28.6.08

Meme sacanearam

Memes são idéias virais. O conceito já rendeu pelo menos uma ótima história que eu li na série Frequência Global (uma das inspirações mais óbvias deste blog), escrita pelo Warren Ellis e ilustrada por Steve Dillon (parceiro do Garth Ennis em Preacher). Na HQ, alienígenas arquitetaram uma invasão ao nosso planeta utilizando mensagens que tinham a capacidade de alterar os padrões mentais de suas vítimas e transformá-las em assassinos por controle remoto (qualquer semelhança com o conto "E atenção: notícia urgente" não é mera coincidência).

Mas na blogosfera, memes são sinônimos de exóticas formas de corrente piramidais. É o caso da que me foi repassada por uma das colaboradoras deste blog, a Ludi, do Argamassa Gorda. Qualé a idéia? Catar sem procurar muito o primeiro livro que aparecer pela frente, abrir na página 123 e copiar a quinta linha. No meu caso saiu isso:

"idéia tão romântica e irrealista da sociedade medieval. Uma"


A bizarrice é da biografia de um grande roqueiro canadense: Neil Young - A história definitiva da sua carreira musical. O livro é de Johnny Rogan, minha edição saiu pela editora Assírio e Alvin. Acho que é pra passar adiante a parada. Pra manter entre a Cosa Nostra, sacaneio outro colaborador do TC, o Lupo, do POP Pills Addiction. Let´s rock.

26.6.08

Sobre parasitas e um outro agradecimento

Todas as informações sobre o protozoário que é o protagonista informal do conto abaixo (“E atenção: notícia urgente”) são verdadeiras. Um artigo bastante completo sobre o assunto, e com um ponto de vista brasileiro, foi publicado pela revista Piauí. A matéria, que pode ser lida aqui, tem ainda a vantagem de trazer vários outros links para complementar o tema, em inglês e em português.

Outro personagem citado no texto que merece uma leitura mais aprofundada é o inacreditável Trofim Lysenko. Neste verbete da Wikipédia há mais detalhes sobre a biografia do homem que é um exemplo perfeito do perigo de se misturar ciência e ideologia.

No mais: tenho que agradecer ao camarada Fernando Trevisan que em sua página resenhou todos (sim, todos) os contos aqui publicados. Em meu nome, no nome da Ludimila, do Lupo e do Horacio um obrigadão ao cara. E estamos esperando o conto prometido, em ritmo de Clube da luta.

25.6.08

E atenção: notícia urgente


Uma transmissão radiofônica por Romeu Martins

O Âncora: Agora são oito horas e um minuto da noite. Com o fim da “Voz do Brasil”, sua rádio Tribuna Central volta ao plantão de notícias.

Jingle: Têêêêêêêêêê-Cê Ááááááááááá-Emê Vinte e quatro horas com voooocê

O Âncora: E voltamos a informar diretamente do interior do Paraná, onde o laboratório de uma empresa do setor agrícola corre o risco de ser invadido a qualquer momento por uma multidão de trabalhadores rurais sem-terra. Vamos falar com a repórter Helena Gomes, que acompanha tudo no local desde o início da tarde. Helena, você nos ouve? O que pode informar a nossos ouvintes em todo o Brasil?

A Repórter: Ouço bem, Herbert. Estou aqui diante daquela que é considerada a maior estufa do Brasil, usada pela multinacional TransCiência como laboratório para o cultivo de produtos geneticamente modificados. É uma enorme bolha feita de um plástico especial, transparente. Neste momento, aproximadamente cem manifestantes do movimento Trabalhadores Campesinos gritam palavras de ordem e ameaçam invadir as instalações da empresa. Não podemos nos aproximar muito porque este movimento é muito hostil à presença de jornalistas, mas acho que vocês podem ouvir os gritos dessas pessoas pelo meu celular. Um momento, vou ajustar o fone direcional...

Coro: Fora com a comida de laboratório! Não somos cobaias! Fora com a comida de laboratório! Não somos cobaias! Um, dois, três, quatro-cinco-mil, queremos que os transgênicos...

A Repórter: Como vocês podem perceber, o clima por aqui é de guerra desde a manhã de ontem, quando os manifestantes armaram acampamento no terreno em volta da estufa. No meio da tarde, eles deixaram suas barracas improvisadas de lona azul e passaram a cercar o laboratório, impedindo o acesso de funcionários e de pesquisadores. Apesar de muitos dos recursos da empresa terem sido adquiridos através de convênios com a Universidade Federal do Paraná e com a Embrapa, o governador não autorizou o envio de tropas da Polícia Militar para conter a manifestação. No momento, apenas os seguranças da multinacional fazem um cordão de isolamento para tentar impedir a entrada de dezenas de pessoas, homens, mulheres e crianças, muitos armados com enxadas, pás, foices e facões.

