Uma transmissão radiofônica por
Romeu Martins
O Âncora: Agora são oito horas e um minuto da noite. Com o fim da “Voz do Brasil”, sua rádio Tribuna Central volta ao plantão de notícias.
Jingle: Têêêêêêêêêê-Cê Ááááááááááá-Emê Vinte e quatro horas com voooocê
O Âncora: E voltamos a informar diretamente do interior do Paraná, onde o laboratório de uma empresa do setor agrícola corre o risco de ser invadido a qualquer momento por uma multidão de trabalhadores rurais sem-terra. Vamos falar com a repórter Helena Gomes, que acompanha tudo no local desde o início da tarde. Helena, você nos ouve? O que pode informar a nossos ouvintes em todo o Brasil?
A Repórter: Ouço bem, Herbert. Estou aqui diante daquela que é considerada a maior estufa do Brasil, usada pela multinacional TransCiência como laboratório para o cultivo de produtos geneticamente modificados. É uma enorme bolha feita de um plástico especial, transparente. Neste momento, aproximadamente cem manifestantes do movimento Trabalhadores Campesinos gritam palavras de ordem e ameaçam invadir as instalações da empresa. Não podemos nos aproximar muito porque este movimento é muito hostil à presença de jornalistas, mas acho que vocês podem ouvir os gritos dessas pessoas pelo meu celular. Um momento, vou ajustar o fone direcional...
Coro: Fora com a comida de laboratório! Não somos cobaias! Fora com a comida de laboratório! Não somos cobaias! Um, dois, três, quatro-cinco-mil, queremos que os transgênicos...
A Repórter: Como vocês podem perceber, o clima por aqui é de guerra desde a manhã de ontem, quando os manifestantes armaram acampamento no terreno em volta da estufa. No meio da tarde, eles deixaram suas barracas improvisadas de lona azul e passaram a cercar o laboratório, impedindo o acesso de funcionários e de pesquisadores. Apesar de muitos dos recursos da empresa terem sido adquiridos através de convênios com a Universidade Federal do Paraná e com a Embrapa, o governador não autorizou o envio de tropas da Polícia Militar para conter a manifestação. No momento, apenas os seguranças da multinacional fazem um cordão de isolamento para tentar impedir a entrada de dezenas de pessoas, homens, mulheres e crianças, muitos armados com enxadas, pás, foices e facões.
O Âncora: Helena, você conseguiu falar com alguém responsável pela empresa?
A Repórter: Sim, neste exato momento estou em contato, por telefone, com o diretor-presidente e cientista-chefe da filial brasileira da TransCiência, Órson Wellmann. Ele está no escritório da empresa, em Curitiba. Senhor Wellmann, o que o senhor tem a dizer sobre a pauta de reivindicações dos Trabalhadores Campesinos?
O Cientista: Minha cara Helena, sou eu quem pergunto: que pauta? Essas pessoas não estão interessadas em negociar, não apresentam nenhuma disposição para o diálogo.
A Repórter: Mas o movimento faz acusações de que sua empresa tem ligações com grupos militares e que faz experiências para a fabricação de armas, não é verdade? O que o senhor pode dizer a respeito?
O Cientista: Essas acusações, como você chama, são ridículas. Onde estão as provas? Isso não passa de calúnia e de especulações, uma vez que somos uma empresa globalizada, com ações negociadas em bolsa e com participação de recursos de vários fundos de investimentos. Mas todas nossas pesquisas são pautadas pela ética e pelo respeito às leis de cada país em que atuamos.
A Repórter: Como o senhor classifica as ações dos manifestantes, então?
O Cientista: Eles usam técnicas terroristas para impedir nosso trabalho e o progresso da ciência. Talvez os seus ouvintes já tenham ouvido falar dos neoluditas, não? Neoluditas são pessoas que, a exemplo do que aconteceu no início da Revolução Industrial, lá na Inglaterra, no século retrasado, temiam o avanço da ciência e da tecnologia. Eles têm medo – na verdade ódio – por tudo o que é novo.
A Repórter: Então, na sua opinião, os Trabalhadores Campesinos são um grupo terrorista e neoludita?
O Cientista: Minha cara Helena, eu chamo essa gente de neolysenkistas. Explico para você e para seus ouvintes qualificados no Brasil inteiro. Trofim Lysenko foi um homem muito importante na antiga União Soviética, na metade dos anos trinta do século passado. Ele dizia não acreditar na genética como era estudada no Ocidente, a considerava uma ciência burguesa que não estava de acordo com o materialismo dialético. Sua influência era tão grande que qualquer referência a cromossomos foi banida dos livros didáticos daquele país, gerando um atraso científico e tecnológico incalculável. Mas muito pior que isso: Lysenko afirmava que a sua genética filosoficamente correta iria garantir mais produção de trigo para os russos no inverno. Sabe o que aconteceu na verdade, minha cara Helena?
