Um texto antigo sobre HQs francesas
para festejar meio século de AsterixPor
Romeu MartinsEste ano, Asterix, o mais tradicional e famoso personagem das histórias em quadrinhos da França, comemora o quadragésimo aniversário de lançamento do primeiro álbum [N.E.: Matéria redigida em 2000]. Fato que merece toda a atenção, pois o personagem, misto de peça de resistência e de obra-prima do argumentista René Goscinny (1926-77) e do ilustrador Albert Uderzo, é um marco histórico das HQs de todo o mundo, além de poder ser considerado um verdadeiro clássico, graças aos vários níveis de leitura que cada álbum permite. Mas restringir a um único personagem, por melhor que seja, a mais que centenária história da
Bande Dessinée (como são chamadas as HQs francesas) significa deixar de lado várias dezenas de artistas cujas obras têm o mesmo gabarito daquela dos criadores do "irredutível gaulês".
Uma exposição que está cruzando todo o país é uma chance de manter a lição de casa em dia.
Une Histoire de la Bande Dessinée en France, elaborada pelo Centre National de la Bande Dessinée, vale a pena ser vista pelo seu caráter didático e pela retrospectiva cronológica de seus painéis que reúnem ilustrações e textos sobre as BDs. A mostra recebeu uma oportuna tradução para o português, feita pela equipe da Aliança Francesa, uma associação sem fins lucrativos criada em 1883, que conta com 1080 sedes no mundo, 65 delas no Brasil. Muito útil pra quem não passa do "bõ-ju" e do "sivuplê". Em Florianópolis, que é de onde está sendo escrito este texto, a exposição ficou em cartaz por 15 dias, infelizmente sendo atrapalhada pelo feriadão do Carnaval, como lembra a professora Sylvie Colin. Da capital catarinense, o material segue para a Universidade São Carlos, em São Paulo, e de lá para a Aliança Francesa de Curitiba.
Antes de começar a falar sobre a retrospectiva feita pela mostra, vale registrar uma crítica. Une Histoire... se pretende uma exposição sobre HQs francófonas, e não apenas francesas. O que só se justifica pela presença de alguns artistas vindos de países como Bélgica e Suíça. Infelizmente, o organizador, Thierry Groensteen, deixou de lado os "faladores de francês" de fora do continente europeu. Perdeu-se com isso uma oportunidade única para se conhecer o trabalho de quadrinistas das ex-colônias africanas, por exemplo. Ou ainda da porção francesa de nosso inimigo comercial número 1, o Canadá, país do qual o único artista conhecido no Brasil vem exatamente do lado anglófono - John Byrne, que fez inúmeros trabalhos para editoras americanas como DC e Marvel. Registrada a crítica, vamos a tour pelo mundo das BDs.
Os pioneiros - Não tem jeito. Em todo lugar do mundo sempre existe uma artista que fazia HQs antes daquele que é considerado o marco mundial do gênero - Yellow Kid, do americano Richard Outcault. Se até por aqui existiu o ítalo-brasileiro Angelo Agostini, os francófonos não poderiam deixar por menos. Para eles, quem inventou os quadrinhos foi o suíço Rodolphee Töpffer (1799-1846), que batizou sua criação de Littérature en estampes. Seus personagens eram todos anti-heróis, como Monsieur Crepi, pai de 11 crianças, ou o erudito Doctor Festus. O primeiro álbum de Töpffe data de 1833, nada menos que 63 anos antes da estréia de Yellow Kid nos EUA. O artista inspirou artistas como Cham (responsável por mais de dez álbuns), Richard de Querelles, Edmond Forest e, aquele que é considerado o mais fiel a seu estilo, Léonce Petit (1839-84).
Na área dos quadrinhos para crianças, o precursor foi Cristophe, nome artístico de Georges Colomb (1856-1945). Seu trabalho mais célebre, Família Fenouillard, foi lançado junto com as comemorações da Exposição Internacional sediada em Paris (que foi marcada pela inauguração da Torre Eiffel), em 1889. Virando o século, no período entre-guerras, surgiu outro nome importante da BD: Alain Saint-Ogan (1895-1974), criador de Zig et Puce. Com um traço mais limpo e estilizado que o de seus predecessores, o artista foi responsável pela introdução na França de um dos elementos mais associados com as HQs no mundo: o balão para fala e pensamento dos personagens. Os puristas consideram este como sendo o verdadeiro marco inicial das BDs. Até então, as obras em quadrinhos naquele país eram feitas com as ilustrações e os textos separados, sem interação entre as duas partes, como se fossem livros ilustrados.
Artistas estrangeiros - A década de 30 foi marcada pela forte presença de artistas estrangeiros lançando seus trabalhos em solo francês. Como não podia deixar de ser, o nascente império Disney foi o primeiro a aproveitar a brecha e introduzir seu material pasteurizado na aldeia dos gauleses. Para tanto, Walt Disney contou com a colaboração de Paul Winkler, que no dia 21 de outubro de 1934 lança o
Journal du Mickey e consegue uma impressionante tiragem de 300 mil exemplares. O sucesso inspira o lançamento de outros clássicos ianques, como Popeye, Flash Gordon, Mandrake, Tarzan, entre outros.
