo, e agora eram os músculos das nádegas que se contraíam. Havia algo elétrico nas pernas, também.

– O problema – o mercador falava como se não notasse o efeito que sua manipulação estava provocando, ou como se considerasse a reação de Hilde desimportante – é que o clitóris é um órgão muito maior que só a glande. Ele tem um corpo que se abre por trás dos lábios menores, envolve a vagina e penetra até abaixo do osso. A maior parte das terminações nervosas fica realmente na glande, mas o restante do corpo clitoriano é perfeitamente capaz de gerar um orgasmo.

Hilde mordia o lábio inferior e fechava os olhos com força, até lacrimejar. Não adiantou: seu corpo não era mais seu, era um elástico esticado até o ponto de ruptura, e só o que ela podia fazer agora era esperar para ver se ele iria rasgar ou...

Relaxar.

– Como demonstrado – disse o mercador, após ouvir o suspiro abafado de Hilde. – Claro, toda a idéia por trás da remoção da glande é tornar a mulher insensível, para matar, pela raiz, poderíamos dizer, a tentação de buscar intimidade com outros homens. Se o incentivo continua presente, portanto, há um problema. Ao menos, aos olhos do código de honra de vocês, aqui.

Hilde ouviu um tilintar de cristais enquanto o mercador continuava a falar:

– Toda a biologia funciona em sistemas de chave e fechadura – disse ele. – As coisas só acontecem quando duas moléculas, feitas sob medida uma para a outra, se encaixam. O que vou fazer, atendendo ao pedido de quem me chamou a este planeta, é criar uma caixa-forte química, com uma fechadura especial, para isolar o seu orgasmo.

Hilde sentiu quando o líquido gelado tocou sua vulva. No entanto, embora o toque em si a deixasse intrigada, não havia nenhuma excitação ligada ao fato – nem mesmo a do medo. Na verdade, o relaxamento progressivo que ela vinha experimentando consumou-se abruptamente, e Hilde se deu conta de que estava relaxada por completo, mas que não se sentia nem um pouco melhor com isso. De repente, seu corpo era como o corpo de outra pessoa.

Então, ela soube que as noites ruins tinham acabado. E experimentou a mais absurda mistura de alegria e desespero, como se o coração criasse asas e se transformasse em pedra ao mesmo tempo.

– Mas é claro que toda fechadura responde à chave ou combinação adequada – afirmou o mercador, afastando-se.

– Olá, Hilde.

A jovem virou a cabeça e viu Ingrid em pé, a seu lado. Desde quando ela estaria ali?, perguntou-se Hilde. Por onde teria entrado? Não pelo mesmo vestíbulo onde Lars aguardava, com certeza: Ingrid era uma das esposas mais velhas – e, na opinião de Hilde, a mais bela das mulheres estéreis de Lars. Diferente da maioria da população de Rudianos, tinha olhos escuros, profundos, que eram como grandes poços d’água à noite, à sombra e ao vento.

Era com esses olhos que Ingrid a contemplava, e sorria. Mesmo encapsulada na curiosa indiferença à sensação física criada pela intervenção do mercador, Hilde foi capaz de detectar um breve estremecimento, uma pequena tensão em si mesma. Ingrid era uma presença majestosa. Sempre tinha sido.

Comentava-se, no harém, que décadas atrás havia pagado um mercador para esgotar a fertilidade que ainda lhe restava, convertendo-a em uma forma duradoura de beleza, uma aura de poder mágico.

Sem mais nenhuma palavra, Ingrid contornou o divã até se colocar na posição que o mercador ocupara até então. Hilde não conseguia mais vê-la – mas de repente sentiu o toque feminino, tão diferente da textura áspera das mãos do mercador, na parte interna da coxa esquerda.

E então um outro toque, mais ao centro, mas indistinguível, indistinto, até um pouco desagradável – a princípio. Mas devagar, como uma imagem que entra lentamente em foco, Hilde foi se dando conta de nuances: úmido, quente, doce, rígido porém flexível, um hálito perfumado e uma língua curiosa, brincalhona, carinhosa.

A cápsula de insensibilidade derretia, mas não rápido o bastante: Hilde sentia-se como um personagem de conto de fadas, como a menina que comeu um biscoito mágico e agora cresce, cresce, chocando-se, empurrando, derrubando as paredes e o teto que a contêm.

As paredes explodiram ao redor de Hilde. Hilde explodiu ao redor de si mesma.