O Âncora: Helena, você conseguiu falar com alguém responsável pela empresa?

A Repórter: Sim, neste exato momento estou em contato, por telefone, com o diretor-presidente e cientista-chefe da filial brasileira da TransCiência, Órson Wellmann. Ele está no escritório da empresa, em Curitiba. Senhor Wellmann, o que o senhor tem a dizer sobre a pauta de reivindicações dos Trabalhadores Campesinos?

O Cientista: Minha cara Helena, sou eu quem pergunto: que pauta? Essas pessoas não estão interessadas em negociar, não apresentam nenhuma disposição para o diálogo.

A Repórter: Mas o movimento faz acusações de que sua empresa tem ligações com grupos militares e que faz experiências para a fabricação de armas, não é verdade? O que o senhor pode dizer a respeito?

O Cientista: Essas acusações, como você chama, são ridículas. Onde estão as provas? Isso não passa de calúnia e de especulações, uma vez que somos uma empresa globalizada, com ações negociadas em bolsa e com participação de recursos de vários fundos de investimentos. Mas todas nossas pesquisas são pautadas pela ética e pelo respeito às leis de cada país em que atuamos.

A Repórter: Como o senhor classifica as ações dos manifestantes, então?

O Cientista: Eles usam técnicas terroristas para impedir nosso trabalho e o progresso da ciência. Talvez os seus ouvintes já tenham ouvido falar dos neoluditas, não? Neoluditas são pessoas que, a exemplo do que aconteceu no início da Revolução Industrial, lá na Inglaterra, no século retrasado, temiam o avanço da ciência e da tecnologia. Eles têm medo – na verdade ódio – por tudo o que é novo.

A Repórter: Então, na sua opinião, os Trabalhadores Campesinos são um grupo terrorista e neoludita?

O Cientista: Minha cara Helena, eu chamo essa gente de neolysenkistas. Explico para você e para seus ouvintes qualificados no Brasil inteiro. Trofim Lysenko foi um homem muito importante na antiga União Soviética, na metade dos anos trinta do século passado. Ele dizia não acreditar na genética como era estudada no Ocidente, a considerava uma ciência burguesa que não estava de acordo com o materialismo dialético. Sua influência era tão grande que qualquer referência a cromossomos foi banida dos livros didáticos daquele país, gerando um atraso científico e tecnológico incalculável. Mas muito pior que isso: Lysenko afirmava que a sua genética filosoficamente correta iria garantir mais produção de trigo para os russos no inverno. Sabe o que aconteceu na verdade, minha cara Helena?

A Repórter: Não, nunca ouvi falar nisso...

O Cientista: As teses malucas desse homem levaram fome e miséria a milhões de pessoas nos campos e nas cidades da União Soviética. Destruíram a economia do país e condenaram à morte milhares de pessoas. E é isso o que essas pessoas, esses neolysenkistas, estão querendo reviver agora, em pleno século vinte e um, no Brasil. Ao impedir o trabalho de cientistas genéticos, estão criando dificuldades para que se descubram novos medicamentos, novas fontes de alimentos, novos produtos que podem...

A Repórter: Um momento, senhor Wellmann... Obrigada pela entrevista, mas começou uma movimentação mais intensa aqui. Aparentemente, os manifestantes estão avançando contra o laboratório da empresa neste momento. Sim, eles romperam a barreira dos seguranças e passaram a arrombar as portas da estufa. Com golpes de enxadas e chutes, a multidão forçou a entrada... Conseguiram, os Trabalhadores Campesinos invadem, neste momento, a maior estufa experimental do país. Entre gritos e muita correria, dezenas de homens, mulheres e até crianças pequenas estão destruindo com golpes de foice as plantas transgênicas do local. Quem não está portando alguma ferramenta se encarrega de arrancar com as mãos ou a pisotear as plantações.

O Âncora: Alô, Helena, você está me ouvindo? Havia algum funcionário no interior do laboratório?

A Repórter: Não, Herbert, a estufa estava vazia e mesmo os seguranças da TransCiência, que tentavam proteger a estufa, permanecem do lado de fora. Enquanto isso, mais e mais manifestantes entram no local pelas portas arrombadas. É muito difícil chegar mais perto, mas o ambiente é bastante iluminado e podemos ver a movimentação das pessoas. Elas estão destruindo não apenas as plantas mas todos os equipamentos ali presentes. Computadores são jogados ao chão, mesas reviradas. Posso ver que até enormes galões, provavelmente de fertilizantes ou de outras substâncias químicas, são arremessados contra as paredes. O caos é generalizado e... espere! Algo muito estranho está acontecendo...

