22.6.08

Another day

Uma smartmob borgeana por Horacio Corral

O letreiro do ônibus dizia West Plaza entre os diferentes destinos que as pequenas luzes laranjas anunciava continuamente. Subi. Meu bilhete único sussurrou deixa ele passar para a máquina que sempre vem anexada com um cobrador. Sentei em um dos assentos próximos à porta do fundo porque são mais espaçosos. Me deixei absorver por um jogo no celular durante a viagem, curta, diária, conhecida, chata. Uma vez ou outra eu fazia o trajeto lendo ou prestando atenção em outra coisa que não fosse a degradada paisagem urbana. Olhar as pessoas passando na rua faz minha mente divagar sobre como devem ser suas vidas, e apesar de que eu aprecio o ato de imaginar e criar uma boa história, a fauna urbana dos horários que transito não me oferece histórias dignas de serem imaginadas sem retoques inverossímeis. Sendo assim prefiro submergir em outros mundos a permanecer boiando neste sem algo interessante para fazer.

Uma garota e sua amiga conversavam animadas logo à minha frente. Eu já estava de pé e indo para a porta, pronto para descer no próximo ponto. Elas que até pouco tempo atrás estavam em um par de assentos logo depois da catraca, tinham decidido ficar paradas na porta dos fundos conversando. Calculei que iriam descer no Shopping West Plaza, mas nunca dá para saber este tipo de coisas. O meu ponto era o imediatamente anterior ao que supunha ser o delas. Com certa indignação percebi que elas não iriam descer no meu ponto, e que tinham estabelecido que a porta e o território que a rodeia – normalmente, um par de degraus – seria o pequeno reino no qual poderiam conversar sem serem perturbadas. Para tristeza deste reino eu teria de invadi-lo.

E neste exato momento me encontrava na fronteira – pouco atrás de uma delas. Decidido a descer em um futuro próximo, quase imediato. Uma tinha cabelo castanho, curto, e a outra era loira, ou pelo menos é isso que devemos dizer ao ver os pêlos da cabeça pintada daquele jeito desleixado. Ao me aproximar comecei a escutar a conversa. Escutar - não ouvir. Não gosto de ouvir a conversa dos outros. Parece que a loira era quem falava - rapidamente, mas sem perder a típica entoação feminina de contar um babado. Eu queria descer do ônibus. Estava ficando impaciente. A menina de cabelo curto ouvia atentamente com os olhos brilhando e a boca entreaberta ensaiando uma risada ou um sorriso em um momento ou outro, acompanhando a história da amiga. O ponto estava mais perto, e eu me aproximei delas. Estava tão próximo que já “ouvia” a conversa delas, com um certo desgosto, devo dizer. Não vou reproduzir aqui a conversa porque eu faço questão de omitir da minha memória qualquer tipo de conversa sobre ficantes e beijinhos em não sei quem e sobre como tal cara estava lindo naquela festa, mas que não queria namorar ele, entre outras coisas do gênero. Eu precisava descer do ônibus, e elas permaneciam na frente da porta bloqueando minha passagem como uma muralha que está ali, mas ignora o bárbaro pronto para atacá-la ferozmente. A conversa que eu continuava a ouvir parecia ter ficado mais animada, e meu humor caminhava na direção oposta ao da conversa, se transformando em algo cada vez mais escuro e sombrio.

Odeio gente que fica parada na porta do ônibus, e que não vai descer no próximo ponto. Sempre me pergunto, será que as pessoas percebem o quão inoportunas são? Ou nem mesmo suspeitam que são um obstáculo irritante entre o passageiro e seu destino? Eu acredito que existam pessoas que sabem que isto deixa muita gente chateada, e que se aproveitam deste fato de maneira lúdica e perversa. Não sei qual vantagem, prêmio ou glória poderia se alcançar nesta atividade.

Devo dizer, às custas da minha humildade, que sempre fui perspicaz para certas coisas, sou o cara chato que antes do final do livro já sabe quem é o assassino, porque percebeu como ele fez um gesto ou deixou cair uma coisa que depois acaba sendo importante. Bom, acho que captaram a idéia. Intui de alguma maneira que elas não estavam ali porque pretendiam descer no Shopping, nem depois, nem em qualquer outro lugar. Nesse momento, lembrei que elas tinham levantado logo depois do túnel e que no momento que paramos no ponto da Universidade Uninove elas já estavam ali conversando. É estranho que se fossem descer no Shopping elas tivessem levantado tão cedo, aquilo era estranho, mas eu poderia estar errado nas minhas deduções. Então, lembrei que eu não era o primeiro a estar naquela situação, vários estudantes tinham espreitado as duas amigas e se incomodado, como qualquer pessoa normal, com o obstáculo entre eles e a porta. Acredito que uma velha até resmungou alguma coisa, mas eu não estava prestando muita atenção.

Chegamos ao ponto.

