No último dia 30 de outubro, uma transmissão de rádio que entrou para a história completou 70 anos. Foi em 1938 que um então jovem radialista da rede americana CBS resolveu adaptar para um formato de falsos boletins noticiosos o clássico de ficção científica A Guerra dos Mundos, de H.G. Wells. O ritmo do comunicador aumentava conforme se desenrolavam os relatos de uma invasão marciana envolvendo várias naves espaciais. Acostumados a se informar por aquela que era a principal mídia da época, cerca de um milhão de nova-iorquinos acreditaram que a história era real e entraram em pânico, alguns saindo em correria pelas ruas, outros se protegendo de gases venenosos com toalhas enroladas na cabeça. Aqueles programetes viraram alvos de estudos sobre o poder da imprensa, podem ser considerados o marco inicial das onipresentes pegadinhas e projetaram à fama o tal jovem radialista, um certo Orson Welles que apenas três anos depois voltaria às páginas da história ao escrever, dirigir e protagonizar Cidadão Kane, o filme considerado pela crítica como o melhor de todos os tempos.
Provavelmente foi inspirado nessa tradição de criar fatos a partir do cruzamento entre a ficção e a realidade que o roteirista Mark Millar (autor da série Ultimate dos Vingadores) invocou o nome de Orson Welles para agitar o mundo dos fãs de HQs e de cinema ao imaginar como seria um filme do Batman realizado pelo mitológico diretor.
Se Millar tivesse feito um simples texto com suposições a esse respeito talvez até alcançasse alguma repercussão, mas ele optou por explorar outro caminho na coluna que assinou no dia 26 de setembro no site Comic Book Resources. O autor afirmou que teria recebido com exclusividade parte do material de pesquisa para uma biografia de Welles que comprovaria o empenho do diretor para fazer tal adaptação em 1946. O livro seria escrito por um certo Lionel Hutton, supostamente crítico e historiador de cinema, que pesquisando o espólio de Welles descobrira notas de produção, cartas de confirmação do elenco, esboço de roteiro... O texto de Millar é terrivelmente convincente. Mas, provavelmente de propósito, deixava pistas de que tudo não passava de um trote. A maior delas envolve o Charada, vilão de Batman famoso por justamente sempre deixar dicas de como resolver seus crimes: Millar afirmava que esse personagem faria parte do filme de 1946, mas ele só foi criado três anos depois daquela data.
As supostas revelações de Millar provocaram alvoroço. É verdade que seria exagero comparar à movimentação causada pelos marcianos de Wells e Welles dos anos 30, mas que o colunista conseguiu agitar o modorrento cenário que estávamos atravessando, isso conseguiu. Quem acompanha essa história desde o início esperava que o ponto alto acontecesse na coluna seguinte de Millar, anunciada para o dia 3 de outubro. Só que no lugar de um texto assumindo o engodo e revelando as reais intenções, havia apenas um aviso: o autor deve voltar a escrever naquele espaço dentro de algumas semanas. Sem fazer especulações dos objetivos do autor, vamos ver um breve resumo com as “informações” do já polêmico texto “Orson Welles and Bat-man” para entender porque esse possivelmente é o melhor roteiro já criado por Mark Millar e, na tradição do velho Vigia, pensar no que aconteceria se tudo não passasse de uma pegadinha.
DESENHO DE PRODUÇÃO
”Muitos dos desenhos de produção que Orson Welles encomendou a Gregg Toland estão em notas e elas farão você sentir um arrepio na coluna assim que puder vê-las”, testemunhou o colunista. Vale lembrar que Gregg Toland é o mesmo cinegrafista responsável por várias das inovações técnicas de Cidadão Kane. Mark Millar dizia não poder revelar muitos detalhes para não estragar surpresas do livro de seu amigo Lionel Hutton, mas dava uma canja com um desenho bastante fiel ao conceito visual original do personagem criado por Bob Kane e Bill Finger em 1939.
ROTEIRO
Millar informa que Welles tinha planos bem ousados para a produção. Em supostas anotações do próprio diretor sobre o projeto Batman, teria sido registrada a pretensão de fazer do filme uma “experiência cinematográfica, um caleidoscópio de heroísmo e pesadelos jamais vistos antes, salvo no subconsciente de Goya e de Hawksmoor”. Esses dois citados são o pintor espanhol Francisco de Goya e o arquiteto inglês Nicholas Hawksmoor, referências expressionistas e góticas perfeitas para um filme sobre o Cavaleiro das Trevas. Mais para frente, Welles teria dito ainda que a intenção era fazer do filme um “psico-drama adulto” combinado com o nível de emoção e excitação dos seriados que passavam nas matinês de sábado nos EUA. Para tocar tudo isso, Welles queria imprimir “um estilo totalmente novo de dinâmica de direção como nunca havia sido visto no cinema americano”.
Mais detalhes da trama do filme estariam em 36 páginas de tratamento inicial do projeto, todas elas encontradas pelo tal Hutton. As pistas indicariam que a fita começaria de modo clássico, com a morte dos pais do jovem Bruce Wayne (uma curiosidade aqui: o nome da mãe do personagem que mais tarde se tornaria o vigilante Batman foi modificado de Martha para Mary Wayne. Quer coisa mais típica de produção cinematográfica que fazer alterações desse tipo?). A conclusão da história seria uma cena de luta com o protagonista, sem a máscara, lutando contra Coringa, Duas-Caras, Charada e Mulher Gato em uma prisão rebelada.
