1.10.09

O Certo e o Necessário

Lições práticas da ética dos vampiros
Por Martha Argel

– Anjo vingador, Clara? Eu? Qualé, menina, que que você andou bebendo?! – Lucila me olhou rapidamente, riu e então engatou a primeira para andar uns poucos metros de Avenida Brasil antes de parar outra vez – Eu sou uma vampira, lembra?

Lá adiante o semáforo fechou de novo sem que nenhum carro tivesse conseguido cruzar a Nove de Julho. Congestionamento de começo de noite. O problema de combinar uma ida ao teatro (“A peça terá início pontualmente às 19:00. Não será permitida a entrada de retardatários”) com sua amiga morta-viva é que você não pode sair antes da hora do rush, a menos que queira como acompanhante um montinho de cinzas.

– Ser vampiro não impede que você tenha um senso de justiça. Você não mata inocentes, Lucila. Nós nos conhecemos há quanto? Meio ano? Nunca vi você matando e nem atacando quem não merecesse.

– E na tua opinião tem quem mereça ser morto, Clarinha? Puxa, você mudou ultimamente, tô impressionada. Agora é a favor da pena de morte.

Uma onda de irritação me invadiu e senti o sangue subir à cabeça.

– Você sabe o que eu quero dizer. Não distorça as minhas palavras.

Ela riu de novo.

– Tá. Então você acha que eu só mato quem merece ser punido, quem faz mal ao próximo, e que isso prova minha retidão de caráter. Minha postura de paladina da justiça, defensora da humanidade.

– Aparando um pouco as bordas do exagero, sim.

Foi nessa hora que o moleque encostou no carro. Eu sempre insisto com a Lucila pra que ela ande com os vidros fechados. Ela sempre ri e responde que eu não estou entendendo o espírito da coisa. O vidro dela, claro, estava totalmente baixado.

Um braço fino e sujo enfiou um maço de rosas feias pela janela. Ao mesmo tempo, um caco de vidro tocou o pescoço da vampira.

– Aí, tia, passa a grana e tu sai na boa, certo? – chapado, olhos de quem tá pra lá de Bagdá.

Cacete, que susto. Abafei um grito de medo. Mas Lucila foi rápida.

- Não grita e não reage!

A Voz vampírica. É claro que ele não ia gritar e nem reagir.

A vampira segurou o braço e com delicadeza tirou o buquê de rosas de entre os dedos magros, entregando-o a mim. E então mordeu o pulso do moleque enterrando fundo as presas que de repente tinham se alongado, ameaçadoras, ferais. Seus olhos se fecharam em êxtase e vi, pelo movimento da garganta, que golfada após golfada de sangue iam sendo engolidas. Minutos escoaram. Por fim os dentes se afastaram da carne.

Dá o fora. Esquece o que aconteceu. E nunca mais assalta ninguém.

O moleque sumiu. A vampira se recostou contra o banco e sorriu de satisfação.

– Bonitas flores – disse ela. – Um presente meu pra você. Que tal retribuir me oferecendo teu pescoço?

– Tá vendo o que eu digo? – perguntei eu, ignorando a brincadeira besta.

– Não tô vendo nada. O que você quer dizer?

– Seu senso de justiça.

– Que senso de justiça?

– A aulinha de moral, Lucila. Tua ordem pra ele nunca mais assaltar ninguém. Comovente. Uma contribuição vampírica pras campanhas sociais contra a violência.

Os olhos dela faiscaram em minha direção.

– Esse moleque tá sempre por aqui, Clara. Você passa sempre por aqui, de carro, sozinha. Eu ia odiar que ele te machucasse. Aí sim você ia ver o que que é senso de justiça.

– Você não me convence. Além disso, você se controlou, não pensa que eu não percebi. Podia ter tomado mais e não tomou. Parou antes de fazer algum mal pra ele.

– No meio da rua, menina? Em público? Seria arriscar demais por muito pouco.

– Nem vem, eu te conheço. Você podia continuar chupando até ele quase perder os sentidos. Então ele ia se afastar cambaleando. Nada errado, só mais um moleque drogado. Ia desabar em algum canto por aí e pronto. Morresse ou não, ninguém nunca ia desconfiar de nada.

Ela deu de ombros.

– Não complica, Clara. Parei porque estava a fim de parar.

– Não, acho que não foi por isso.