E por um motivo que somente agora consigo explicar, decidi não descer. Neste momento, o leitor fica chateado comigo, porque pensou que eu iria brigar com elas, pelo menos faria um comentário, indignado, antes de tentar descer ou talvez pedisse licença dando uma ênfase sarcástica à palavra.

No entanto, ele vai me agradecer no final, e reconhecerá que se meus motivos não são exatamente nobres pelo menos são interessantes.

Não desci. Simplesmente, fiquei ali de pé. Do lado delas, não fingi que queria ouvir aquela conversa que mantinham nem nada parecido, apenas me acomodei atrás de uma delas. Fiquei ali. E as pessoas que queriam descer ficavam visivelmente irritadas com a gente. Incluo-me entre elas, pois estava de uma maneira ou outra bloqueando a porta também.

Os pontos foram passando, uma vez ou outra elas olhavam para mim como querendo ter certeza de alguma coisa. Eu fingi não perceber que me olhavam e continuei ali de pé. Era cansativo, as pernas doíam, mas eu sentia que havia algo a mais naquela tarefa, parecia haver um propósito.

Eu só não sabia qual.

Ponto final. Terminal.O cobrador anunciou que o ônibus ia para a garagem. Sem outra opção elas desceram. Eu fiz o mesmo e comecei a segui-las, mas mantendo a alguns metros de distância. Saímos do terminal. Uns dois quarteirões depois, elas pararam. Viraram-se e vieram na minha direção sem nenhuma cerimônia. Pareciam diferentes, seus rostos eram mais sérios, menos jocosos. A mesma conversa que ouvi antes no ônibus quando estava próximo a elas não combinava com aquelas duas meninas que se aproximavam. Não tive medo, mas senti um frio na barriga. Não eram as mesmas do ônibus, isso ficava mais claro a cada passo. Pensei em fugir, pensei duas vezes, e depois pensei, “Por que estou pensando em fugir delas?”, aquelas duas pessoas me amedrontavam de uma maneira que eu não compreendia.

Então, faltando alguns passos, elas pararam, e a loira perguntou:

- Por que ficou bloqueando a porta do ônibus atrás da gente? Por que você está nos seguindo? - perguntou ela com uma voz cortante e séria

Eu pensei em inventar alguma desculpa, mas não era por isso que eu tinha ficado na porta, eu sentia que havia algum segredo, havia algum porquê, algo a mais. Então, fui sincero.

- Eu percebi que vocês estavam bloqueando a porta desde o ponto da faculdade, e continuaram fazendo isso. Fizeram isso nos principais pontos – disse de uma vez só, argumentando.

- Onde descem mais pessoas – conclui

- A principio pensei que vocês não ligavam para as pessoas e apenas gostavam de ficar conversando perto da porta, mas depois percebi que não era isso. Eu as segui porque quero entender o que vocês estavam fazendo – finalizei em um tom tão sério quanto o dela.

Senti um grande alívio ao responder, e perceber que não me achavam louco. Que algo do que eu tinha dito fazia sentido. Elas se entreolharam. Murmuraram algo uma no ouvido da outra, como se conversassem normalmente, mas essa conversa não poderia ouvir. Assim fizeram até que a de cabelo castanho virou para mim, devagar, como sabendo muito bem o que iria dizer.

- Você é um bom observador – disse ela como se divertindo.

- É raro, alguém perceber. Normalmente… – quando foi interrompida

- As pessoas estão preocupadas demais ou com pressa demais para perceber – completou a loira com certa raiva

A garota de cabelo castanho olhou para a amiga que se acalmou e continuou.

- Não ficamos ali apenas por capricho, como você percebeu.

- Cumprimos uma tarefa que pode parecer loucura, mas que funciona e é importante.

- Em muitos ônibus, trens e metrôs há gente como eu e ela. Fazendo a mesma coisa. Somos muitos, mais do que você imagina. Não sei dizer quantos. O número aumenta todos os dias - contou ela, satisfeita.

- Mas por quê? Por que fazem isso? Você disse que muitas pessoas fazem isso? Não entendo – disse com sinceridade, aguardando ansioso a resposta.

- Você é feliz? Acha que está tudo bem com o mundo? – perguntou sarcástica

- A injustiça reina no mundo. Os ricos ficam mais ricos, os pobres ficam mais pobres, os políticos querendo ou não acabam reforçando esse circulo vicioso. As grandes empresas são cada vez mais poderosas, impiedosas, maiores… – disse ela com energia e desgosto, como cuspindo algo nojento.

Eu concordava com ela. Não sentia o mesmo nojo, mas como todos evitava pensar nisso porque sabia que não podia fazer nada, porque assim é o sistema. O que podemos fazer contra empresas cuja receita está nos bilhões e são amparadas pela lei, pelo governo, pelas pessoas, pelo sistema.

A loira falou calmamente:

- Alguém, não se sabe quem, começou com isso… Começou a ficar parado na frente das portas. Nos ônibus, nos metrôs, nos trens, em todo lugar que houvesse muitas pessoas. Sempre em horários de pico, sempre em lugares chave, com um objetivo… Quebrar o sistema.