A Repórter: Não, nunca ouvi falar nisso...
O Cientista: As teses malucas desse homem levaram fome e miséria a milhões de pessoas nos campos e nas cidades da União Soviética. Destruíram a economia do país e condenaram à morte milhares de pessoas. E é isso o que essas pessoas, esses neolysenkistas, estão querendo reviver agora, em pleno século vinte e um, no Brasil. Ao impedir o trabalho de cientistas genéticos, estão criando dificuldades para que se descubram novos medicamentos, novas fontes de alimentos, novos produtos que podem...
A Repórter: Um momento, senhor Wellmann... Obrigada pela entrevista, mas começou uma movimentação mais intensa aqui. Aparentemente, os manifestantes estão avançando contra o laboratório da empresa neste momento. Sim, eles romperam a barreira dos seguranças e passaram a arrombar as portas da estufa. Com golpes de enxadas e chutes, a multidão forçou a entrada... Conseguiram, os Trabalhadores Campesinos invadem, neste momento, a maior estufa experimental do país. Entre gritos e muita correria, dezenas de homens, mulheres e até crianças pequenas estão destruindo com golpes de foice as plantas transgênicas do local. Quem não está portando alguma ferramenta se encarrega de arrancar com as mãos ou a pisotear as plantações.
O Âncora: Alô, Helena, você está me ouvindo? Havia algum funcionário no interior do laboratório?
A Repórter: Não, Herbert, a estufa estava vazia e mesmo os seguranças da TransCiência, que tentavam proteger a estufa, permanecem do lado de fora. Enquanto isso, mais e mais manifestantes entram no local pelas portas arrombadas. É muito difícil chegar mais perto, mas o ambiente é bastante iluminado e podemos ver a movimentação das pessoas. Elas estão destruindo não apenas as plantas mas todos os equipamentos ali presentes. Computadores são jogados ao chão, mesas reviradas. Posso ver que até enormes galões, provavelmente de fertilizantes ou de outras substâncias químicas, são arremessados contra as paredes. O caos é generalizado e... espere! Algo muito estranho está acontecendo...
O Âncora: Helena? Helena? O que está havendo? O que você pode ver...
A Repórter: Tudo certo, Herbert. Sim, é isso mesmo! Vários dos manifestantes que até há pouco corriam e escavavam a terra pararam de se movimentar. Pouco a pouco, cada vez mais manifestantes deixam de atacar as plantas e os equipamentos. Eles se limitam a ficar parados. É como se, de uma hora para outra, tivessem se esquecido do que estavam fazendo, parecem confusos. Quase todos, neste momento, estão parados, são poucos os que continuam... O que é aquilo? Não é possível! Aquelas pessoas começaram a atacar uma a outra! Um homem acaba de esmagar a cabeça de uma criança com golpes de enxada... É horrível...
O Âncora: Helena como isso é possível? São os seguranças que resolveram invadir o laboratório? O que está acontecendo?
A Repórter: Não, não, são os próprios trabalhadores rurais que estão se matando... Todos eles largaram as plantas e começaram a se atacar... Meu Deus do Céu! É a coisa mais horrível que já vi! Homens retalham uns aos outros e às mulheres e às crianças que os acompanhavam. Quem não levava alguma arma, joga objetos do local contra aquele que está mais próximo. Ou ataca com socos, pontapés e mordidas. Muitos estão no chão, se engalfinhando... Todos, mesmo as crianças pequenas, se atacam... o sangue escorre por todos os lados.
O Âncora: Mas como isso é possível? Alguém chegou perto da estufa?
A Repórter: Ninguém se aproximou do local... desculpe, Herbert, mas é muito complicado descrever o que está acontecendo. O nível de violência é terrível. Mesmo mulheres, que aparentavam ser as mães de algumas daquelas crianças, estão agredindo quem estiver a seu lado indiscriminadamente. Espere... vocês conseguiram ouvir isto, aí no estúdio, Herbert?
O Âncora: Pareceu um ruído de trovão... ou de uma explosão? Alguma granada? A polícia decidiu agir no local?