– E por que foi, então, dona sabichona?

– Porque você achou que ele não merecia. Pelo seu senso de justiça, ele não merecia morrer.

Ela me olhou de um jeito esquisito. Eu não gostei. Ela desviou os olhos para fora, para a massa de carros imóveis e impacientes. Uma menina se aproximava, vendendo chocolates. Lucila a chamou. Ela veio. Lucila pediu que chegasse ainda mais perto. Ela chegou. Se debruçou na janela. Lucila lhe disse ao ouvido algo que não ouvi. Ela se endireitou e se afastou em direção ao canteiro central. Parecia em transe.

Eu estava gostando cada vez menos daquilo.

– Lucila... – comecei, um pressentimento ruim me invadindo.

– Fica olhando, Clarinha.

O semáforo abriu. No sentido oposto, os primeiros carros avançaram pela avenida vazia. Um Palio amarelo arrancou apressado, como se defendesse a pole position. Não teve tempo de desviar quando a menina dos chocolates se jogou na frente dele.

– Lucila! – gritei horrorizada.

A vampira acelerou junto com o trânsito que finalmente se movia e a cena do acidente que não tinha sido acidente e sim crime premeditado ficou para trás. Mas ela se repetia e repetia em minha mente, em minhas retinas.

Eu estava chocada, sem ação, incapaz de entender o gesto tão cruel quanto gratuito.

– Ela merecia, Clarinha? – perguntou a vampira Lucila, com voz suave.

– Você não precisava fazer aquilo! – gritando, quase histérica.

– Como não precisava? Não foi eficiente pra provar que você estava completamente enganada?

– Pelo amor de Deus, Lucila! Aquela menina não fez mal nenhum pra ninguém!

– E...?

Engoli em seco e calei a boca. Ia ter de reavaliar minhas teorias. Culpa delas que uma pessoa inocente tivesse sido ferida, talvez até estivesse morta. Culpa de minha ingenuidade. Culpa minha. Me senti uma assassina.

O resto da noite foi uma merda.

Mas só pra mim.

Lucila se divertiu horrores com a peça.

São Paulo, 23 de setembro de 2003
(menos de uma hora depois do início da primavera)

10 comentários:

conde cast disse...

...rs... Adorei esse teu conto vampírico que aborda fundamentos éticos sobre o que é certo e o que é necessário, querida Martha. Num conto de fácil digestão, você conseguiu comprimir esses dois preceitos dentro de um embolo e o reslutado foi uma leitura deliciosa e, ao mesmo tempo, "cabeça". Na minha modesta opinião, Lucila teria mesa farta num lugar como Brasília, e muitas histórias prá contar, não é mesmo?
Um supper abraço e um super beijo do sempre
amigOsmar

Romeu Martins disse...

Ela teria mesa farta em Brasília de um modo ou de outro ;-)

Pedro Moreno disse...

Muito bom! Adicionei aos meus favoritos!

Carlos Relva disse...

Eita! Não esperava esse final! Como ela consegue ser amiga dessa vampira? :P Muito bom o conto, parabéns, Martha Argel!

Alessandro Melo disse...

Muito legal esse conto.
Tô esperando por mais... hehehe.

Romeu Martins disse...

Opa, muito legal figurar nos favoritos de outras pessoas. Valeu, Pedro!

E grato a todos os comentaristas.

Martha Argel disse...

Osmar, Pedro, Carlos e Alessandro, muito obrigada pela visita e pelos comentários. Que bom que gostaram de meu conto e do blog! Tem outro conto meu aqui no Terroristas, chamado "A cura para o tédio", também com a vampira Lucila (que quando está longe da Clarinha não precisa se controlar muito, não...).
Em breve deve sair mais uma aventura dela, ainda mais impiedosa, e dessa vez nas livrarias.
Obrigada, Romeu, por disponibilizar este espaço para minha ficção!
Beijos a todos.

Romeu Martins disse...

O espaço está sempre aberto e o prazer é todo meu, Martha!

Beijos

. disse...

Parabéns Martha... simplesmente parabéns por sua criatividade...
Bloody Kisses

Bondgirlpatthy 007 disse...

Minha amiga Marthinha é genial. Adorei o conto. Como sempre escrevendo c/ qualidade e elegância . Parabéns querida, e saudades de vc.

Ibope