O Âncora: Helena? Helena? O que está havendo? O que você pode ver...

A Repórter: Tudo certo, Herbert. Sim, é isso mesmo! Vários dos manifestantes que até há pouco corriam e escavavam a terra pararam de se movimentar. Pouco a pouco, cada vez mais manifestantes deixam de atacar as plantas e os equipamentos. Eles se limitam a ficar parados. É como se, de uma hora para outra, tivessem se esquecido do que estavam fazendo, parecem confusos. Quase todos, neste momento, estão parados, são poucos os que continuam... O que é aquilo? Não é possível! Aquelas pessoas começaram a atacar uma a outra! Um homem acaba de esmagar a cabeça de uma criança com golpes de enxada... É horrível...

O Âncora: Helena como isso é possível? São os seguranças que resolveram invadir o laboratório? O que está acontecendo?

A Repórter: Não, não, são os próprios trabalhadores rurais que estão se matando... Todos eles largaram as plantas e começaram a se atacar... Meu Deus do Céu! É a coisa mais horrível que já vi! Homens retalham uns aos outros e às mulheres e às crianças que os acompanhavam. Quem não levava alguma arma, joga objetos do local contra aquele que está mais próximo. Ou ataca com socos, pontapés e mordidas. Muitos estão no chão, se engalfinhando... Todos, mesmo as crianças pequenas, se atacam... o sangue escorre por todos os lados.

O Âncora: Mas como isso é possível? Alguém chegou perto da estufa?

A Repórter: Ninguém se aproximou do local... desculpe, Herbert, mas é muito complicado descrever o que está acontecendo. O nível de violência é terrível. Mesmo mulheres, que aparentavam ser as mães de algumas daquelas crianças, estão agredindo quem estiver a seu lado indiscriminadamente. Espere... vocês conseguiram ouvir isto, aí no estúdio, Herbert?

O Âncora: Pareceu um ruído de trovão... ou de uma explosão? Alguma granada? A polícia decidiu agir no local?

A Repórter: Difícil dizer, mas foi possível ver um brilho e... sim, uma nuvem de fumaça preta começa a sair do lado da estufa. Podemos ver chamas, o lugar está pegando fogo. É isso mesmo, as chamas se espalham cada vez mais rápido. Atingem as plantas e correm pelo chão, entre aqueles galões que tiveram o conteúdo espalhado... Outra explosão, desta vez bem no meio da estufa! Várias pessoas foram arremessadas no ar... Mas, meu Deus, mesmo assim eles continuam se atacando! Ninguém está tentando fugir pelas portas arrombadas. Aquelas pessoas ainda estão se matando... Mesmo quem está com o corpo coberto pelo fogo parece mais preocupado em matar os colegas que em se proteger! Não é possível! Um homem bastante idoso que teve o braço arrancado e está com a roupa em chamas avançou em direção da porta, mas ao invés de correr para fora, ele pegou um facão caído no chão e voltou para atacar uma mulher pelas costas... Nada disso faz sentido...

O Âncora: Helena, que barulho foi esse? O que aconteceu? Você está bem?

A Repórter: Mais e mais explosões, Herbert... Os galões de fertilizante, por todo lado, explodem... A fumaça negra se espalha e aparentemente é tóxica... Calma, peraí, não empurra! Tô trabalhando... Os seguranças fugiram e estão nos obrigando a nos afastar do local... As luzes elétricas se apagaram, foi o gerador interno da estufa que explodiu agora. Só dá pra enxergar alguma coisa graças ao brilho do fogo. Posso ver que o teto está cedendo... A estrutura de metal que dá sustentação ao teto e às paredes está nitidamente abalada. Acabou de desabar, Santo Deus! O ruído do aço se retorcendo é muito alto. Toneladas de material esmagam aquelas pessoas. Mesmo assim ninguém tenta escapar daquele inferno... Acho que ninguém sobreviveu... Alô, Herbert, não é mais possível ficar aqui. Os seguranças nos empurraram para longe do local, só dá para ver o fogo, cada vez mais alto, e uma enorme coluna de fumaça que encobre a lua e as estrelas...