A Repórter: Difícil dizer, mas foi possível ver um brilho e... sim, uma nuvem de fumaça preta começa a sair do lado da estufa. Podemos ver chamas, o lugar está pegando fogo. É isso mesmo, as chamas se espalham cada vez mais rápido. Atingem as plantas e correm pelo chão, entre aqueles galões que tiveram o conteúdo espalhado... Outra explosão, desta vez bem no meio da estufa! Várias pessoas foram arremessadas no ar... Mas, meu Deus, mesmo assim eles continuam se atacando! Ninguém está tentando fugir pelas portas arrombadas. Aquelas pessoas ainda estão se matando... Mesmo quem está com o corpo coberto pelo fogo parece mais preocupado em matar os colegas que em se proteger! Não é possível! Um homem bastante idoso que teve o braço arrancado e está com a roupa em chamas avançou em direção da porta, mas ao invés de correr para fora, ele pegou um facão caído no chão e voltou para atacar uma mulher pelas costas... Nada disso faz sentido...
O Âncora: Helena, que barulho foi esse? O que aconteceu? Você está bem?
A Repórter: Mais e mais explosões, Herbert... Os galões de fertilizante, por todo lado, explodem... A fumaça negra se espalha e aparentemente é tóxica... Calma, peraí, não empurra! Tô trabalhando... Os seguranças fugiram e estão nos obrigando a nos afastar do local... As luzes elétricas se apagaram, foi o gerador interno da estufa que explodiu agora. Só dá pra enxergar alguma coisa graças ao brilho do fogo. Posso ver que o teto está cedendo... A estrutura de metal que dá sustentação ao teto e às paredes está nitidamente abalada. Acabou de desabar, Santo Deus! O ruído do aço se retorcendo é muito alto. Toneladas de material esmagam aquelas pessoas. Mesmo assim ninguém tenta escapar daquele inferno... Acho que ninguém sobreviveu... Alô, Herbert, não é mais possível ficar aqui. Os seguranças nos empurraram para longe do local, só dá para ver o fogo, cada vez mais alto, e uma enorme coluna de fumaça que encobre a lua e as estrelas...
O Âncora: Alô, Helena? Alô?... Devem ter retirado nossa repórter do local. Vamos tentar refazer o contato. Vocês ouviram, aqui na Tribuna Central AM, o relato de uma invasão que acabou em tragédia, no interior do Paraná. Aproximadamente uma centena pessoas pode ter morrido. Mais detalhes, depois do intervalo, quando continuaremos com nossa reportagem, com o apoio da TalkCel, a única operadora de celular presente em cem por cento do território nacional. É só um minutinho...
Jingle: Têêêêêêêêêê-Cê Ááááááááááá-Emê Vinte e quatro horas com voooocê
O Terrorista: Agora só vai ter enrolação. Já dá para desligar o rádio e abrir o vinho.
O Cientista: Mude de estação. Vou pegar a garrafa. De fato. Parece que tudo ocorreu exatamente como previsto.
O Terrorista: Tinha alguma dúvida, senhor Wellmann? Nós, dos Terroristas da Conspiração, damos cem por cento de garantia em nossos serviços. Dissemos que vocês iriam conseguir, ao mesmo tempo, a experiência com humanos que tanto queriam e toda a publicidade necessária para lançar seu novo produto.
O Cientista: Às vezes, a eficiência de vocês me assusta, senhor Neves.
O Terrorista: E então? A nova arma é tudo aquilo que seus pesquisadores vinham anunciando mesmo.
O Cientista: É verdade, é verdade. Bendita a hora em que li aquele paper da Royal Society sobre os possíveis impactos de um obscuro protozoário no comportamento da sociedade. Em apenas seis páginas, os cientistas londrinos me deram a idéia de usar o Toxoplasma gondii como matéria-prima.
O Terrorista: Ah, foi essa a fonte original do seu insight.
O Cientista: Sim, “Pode o Toxoplasma gondii, parasita comum do cérebro, influenciar a cultura humana?” era o título do documento, em uma tradução livre. A academia de ciências do Reino Unido estava preocupada com as evidências que esse simples parasita podia afetar o cérebro das pessoas e induzir novos comportamentos. O protozoário se mostrou capaz de atravessar a membrana de nossas células de autodefesa, invadir o núcleo e simplemente enganar todas as barreiras imunológicas do cérebro humano. Um verdadeiro fenômeno da natureza. Em um segundo documento, apresentado durante um encontro anual da Sociedade Internacional de Neurociência do Comportamento, disseram que o microorganismo havia desvendado “o vocabulário dos neurotrasmissores e hormônios”.
O Terrorista: Em suma, estamos falando de um bichinho muito esperto.