ELENCO
Para interpretar todos esses personagens o diretor escalaria um elenco estelar. O Coringa seria vivido pelo britânico Basil Rathbone, notório vilão de filmes de ação como As Aventuras de Robin Hood, de 1938, e A Marca do Zorro (aqui é impossível deixar de registrar uma das coincidências do texto: em uma das muitas revisões bibliográficas de Batman, ficou estabelecido que os pais do personagem foram assassinados justamente quando a família foi assistir a esse filme, de 1940). Quem viveria o anacrônico Charada seria James Cagney, astro de fitas policiais, a mais conhecida é Inimigo Público, de 1931. Para o Duas-Caras, com a recusa de Humphrey Bogart para o papel, foi escalado George Raft, marcado pelo envolvimento com gângsteres na vida real e por interpretá-los no cinema em filmes como Scarface, de 1932, e Quanto Mais Quente Melhor, de 1942. A Mulher Gato seria vivida por ninguém menos que Marlene Dietrich, mundialmente conhecida por seu papel em Anjo Azul, de 1930.
Mas a grande confusão que teria acabado com as chances do filme foi a briga em torno da escolha do ator para fazer o papel de Bruce Wayne/Batman. Welles queria aquele que provavelmente era seu ator favorito: ele próprio. Por algum motivo, os sempre inconvenientes produtores não gostaram da idéia e faziam questão de chamar Gregory Peck, recém-falecido na época da publicação do texto de Millar e um novato na década de 40. Na trama elaborada por Millar, eles chegaram a sugerir a Welles que caso ele quisesse mesmo participar no filme, que trocasse de lugar com Rathbone para viver o Coringa. O diretor teria ficado furioso com a interferência, largou o projeto que teria consumido cerca de oito meses de trabalho e, com isso, nesse universo paralelo, Batman entrou para o rol de seus trabalhos inacabados (assim como aquele lendário filme que se passaria no Brasil).
O QUE PODERIA TER SIDO
Tirando essa parte final, tudo ia tão bem que de fato era difícil acreditar nessas informações... A noção de “psico-drama adulto” teria sido uma atitude visionária, que anteciparia em pelo menos 40 anos o tratamento mais bem acabado do personagem. Na verdade, Batman só ganharia de fato uma marca digna dessa definição nos anos 80, a partir da reformulação que autores como o americano Frank Miller (O Cavaleiro das Trevas e Ano UM) e os britâncios Alan Moore (A Piada Mortal) e Grant Morrison (Asilo Arkham) fizeram em cima do trabalho pioneiro de Denny O´Neil no fim da década de 60. Quanto às pistas disponíveis a todo o resto, do visual dos personagens até a escolha dos autores, aparentemente servem como aula aos responsáveis pela atual onda de adaptações de quadrinhos, isso para não falar nas obras de safras anteriores. Isso, obviamente, inclui a seqüência de quatro produções da qual o próprio Batman foi vítima nas mãos de Tim Burton e Joel Schumacher. Millar daria um excelente consultor para Hollywood, concordam?
O que mais impressiona nessa idéia do colunista é o timing perfeito para que a tal produção, caso viesse mesmo às telas, pudesse realmente redefinir rumos e conceitos. Primeiro no cinema, que ainda vivia um momento de portas abertas para fitas de qualidade; não havia sido feita até então a escolha que marcou os anos 70 e 90 (com uma folga curta na geração dos 80) para que praticamente tudo o que se produzisse em um grande estúdio fosse feito mirando em adolescentes com pobrema no célebro.
Mas seria, com toda certeza, nos quadrinhos que este pretenso filme do Batman dos anos 40 teria maior potencial para modificar o mundo como o conhecemos hoje. Até a metade daquela década, essa mídia, mais notadamente o gênero de super-heróis, vivia sua fase mais popular. Se hoje um sucesso de vendas é medido em tiragem de algumas dezenas de milhares, naqueles tempos as cifras eram milhões de exemplares. Na década seguinte o gênero cairia em desgraça, virando alvo de gozação do público pós-guerra e de patrulhamento de autoridades preocupadas com o poder subversivo daquele meio. O resultado é que tais HQs passaram por um ciclo de auto-censura, perda de qualidade e queda nas vendas que só seria revista muito, muito lenta, no meio dos anos 60. Só que ai já era tarde. O encanto dos primeiros dias já havia se perdido.
Com o aval de uma pessoa como Orson Welles essa história de coito interrompido poderia ter sido bem diferente. Vale lembrar que ele nunca foi um sucesso garantido de público, mas desde sempre seu nome é apontado como o mais influente dos diretores. Dessa forma, os quadrinhos teriam recebido o impulso que faltou para alcançarem o status de seus co-irmãos, o crime, o suspense, a ficção científica. Todos esses gêneros também nasceram meio marginalizados, mas em algum momento de suas histórias, ao contrário das HQs, tiveram uma chance de redenção, seja no cinema, seja na literatura. O gênero poderia assim ter deixado de ser refém de um gueto de nerds (aquele tipo de gente que liga para sua casa sábado de manhã para repassar todas as novidades da semana), mudando o modo como o público pós-guerra passou a encarar essas revistas. Poderia ainda ter levado outros diretores renomados a realizar suas próprias adaptações: Millar encerra seu texto imaginando um possível filme do Capitão América feito por John Ford, mas por que não ir mais longe? Como seria um Super-Homem de Stanley Kubrick? Um Surfista Prateado de Ingmar Bergman? Um Mandrake de Federico Fellini? Um Homem-Aranha de Woody Allen? Uma Mulher-Maravilha de Dorothy Azner? Um Dr. Estranho de Roman Polanski? Um...
Este texto foi publicado originalmente no site Omelete como parte de um especial sobre os 65 anos da transmissão radiofônica de A guerra dos mundos. Republiquei aqui para atualizar a efeméride para os 70 anos e porque descobri no Youtube dois vídeos que simulam trailers do batfilme dirigido por Welles. A primeira parte pode ser vista aqui e a segunda neste endereço.