O Âncora: Alô, Helena? Alô?... Devem ter retirado nossa repórter do local. Vamos tentar refazer o contato. Vocês ouviram, aqui na Tribuna Central AM, o relato de uma invasão que acabou em tragédia, no interior do Paraná. Aproximadamente uma centena pessoas pode ter morrido. Mais detalhes, depois do intervalo, quando continuaremos com nossa reportagem, com o apoio da TalkCel, a única operadora de celular presente em cem por cento do território nacional. É só um minutinho...

Jingle: Têêêêêêêêêê-Cê Ááááááááááá-Emê Vinte e quatro horas com voooocê

O Terrorista: Agora só vai ter enrolação. Já dá para desligar o rádio e abrir o vinho.

O Cientista: Mude de estação. Vou pegar a garrafa. De fato. Parece que tudo ocorreu exatamente como previsto.

O Terrorista: Tinha alguma dúvida, senhor Wellmann? Nós, dos Terroristas da Conspiração, damos cem por cento de garantia em nossos serviços. Dissemos que vocês iriam conseguir, ao mesmo tempo, a experiência com humanos que tanto queriam e toda a publicidade necessária para lançar seu novo produto.

O Cientista: Às vezes, a eficiência de vocês me assusta, senhor Neves.

O Terrorista: E então? A nova arma é tudo aquilo que seus pesquisadores vinham anunciando mesmo.

O Cientista: É verdade, é verdade. Bendita a hora em que li aquele paper da Royal Society sobre os possíveis impactos de um obscuro protozoário no comportamento da sociedade. Em apenas seis páginas, os cientistas londrinos me deram a idéia de usar o Toxoplasma gondii como matéria-prima.

O Terrorista: Ah, foi essa a fonte original do seu insight.

O Cientista: Sim, “Pode o Toxoplasma gondii, parasita comum do cérebro, influenciar a cultura humana?” era o título do documento, em uma tradução livre. A academia de ciências do Reino Unido estava preocupada com as evidências que esse simples parasita podia afetar o cérebro das pessoas e induzir novos comportamentos. O protozoário se mostrou capaz de atravessar a membrana de nossas células de autodefesa, invadir o núcleo e simplemente enganar todas as barreiras imunológicas do cérebro humano. Um verdadeiro fenômeno da natureza. Em um segundo documento, apresentado durante um encontro anual da Sociedade Internacional de Neurociência do Comportamento, disseram que o microorganismo havia desvendado “o vocabulário dos neurotrasmissores e hormônios”.

O Terrorista: Em suma, estamos falando de um bichinho muito esperto.

O Cientista: Realmente... sua taça, senhor Neves. Vou abrir a garrafa, se conseguir encontrar o saca-rolhas. A lista de alterações comportamentais que o pequeno invasor é capaz de provocar varia entre os sexos. Torna as mulheres mais afetivas e os homens mais conformistas. Parecia capaz de deixar as pessoas mais afeitas a sentimentos de culpa. Por um lado mais predispostas a se envolver em situações de perigo, por outro, avessas à mudanças.

O Terrorista: Uma mudança e tanto na química cerebral, com certeza. Compraria um lote desse parasita se ele coseguisse tornar minha última sogra uma mulher mais afetiva...

O Cientista: Sim, e no mundo inteiro são bilhões de pessoas infectadas. Um detalhe que me chamou a atenção é que o país mais atingindo seria justamente o Brasil, com quase setenta por cento da população servindo de portadores para nosso amigo. Façanha de nossos serviços indigentes de tratamento sanitário, é claro. Mas o que me interessava mesmo era um outro experimento, feito em Oxford. Nele, se provou que o Toxoplasma gondii era responsável por uma alteração ainda mais radical no comportamento dos ratos. O parasita simplesmente induzia roedores ao suicídio, imagine! Em um labirinto os cientistas marcaram alguns cantos com o cheiro da urina de gatos. Cobaias saudáveis fugiam dali como se o diabo os perseguisse. Mas para os animais contaminados, aquele odor provocava a mesma atração que o cheiro de comida. É como se os mamíferos, controlados por um mircoorganismo em seus cérebros, implorassem para ser devorados!

O Terrorista: Se uma coisa dessas não puder ser usada em uma arma química o que mais poderia?

O Cientista: De fato. Só precisávamos imaginar o modo como aproveitaríamos aquela habilidade adorável do protozoário. Nos laboratórios da TransCiência detectamos, isolamos e potencializamos os genes responsáveis pela indução do suicídio. O próximo passo, foi inserir em algumas plantas, geneticamente modificadas, aquele material, para que liberassem no ar tal toxina, junto com a produção normal de oxigênio.