Influência mais enriquecedora que o rato americano foi o trabalho do belga Georges Remi (1907-83), mais conhecido no mundo inteiro pelo som de suas iniciais invertidas Hergê (ou seja, RG). Ele criou um dos poucos personagens francófonos que pode rivalizar em matéria de fama com Asterix. Tintin, um jornalista que vive aventuras por todos os países do mundo (e, na verdade, até na Lua), foi criado em 1929 no suplemento
Petit Vingtième. Uma frase do artista foi destacada na mostra: "A grande dificuldade em fazer BDs é mostrar exatamente o que é necessário para a compreensão da narrativa - nem mais, nem menos". Hergê criou um estilo que para muito virou sinônimo de quadrinhos franceses: a chamada Linha Clara, que traz personagens extremamente estilizados e cenários feitos com muito realismo. Infelizmente a mostra não chama atenção para o fato.
A presença de estrangeiros em território francês não poderia passar em branco. Houve uma violenta reação, nos anos 30, dos comunistas e dos católicos contrários ao que consideravam um meio para "esterilizar a inteligência francesa" e de "preparar um povo de escravos". A crítica moralista batia principalmente na violência e na sensualidade de algumas histórias (de um modo bem parecido com o que iria acontecer na América, 20 anos mais tarde, quando foi lançado o livro
A Sedução dos Inocentes com pesadas críticas às HQs). Ao mesmo tempo, artistas franceses resolveram se unir para tentar banir material estrangeiro dos jornais locais. Eles queriam 100% de mercado garantido para a produção nacional. Não chegaram a tanto, mas a pressão fez surgir uma Comissão de Fiscalização, que entrou em vigor no dia 16 de julho de 1949, com influências tanto moralistas quanto protecionistas. Seria preciso muito esforço para vencer um certo clima de censura no ar.
Publicações revolucionárias - Nos anos seguintes, surgiram publicações que fariam história. Nos anos 50 e 60, as principais revistas eram os semanários
Tintin e
Spirou. A primeira, comandada, é claro, por Hergê, publicava HQs mais sérias, com alguma pesquisa e documentação. Na segunda, o que valia era a fantasia e a sátira de costumes. O principal artista de
Spirou era Jijé (Joseph Gillain, 1914-80), criador de Fantasio. A exemplo de Hergê, ele também definiu um estilo, conhecido por Escola de Marcinelle. A influência é sentida em vários artistas, entre eles Morris, o desenhista do cowboy Lucky Luke, criado em 1946. Aliás, uma preciosidade da exposição é justamente uma página de roteiro escrito por Goscinny e a respectiva página ilustrada por Morris.
Outra revista definitiva foi a
Pilote, criada em 1959, cujo número inicial trouxe a estréia de Asterix - o personagem ganharia o primeiro álbum, com história completa, em 1961. "Pela minha ação como diretor de
Pilote, quebrei os grilhões que aprisionavam as BDs". A frase de Goscinny pode parecer pretensiosa, mas é justa. Foi com os trabalhos apresentados naquela revista que o tal ar de censura dos anos anteriores começou a ser diluído pouco a pouco. Com a influência da
Pilote e da convulsão social pós-68, começou a surgir material mais underground, como a revista
Hara-kiri, unindo o melhor do que era feito na mundo (Buzzelli, Crepax, Muñoz, Schulz) e apresenteando uma nova geração de franceses, estreando uma nova forma de humor, o "Bête et Méchant", algo como "Burro e Mau". Um dos novatos da época, Wolinsky, é influência assumida do brasileiro Angeli e a
Hara-kiri, por sua vez, inspirou a melhor revista brasileira de todos os tempos, a
Chiclete com Banana.
Como as pedras estavam rolando e o limo sendo retirado, as BDs estavam prontas para sua maior revolução estilística e narrativa. A craição da revista mensal
Metal Hurlant colocou definitivamente a produção francesa na vanguarda mundial, graças à modernidade gráfica e à qualidade editorial da nova publicação. Foi nela que Moebius (Jean Giraud) apresentou suas maiores obras-primas, voltadas especialmente para a fantasia e a ficção científica. A revista ganhou uma versão mais célebre, não necessariamente melhor, nos EUA, a
Heavy Metal, que muitos citam sem mencionar a original gaulesa. É de material dessa qualidade, e de muitos outros artistas dos quais nem chegamos a falar (como o ótimo Jano que vai lançar em breve uma obra sobre o Brasil), de que é feita a
Bande Dessinée. Sem dúvida uma das maiores contribuições da França e de seus países irmãos tanto para o universo pop, quanto para o underground - no mínimo tão importante quanto o cinema local e sem dúvida melhor que a música contemporânea deles, por exemplo.
Matéria originalmente escrita para o e-zine O Malaco e republicada no Marca Diabo