- Mas como você vai quebrar o sistema fazendo só isso? Desculpa, mas parece um pouco idiota achar que você vai quebrar o sistema dessa maneira – disse com um certo medo de ofendê-la.

- Você observa, mas não entende nem escuta, né? – disse a loira com sarcasmo

- Há muitas pessoas fazendo isso. Mais pessoas do que imaginamos, talvez não só aqui, mas em outros países também. Não somos só duas – observou a garota de cabelo curto.

Eu comecei a entender. Se houvesse mil pessoas fazendo isto, todos os dias. No metrô da Sé, em Barra Funda, no Terminal Bandeira, etc. Isto poderia realmente fazer alguma diferença. A quanto tempo isto era feito. Por quantas pessoas. Não havia como saber. Não há como prendê-las, não se pode prender alguém por estar próximo à porta, não é um crime.

- Se para cada cinco pessoas que estão com pressa de chegar no trabalho, você irritar uma ou fizer com ela se atrase, em pouco tempo terá demissões, brigas, discussões, caos. Estamos corroendo o sistema aos poucos – disse, confirmando o que eu pensava.

- Se a cada dia uma pessoa, ou melhor milhares de pessoas, fazem o mesmo que nos fazemos, maior será o caos. Chegará um dia em que o estresse e o caos vão afetar de tal jeito as nossas vidas que não haverá outra opção além de mudar? - concluiu.

- Vocês sabem quantos fazem isso? Vocês se reúnem? Têm algum líder? – perguntei maravilhado pelo plano.

- Não sabemos, não e não – disse a de cabelo castanho tranqüilamente.

- Apenas temos duas regras. Nada de líder. Nada de reuniões – afirmou inflexível.

- Se você faz isso, o faz porque acredita que o mundo está errado. Que este sistema é injusto. E só. Não requer nada além disso.

- Você fará isso. Eu sei. Você é infeliz e agora que sabe que a muitos fazendo a mesma coisa, vai fazê-lo pra você e para todos – ao dizer “todos” ela sorriu, deu meia-volta e foi embora com a amiga.

Ela terminou de falar. E eu fiquei ali. Quieto, pensando. Seria verdade. Como era possível que existisse algo assim. Foi então que percebi. Não eram amigas. Provavelmente não se conheciam. Lembrei que as duas subiram no mesmo lugar e só começaram a falar quando chegaram na porta.

Elas estavam lá cumprindo com aquele propósito maior e estranho.

Não é possível. Não podia ser verdade.

Passei a manhã inteira pensando nisso, fazendo cálculos sobre pessoas e a quantidade de caos elas poderiam gerar através do simples ato de ficar perto da porta e atrapalhar uma ou outra pessoa.

No outro dia, fui trabalhar, ainda pensando nisso. Decidi pegar o metrô, em parte porque queria confirmar o que me foi revelado por aquelas desconhecidas. No começo, pareceu tudo normal, ninguém próximo à porta.

Foi então que eu o vi. Um homem, velho, bloqueando a porta. Levantei e fui até ele. Fiquei do lado dele, ele assentiu com a cabeça e começou a falar comigo sobre o Corinthians e porque ele não gostava do Roger.

14 comentários:

Mayumi disse...

tô gostando muito dessa tchurma!
vamos fazer uma radionovela eletrizante?
hehe

Romeu Martins disse...

Olá, Mayumi

(será que você é a prima de quem estou imaginando?)

adoraria ver o TC em outras mídias...

E bem-vinda à tchurma!

Anônimo disse...

Mayumi, só não pode visitar mais este blog que o meu. O meu não é eletrizante, mas é assertivamente suspirante.

Brincadeira, valeu por ter postado aqui!

Romeu Martins disse...

Ah, então acertei na relação parental...

Não liga pra ela Mayumi, este blog é bem mais legal.

Mayumi disse...

hehehe

cada blog pra um estado de espírito!

então vou começar a pensar numa adaptação pras ondas sonoras...

:)

Romeu Martins disse...

E eu vou escrever um conto radiofônico.

Fernando S. Trevisan disse...

Fantastique, fantastique. :D

Anônimo disse...

Excelente :-)

Romeu Martins disse...

Olha, o Trevisan me achou :)

E obrigado, Barbara, pelo comentário

Fernando S. Trevisan disse...

Romeu,

Tou com um texto quase pronto pro TC. Me empolguei!

[ ]'s

Romeu Martins disse...

Maaaaaaaaassa! será mais que bem-vindo, Trevisa!

Anônimo disse...

Gostei! E pensar que já dei muita cotovelada nesses conspiradores. Mas eles gostaram, mártires que são.
E, num ônibus que passava pelo West Plaza, ponto em que desci, fui terrorista sem querer.

Besos da Ludi.

Romeu Martins disse...

Valeu o comentário, Ludi

Anônimo disse...

ler todo o blog, muito bom

Ibope