Quando voltou a abrir os olhos, a jovem viu Ingrid ajoelhada ao seu lado, os rostos tão próximos que quase se tocavam. Hilde mergulhou nos olhos escuros.

– Você gostaria de fazer o mesmo por mim? – perguntou a mulher mais velha.

Ofegando, Hilde só conseguiu assentir com a cabeça.

Ingrid sorriu:

– Esta noite, então. Lá em casa.

Ingrid se levantou e saiu, por alguma passagem que Hilde não conseguiu ver. Meia hora depois, a jovem já estava vestida e aguardava, atrás de um biombo, enquanto Lars conversava com o mercador.

– Demorou – queixou-se o marido.

– O processo é simples, mas é importante explicar para a mulher o que está acontecendo – desculpou-se o mercador. – Senão, sempre pode haver a tentação de testar a tranca, de buscar um homem que possa forçá-la. Essa é uma promessa que muitos sedutores fazem.

– E isso não é possível? – perguntou Lars.

– Nenhum homem pode abrir a fechadura que criei.

Não, pensou Hilde, lembrando-se das instruções que recebera enquanto se vestia: nenhum homem. Mas todas as mulheres tinham a chave, na ponta da língua.

10.4.09

Amor incondicional

Até que a fome os separe
por Afonso L. Pereira



Desespero. Eu estava desesperado!

Minha esposa, apesar do que os outros diziam em contrário, amava-me! Disto tenho a mais absoluta certeza! Amava-me, sim, lá do seu jeito meio turrão de ser, pois cumpre dizer, a bem da verdade, que ela não era muito dada a expressar os próprios sentimentos. Há pessoas que detestam discursos de aniversário, confraternizações de fim de ano, declarações de amor a qualquer hora e toda sorte de acontecimentos sociais do tipo que envolvam emoções fortes! Elisa era assim! Nunca tive a oportunidade de ouvir dela o que ela sentia por mim, mas isso pouco me importava. O que se sente pelo outro, às vezes, não precisa ser traduzido em palavras, não é mesmo? Pode-se, muito bem, “sentir-se” na pele, no olhar, no abraço, no gestual de carinhos!

Elisa, minha tão adorada esposa, encontrava-se jogada no canto do quarto de dormir, o cômodo mais protegido de nossa casa. Queriam matá-la! A turba de desocupados, violentos, ensandecidos, insensíveis, havia tomado a frente do pequeno sobrado onde morávamos. Clamavam por vingança! A cidade achava-se em polvorosa no mais completo caos! Mas não fora só a cidade onde havíamos escolhido para viver que perdera-se na barbárie; era igualmente certo afirmar, uma vez posto, que notícias davam conta de que a tragédia se propagara pelo país inteiro. O massacre da população que se devorava não tinha precedentes históricos conhecidos: “Zumbis”, “mortos-vivos”, “infectados”, ou sabia-se lá que nomes se atribuíam aquelas “coisas” destituídas de humanidade, vagavam sem rumo, matando e multiplicando a doença!

As pancadas na porta da frente, no intento de arrombá-la, ocorriam cadenciadas. As criaturas nojentas tinham tido a idéia de usar algum objeto pesado como aríete. Os móveis que eu havia empilhado na entrada, a única entrada desimpedida por grades de ferro, cediam terreno a cada estocada. A invasão iminente me levava ao desespero, pois a preocupação não se dava por mim, mas se dava por ela: Elisa, minha adorada esposa. Não! Não! Eu não queria perdê-la! Prometera ao padre que a amaria e a respeitaria na alegria e na adversidade conquanto tal compromisso, naquelas circunstâncias, pudesse me causar a morte. Quem ama sabe o quanto é doloroso não poder proteger a pessoa amada!

Quando os boatos chegaram a meu conhecimento de que a situação se invertia, ou seja, que a população de algum modo, movida pelo instinto de auto-preservação, estava conseguindo deter os morto-vivos, aniquilando-os por meios que, naquele momento, pouco me interessavam, a nossa situação familiar se havia ruído irreversivelmente: Elisa fora atacada e infectada! E naquele momento terrível, digo-vos sinceramente, senhores, dilacerava-me o coração ver a pobre coitada lutando incansavelmente contra as correntes que a prendiam aos pés da pesada cama de estilo colonial de que tanto gostava. Ela já não era a mesma pessoa. O corpo, mal coberto pelos trapos que lhe serviam de roupa, carregado de enormes feridas abertas, o rosto esverdeado e indiferente, onde se projetavam os olhos embranquecidos pela doença, afligiam violentamente os meus sentidos. Eu não sabia fazer outra coisa senão chorar e ficar sentado na frente dela implorando que voltasse para mim!

