Não é a TV que emburrece as pessoas. São as pessoas que assistem a TV para ficarem burras. Mas não é só a TV: cinema, livros, músicas, peças de teatro, videogames, praticamente toda a indústria de entretenimento é construída para suprir essa que talvez seja a grande necessidade humana: não saber nada, não aprender nada, apenas ficar burro por alguns momentos. Saber demais deixa qualquer um infeliz.
Posso falar com traquilidade disso. Sou jornalista, já trabalhei em grandes jornais e emissoras de TV. Se fosse contar o que já vi nos bastidores, ninguém mais acreditaria em nada do que lê ou vê. Mas vou me limitar a relatar apenas uma história, talvez a grande história que nunca poderá ser contada.
Era época de eleições. O veículo que me empregava apoiava um candidato, mas se declarava neutro. A montagem do jornal, os textos em si, eram todos realizados deliberadamente para causar boa impressão de alguns candidatos e má impressão de outros. Muitos conseguem perceber isso, e saem aos quatros ventos clamando por ter descoberto a pólvora. Tolos, se ao menos suspeitassem da verdade.
Muito bem, estava eu na redação quando o Editor-chefe me chama. Desculpe-me se não revelo nomes, mas é para a proteção dos envolvidos.
- Olá, Narrador!
- Tudo bom, Chefe? O que manda?
- Tá vendo essa matéria aqui? Gostaria que você a assinasse.
Dei uma lida rápida, e percebi que era algo que poderia influenciar na eleição. Ela afirmava que um candidato que começava a subir nas pesquisas havia utilizado, quando deputado federal, verba do gabinete para viajar ao exterior com a amante. O detalhe é que a esposa era uma atriz querida do público em geral. A polêmica gerada seria realmente grande. Notei que nos papéis utilizados havia uma marca d’água no cabeçalho com as letras TC.
- Isso é um furo de reportagem? Por que não quer assinar?
- Não fui eu quem escreveu isso. Só estou te repassando. Vai querer ou não?
- Me deixe ao menos checar algumas dessas informações. Não vou entrar no escuro nessa não.
E lá fui eu fazer o dever de casa. Comecei por determinar se houve mesmo viagem, em que data, etc. E assim passei a manhã inteira. Chegou a hora do almoço, desci do prédio e fui em direção ao restaurante em que usualmente comia. Foi quando dois homens vestidos de preto, usando óculos escuros, me abordaram na rua. Um era grande e forte, o outro mais baixo e careca.
- Senhor Narrador, por favor nos acompanhe. – Não me deram tempo de responder. Agarraram meu braço e me levaram para um outro restaurante, luxuoso, daqueles que só a bebida custa cinco vezes o que gasto numa refeição.
- Assine a matéria, Narrador. Não irá se arrepender – disse o Careca.
- Quem são vocês, afinal?
- Somos os autores do seu grande furo!
- Isso não me responde nada.
- É a resposta que terá!
- É melhor escutá-lo! –o grandão deu um sorriso para mim com cara de quem tava doido para que eu falasse algo de errado.
- Você ainda é novo, tem muito o que aprender- retomou o Careca – assine a matéria e coisas boas acontecerão.
Eles pagaram a conta e foram embora, me deixando sozinho. Quando voltei para a redação, voltei a conferir os dados. O impressionante é que realmente tudo batia. Acabei escrevendo eu mesmo a reportagem, e ficou muito melhor que o original.
O resultado foi o previsto: o candidato teve que se explicar, a esposa ficou com fama de chifruda, o que não agradou o povão. Eliminada as chances de segundo turno para ele.
Passada as eleições, fui contratado por uma emissora de TV, ganhando um salário muito maior. Os dois homens de preto passaram a ser minhas fontes, em toda crise política me passavam informações quentes.
Estourou então mais uma crise do Senado – o presidente estava sendo acusado de corrupção (como quase todos, por isso não vou dizer quem era – minha única dica é que o dessa vez usa bigode). Era um político velha guarda, raposa que tomava conta do galinheiro por anos e anos. A imprensa tentava de todas as formas encontrar algo para derrubá-lo, pseudocelebridades fizeram “campanha” contra ele visando a moralização da política. A baboseira se sempre. Foi quando os homens de preto me procuraram mais uma vez.
O grandão havia engordado bastante, e o Careca tava com uma cara já de bem acabado. Mas os anos pareciam ter sido generosos com eles, apesar de tudo.
- Narrador, neste dossiê temos provas inclusive que o Senador mandou matar adversários políticos e gente da imprensa. Dessa vez ele não escapa, e você é a pessoa ideal pra revelar isso ao mundo.
- Por que eu, afinal?
- Credibilidade. Você tem boa aparência, fala firme, mas cordata, e já deu vários furos que sempre se confirmaram.
- Ok, mas tem uma coisa que não entendo. Vocês já me cantaram várias bolas que beneficiaram este Senador e quem o apóia. Por que agora querem prejudicá-lo? Queima de arquivo?
Ambos gargalharam com gosto. O Careca então me explicou:
- Não somos bandidinhos ordinários, caro Narrador. Jura que nunca percebeu a nossa jogada?
- Que jogada?
- Tudo parece ter dois lados, certo? Esquerda e direita, certo e errado, éticos e corruptos, patriotas e traidores, brancos e negros, religiosos e ateus. Pois tudo isso não passa de besteira. Serve pra vender jornal, serve pras pessoas criarem identidades próprias e grupos. Serve para cada um se achar o dono absoluto da verdade, e com isso tenham orgulho de sua ignorância.
- Isso tudo me parece cínico demais.
- Mas não é cinismo. É apenas a realidade. E quer saber a verdade, a grande verdade? Tudo isso só existe para uma única coisa: para os meus chefes, que são os chefes dos seus chefes, continuarem sendo os chefes.
- Isso é uma palhaçada, me desculpe. Não passa de uma teoria da conspiração barata.
- Barata não, muito cara!
O diálogo terminou aqui. Fiz a tal matéria, o Senador foi finalmente derrubado. Em pouco tempo tudo voltou ao normal, novos escândalos surgiram e nada realmente mudou.
Publico como anônimo este texto na internet, na esperança de que alguém acredite no que contei. Talvez mais pessoas conheçam os homens de preto, ou tenham ouvido falar de algo ou alguém com as iniciais TC. Pode ser apenas uma pista furada, não sei. Talvez o Careca apenas quisesse me impressionar, mas as informações dele eram sempre confiáveis. Ou tudo pode não passar de mais uma armação, e publicar este texto só ajuda nos planos deles. Realmente não sei , que caiba a cada um ler e julgar por si mesmo.