O Cientista: Realmente... sua taça, senhor Neves. Vou abrir a garrafa, se conseguir encontrar o saca-rolhas. A lista de alterações comportamentais que o pequeno invasor é capaz de provocar varia entre os sexos. Torna as mulheres mais afetivas e os homens mais conformistas. Parecia capaz de deixar as pessoas mais afeitas a sentimentos de culpa. Por um lado mais predispostas a se envolver em situações de perigo, por outro, avessas à mudanças.
O Terrorista: Uma mudança e tanto na química cerebral, com certeza. Compraria um lote desse parasita se ele coseguisse tornar minha última sogra uma mulher mais afetiva...
O Cientista: Sim, e no mundo inteiro são bilhões de pessoas infectadas. Um detalhe que me chamou a atenção é que o país mais atingindo seria justamente o Brasil, com quase setenta por cento da população servindo de portadores para nosso amigo. Façanha de nossos serviços indigentes de tratamento sanitário, é claro. Mas o que me interessava mesmo era um outro experimento, feito em Oxford. Nele, se provou que o Toxoplasma gondii era responsável por uma alteração ainda mais radical no comportamento dos ratos. O parasita simplesmente induzia roedores ao suicídio, imagine! Em um labirinto os cientistas marcaram alguns cantos com o cheiro da urina de gatos. Cobaias saudáveis fugiam dali como se o diabo os perseguisse. Mas para os animais contaminados, aquele odor provocava a mesma atração que o cheiro de comida. É como se os mamíferos, controlados por um mircoorganismo em seus cérebros, implorassem para ser devorados!
O Terrorista: Se uma coisa dessas não puder ser usada em uma arma química o que mais poderia?
O Cientista: De fato. Só precisávamos imaginar o modo como aproveitaríamos aquela habilidade adorável do protozoário. Nos laboratórios da TransCiência detectamos, isolamos e potencializamos os genes responsáveis pela indução do suicídio. O próximo passo, foi inserir em algumas plantas, geneticamente modificadas, aquele material, para que liberassem no ar tal toxina, junto com a produção normal de oxigênio.
O Terrorista: Imagino que vocês tenham em estoque gás suficiente, com essa toxina, para começar uma produção industrial.
O Cientista: Claro, claro, controlamos todo o processo agora e já podemos sintetizar o gás em grande escala. Por isso aquela estufa já era dispensável e pudemos destruí-la daqui, do meu escritório, acionando os explosivos ocultos. O ambiente hiperoxigenado e a quantidade de substâncias inflamáveis ajudaram a espalhar o incêndio e acabar com todas as pistas. Nem tanto pela investigação da polícia local, mas para evitar, como direi, espionagem industrial. Agora é só acionar o seguro, pôr a culpa nos sem terra e recuperar o dinheiro. Mas aquele laboratório nos serviu como campo de testes na última experiência necessária: a aplicação da toxina em seres humanos em uma situação real. Para isso, foram muitos úteis aqueles camponeses raivosos que sua organização manipulou para atacar o local.
O Terrorista: Essa foi a parte fácil do plano. Não falta mão-de-obra, criar um movimento social desses é tão fácil no Brasil quanto abrir uma ONG ou fundar uma nova igreja. Falo isso por experiência própria, claro. E o melhor é que, com toda a divulgação dramática do episódio, teremos a propaganda ideal para apresentar o produto às várias organizações que já demonstraram interesse em adquirir o gás de protozoário. Nossa rede já entrou em contato com árabes, palestinos, chechenos, ditadores africanos, as Farc...
O Cientista: Pronto, alcance aqui sua taça para eu enchê-la. Sim, é a prova de que a toxina, quando lançada entre uma população predisposta à violência e com as condições necessárias para exercê-la, pode provocar uma chacina por controle remoto. E, graças à diversidade da amostra que o senhor nos forneceu, comprovamos que funciona em ambos os sexos e com qualquer faixa etária. Quase choro de tanto rir ao me lembrar que nem mesmo Darwin se interessava pelos parasitas, sabia? Ele dizia que as criaturinhas rastejantes eram só um desvio no curso natural da evolução das espécies. Tome, pode pegar sua taça.
O Terrorista: Então o velho Charles teve o seu momento de... como é mesmo o nome, Lysenko? Obrigado, Wellmann.
O Cientista: Mesmo os gênios têm seus maus dias. Mas vamos brindar: aos meus cientistas e a suas cobaias humanas.
O Terrorista: É, cumpriram bem o papel de ratos no labirinto. Ao futuro, que nos pertence. Saúde!