Às vezes a minha Elisa aparecia angustiada naquele rosto transfigurado, como alguém que se afogando procurasse, num impulso desesperado, romper à superfície na busca da última golfada de ar. Estes breves momentos, não raros, quando ocorriam, levavam-me a um sentimento de aflição e impotência ainda maiores. Os olhos de minha amada surgiam nos globos embranquecidos e conectavam-se com os meus me transmitindo uma mensagem que eu entendia perfeitamente: “me ajude, por favor!” E antes que eu pudesse dizer qualquer coisa inteligível, ela se afundava naquela criatura abjeta que se transformara. O horror voltava-me em ondas sucessivas a cada tentativa que ela fazia para comunicar-se comigo.

O hall de entrada, após os sucessivos golpes da turba, cedera causando o enfraquecimento da improvisada barricada de móveis. Eu não tinha muito tempo! Fui até o corredor do segundo andar e olhei para baixo. Verifiquei, muito a contragosto, que no vão da porta entreaberta algumas cabeças nervosas com braços invasores tentavam empurrar o amontoado de sofás, mesas, armários e cadeiras. Uma daquelas cabeças, meio que afastadas das que forçavam a entrada, me percebeu no alto da escada.

— Parem! – Gritou Victor, meu melhor amigo. Ele fora testemunha de minha união matrimonial com Elisa e mais do que ninguém ali sabia o quanto ela me era preciosa.

Todos pararam!

— Amigo, meu irmão! – disse ele, em voz alta e emocionada, dando início ao trabalho de me convencer o que todos na cidade consideravam como o melhor para mim. - Não adianta protegê-la. Não faça isso! Elisa já morreu há muito. Esta coisa que você diz ser a sua mulher, me perdoe o áspero das palavras, não passa de um animal doente infectado, contagioso, que precisa ser sacrificado. Não há cura, não há salvação, não há solução na terra que a traga de volta!

Olhei-os com nojo!

— Não! Ninguém há de encostar um dedo na minha esposa enquanto eu estiver vivo!

Minha decisão irrevogável, como sabia, provocou o ódio do grupo empedernido em dar cabo da única coisa de valor para mim no plano terreno! Eles voltaram-se a arremeter esforços no sentido de forçar a entrada e já não precisavam de muito para invadir a minha casa.

Voltei para Elisa, decidido, já sabendo o que iria fazer. Não me dei o menor trabalho de refletir sobre os meus atos porque já o fizera antes, nas incontáveis horas em que estive preso aquele quarto com ela. Fui até à janela, lancei um olhar já saudoso à pequena cidade que voltava a sua normalidade, despi-me, e num movimento rápido me joguei de costas na cama.

— Venha querida! – Mal cheguei a terminar o convite e ela me atacou esfomeada.

Num pulo Elisa se aproximou violenta, uma das mãos me foi ao rosto forçando minha cabeça para o fundo do colchão, a outra apertou uma de minhas pernas no intento de imobilizar-me e, sem a menor indecisão, sem o menor remorso, enterrou as mandíbulas animalescas em minha barriga. Se pensam vocês, meus amigos, a quem envio este relato psicografado após minha recente morte, que me arrependi ao sentir as primeiras mordidas. Não! A dor foi terrível, a dor foi indescritível porque não queiram sequer imaginar o que é ser devorado vivo. O sofrimento daí decorrente é algo que eu não desejaria nem para o meu pior inimigo.

Mas... no momento derradeiro, no estertor da morte, em meio aquela agonia onde a percepção das coisas se confundem e nos enganam pude ser agraciado na constatação de um fato que atormenta o imaginário das pessoas. Sempre me disseram que no momento final, onde o moribundo entrega-se a conformidade de seu destino, mesmo aquele que sofre da dor atroz e dos delírios febris da doença mais torturante, um instante de lucidez lhe é dado como recompensa para despedir-se do mundo terreno. E assim o foi comigo!

Elisa devorava minhas entranhas, mastigava minha carne, quando o movimento parou de súbito. Meu corpo, torturado pela dor violenta, num repente, adormecera anestesiado e senti uma trégua no sofrimento. E a vi pela última vez. Sim, senhores, eu a vi. Ela apareceu lentamente no foco de minha visão. A fisionomia retorcida pela virulência da doença ainda lhe cobria o rosto pelo qual um dia me apaixonara. O meu sangue impregnado nela, respingava do nariz, dos longos cabelos, da boca cheia onde escorria a baba do que estivesse a mastigar e no conjunto estarrecedor do que se apresentou a mim consegui extrair a “vida” nos seus olhos, que insubordinaram-se sob o esbranquiçado medonho de seus globos oculares. Foi através deles, dos olhos, que a alma de minha adorada esposa queria dizer-me o que, apesar de eu fingir não dar importância, sempre quis ouvir: “Eu te amo”.

Aquele instante mágico, efêmero, não passou mais do que três ou quatro segundos porque em seguida ela enterrou o rosto novamente em minhas entranhas e continuou a me devorar! No entanto, afirmo sem medo de me julgarem louco: Todo o sofrimento valeu à pena, valeu sim! Sou sabedor de que causei traumas psicológicos, noites insones e a perda da fé no divino em muitas das pessoas que invadiram nosso quarto àquela noite. Não lhes peço desculpas, de modo algum, tampouco ei de perdoá-los!

Quero que eles, malditos sejam, fiquem a ruminar pensamentos, a vida inteira se preciso for, para entenderem o sorriso que perpassava minha fisionomia enquanto minha adorada Elisa saciava a sua fome!

8.4.09

A vinda dele

De expectativas e antecipações.
Por Maria Helena Bandeira



O vento aumentou e as partículas de areia começaram a voar, desarrumando as dunas.
Ele olhou para o céu.
As estrelas brilhavam fortemente esta noite.
Seria Aquela?...
Ela não parecia perceber nada diferente. Estava deitada, as costas apoiadas na pedra - sua pedra - e resmungava baixo.
O zumbido do vento se acalmou e ele mudou de posição. Sentia os membros dormentes. Rolou um pouco de um lado para o outro, mexeu-se como numa dança ritual.
No exato momento em que se virou para Oeste, uma estrela riscou o céu e veio crescendo em direção aos dois.
Ela também percebeu e se levantou com um pulo.
Seu coração começou a bater forte, o sangue correndo nas veias, latejando, pulsando...
Será Ele?!...
A emoção percorrendo o corpo
Será esta noite?!...
Será agora?!...
Um estrondo cortou sua respiração.
“Foi em B12.”
Sussurrou
“Eu sei.”
Correram na direção do som.


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Chupou o último osso e jogou no fogo.
A fumaça se levantou, trazendo o cheiro adocicado de matéria biológica queimada. Não gostava da fumaça desses detritos. Preferia a dos resíduos da nave, o cheiro acre e forte, não este fedor enjoativa.
Lambeu os dedos e olhou para ela que também acabara de comer:
“Como soube que não era ele?”
“Usava macacão prateado” respondeu secamente.
“Seria razão suficiente?” pensou, sem coragem de responder. Ela era mais esperta. Saberia reconhecer os sinais quando Ele chegasse... começou a ficar sonolento... já esperava há tanto tempo que nem conseguia mais distinguir as épocas. Milhares de vezes a Grande Estrela cruzara o céu e se escondera no horizonte. O vento fizera e desfizera dunas... a erosão comera as rochas... sentiu as pálpebras pesadas... o ventre estava retesado como um tambor.
Há muito tempo não comia tanto.
Ia dormir umas duas luas pequenas. (Uma vez comera cinco não-Eles e dormira uma lua média).
Mas isso era raro.
Geralmente eram dois ou três, no máximo. Ele viria sozinho. Ou não?... E se Ele chegasse enquanto dormiam?...e se ela não pudesse reconhecer seus sinais?... não!... tinha tanta certeza... ela saberia.
Podia sentir seus pensamentos
“Idiota! Se não fosse por mim não teríamos alimento... sempre com medo de se enganar!... e nem seria possível saber com certeza quando Ele chegasse...”
“Se chegar...” pensou malignamente, mas afastou rapidamente essa idéia. Seria cruel demais...
Percebeu que ela se esgueirava furtivamente para a toca, os movimentos lentos, o ventre pesado se arrastando na areia.
Olhou a vastidão prateada iluminada pelos crescentes.
O vento pareceu mais frio e também rastejou para a toca.


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Muitos sóis já haviam percorrido o arco do céu desde que tiveram a última refeição.
Apesar de tudo, esperavam.
“Ele virá!... Eu sei. Eu sinto.” Os pensamentos dela eram como bolhas batendo nos seus sentidos entorpecidos.
“Ele virá.”
Repetia para si mesmo, mas estava difícil de acreditar.
Não sei de onde ela tira tanta convicção. Tem fé. Talvez eu tenha perdido a minha.
As estrelas parecem pálidas no espaço... o vento aumentou a intensidade. A barriga doía de fome e não conseguia dormir...
Ela permanecia sentada na sua pedra, as costas eretas. Vigilante...
Acordou com o silêncio.
O vento cessara. O ar parado pesava toneladas.
Tentou se levantar para respirar melhor. Sentia-se entorpecido, a boca amarga, a visão turva.
Percebeu que ela continuava na mesma posição.
Estaria dormindo? Ou morrera? Não tinha importância.
Deu dois passos para a frente e parou com todos os sentidos eriçados. Ela dera um grito feroz. Um som real, não o eco dos seus pensamentos, mas ondas sonoras que se quebraram no areal deserto com uma intensidade rascante.
Correu na sua direção:
“Chegou a hora! Ele está vindo para nós”
Chorava e ria como se estivesse possuída, apertando os olhos e sacudindo o corpo. Seus membros se agitavam em espasmos e ele mal conseguia contê-los dentro da carapaça para que pudesse abraçá-la. As unhas feriram seu rosto e sentiu o sangue escorrer pelas fendas da pele.
Pensou que enlouquecera por causa da fome, mas ela repetia “Eu sei... Ele está aqui!... Ele veio!... Ele chegou!... Finalmente!...”
Olhou para o alto.
O céu continuava límpido e o ar parado.
“Não há nenhum sinal... nenhuma luz... nenhum ruído... nada! Você está cansada... está delirando.”
“Não, Não!...”
Ela se debateu de encontro a ele, a rocha arrancou pequenas escamas de sua pele nas partes desprotegidas
“Eu sei! Seu idiota, seu grande imbecil!... Eu sei... ele está vindo para nós.”
Livrou-se dele e caiu de joelhos.
Nesse momento algo escureceu o céu.
Começou aos poucos, vindo do horizonte pelo areal prateado até onde eles estavam.
Como a sombra de um enorme pé.
O som de um atabaque ensurdecedor marcava o ritmo das passadas
TAM! TAM! TAM!
Sentiu o coração baquear e caiu, também, de joelhos.
“Ele veio, afinal!... Aleluia!...”
Sua alma cantava de alegria e alívio.
Ficaram ali, abraçados, enquanto o som se tornava cada vez mais forte até que a sombra, enfim, os atingiu em cheio.
Mal sentiram a mão que os tomou num golpe rápido e os dentes triturando seus cascos, separando o recheio com a ajuda da língua, engolindo os membros delicadamente. Ele ainda viu que ela agitava debilmente uma antena antes de desaparecer na goela rosada.
Foi a última coisa que viu com seus olhos.

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Sentou-se no areal deserto e finalmente acendeu o fogo para queimar o lixo da refeição.
Tivera sorte de arranjar o que comer.
Por um momento ficou na dúvida se um dos dois não seria Ele... mas percebeu que não pelas carapaças.
Havia sempre um sinal.
O vento recomeçara forte e estava difícil manter a fogueira acesa. Partículas de areia voavam em todas as direções junto com as cinzas. Espreguiçou as pernas e recostou-se para esperar. Sabia que Ele viria. Sentia isso mais do que qualquer coisa em sua vida.
Um dia. Ele ia chegar.
Talvez fosse uma longa espera.
Talvez não.

1.4.09

Terrorismo nos Contos Fantásticos

Recebi o convite para publicar alguns dos textos deste blog em um novo endereço, o do site dedicado a material de terror, ficção científica e insólitos em geral Contos Fantásticos. A constribuição escolhida pelo editor Afonso Luiz Pereira foi de não-ficção, meu artigo sobre alienígenas antropomórficos do cinema e da televisão que pode ser lido aqui.

Pereira aproveitou as ilustrações que fiz para o texto e acrescentou algumas novas. Agradeço a ele e aproveito a oportunidade para estender o convite que ele faz aos frequentadores deste blog: ele aceita mais contribuições da área de FC. Basta entrar em contato pelo email



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