O Terrorista: Imagino que vocês tenham em estoque gás suficiente, com essa toxina, para começar uma produção industrial.

O Cientista: Claro, claro, controlamos todo o processo agora e já podemos sintetizar o gás em grande escala. Por isso aquela estufa já era dispensável e pudemos destruí-la daqui, do meu escritório, acionando os explosivos ocultos. O ambiente hiperoxigenado e a quantidade de substâncias inflamáveis ajudaram a espalhar o incêndio e acabar com todas as pistas. Nem tanto pela investigação da polícia local, mas para evitar, como direi, espionagem industrial. Agora é só acionar o seguro, pôr a culpa nos sem terra e recuperar o dinheiro. Mas aquele laboratório nos serviu como campo de testes na última experiência necessária: a aplicação da toxina em seres humanos em uma situação real. Para isso, foram muitos úteis aqueles camponeses raivosos que sua organização manipulou para atacar o local.

O Terrorista: Essa foi a parte fácil do plano. Não falta mão-de-obra, criar um movimento social desses é tão fácil no Brasil quanto abrir uma ONG ou fundar uma nova igreja. Falo isso por experiência própria, claro. E o melhor é que, com toda a divulgação dramática do episódio, teremos a propaganda ideal para apresentar o produto às várias organizações que já demonstraram interesse em adquirir o gás de protozoário. Nossa rede já entrou em contato com árabes, palestinos, chechenos, ditadores africanos, as Farc...

O Cientista: Pronto, alcance aqui sua taça para eu enchê-la. Sim, é a prova de que a toxina, quando lançada entre uma população predisposta à violência e com as condições necessárias para exercê-la, pode provocar uma chacina por controle remoto. E, graças à diversidade da amostra que o senhor nos forneceu, comprovamos que funciona em ambos os sexos e com qualquer faixa etária. Quase choro de tanto rir ao me lembrar que nem mesmo Darwin se interessava pelos parasitas, sabia? Ele dizia que as criaturinhas rastejantes eram só um desvio no curso natural da evolução das espécies. Tome, pode pegar sua taça.

O Terrorista: Então o velho Charles teve o seu momento de... como é mesmo o nome, Lysenko? Obrigado, Wellmann.

O Cientista: Mesmo os gênios têm seus maus dias. Mas vamos brindar: aos meus cientistas e a suas cobaias humanas.

O Terrorista: É, cumpriram bem o papel de ratos no labirinto. Ao futuro, que nos pertence. Saúde!

22.6.08

Another day

Uma smartmob borgeana por Horacio Corral

O letreiro do ônibus dizia West Plaza entre os diferentes destinos que as pequenas luzes laranjas anunciava continuamente. Subi. Meu bilhete único sussurrou deixa ele passar para a máquina que sempre vem anexada com um cobrador. Sentei em um dos assentos próximos à porta do fundo porque são mais espaçosos. Me deixei absorver por um jogo no celular durante a viagem, curta, diária, conhecida, chata. Uma vez ou outra eu fazia o trajeto lendo ou prestando atenção em outra coisa que não fosse a degradada paisagem urbana. Olhar as pessoas passando na rua faz minha mente divagar sobre como devem ser suas vidas, e apesar de que eu aprecio o ato de imaginar e criar uma boa história, a fauna urbana dos horários que transito não me oferece histórias dignas de serem imaginadas sem retoques inverossímeis. Sendo assim prefiro submergir em outros mundos a permanecer boiando neste sem algo interessante para fazer.

Uma garota e sua amiga conversavam animadas logo à minha frente. Eu já estava de pé e indo para a porta, pronto para descer no próximo ponto. Elas que até pouco tempo atrás estavam em um par de assentos logo depois da catraca, tinham decidido ficar paradas na porta dos fundos conversando. Calculei que iriam descer no Shopping West Plaza, mas nunca dá para saber este tipo de coisas. O meu ponto era o imediatamente anterior ao que supunha ser o delas. Com certa indignação percebi que elas não iriam descer no meu ponto, e que tinham estabelecido que a porta e o território que a rodeia – normalmente, um par de degraus – seria o pequeno reino no qual poderiam conversar sem serem perturbadas. Para tristeza deste reino eu teria de invadi-lo.

E neste exato momento me encontrava na fronteira – pouco atrás de uma delas. Decidido a descer em um futuro próximo, quase imediato. Uma tinha cabelo castanho, curto, e a outra era loira, ou pelo menos é isso que devemos dizer ao ver os pêlos da cabeça pintada daquele jeito desleixado. Ao me aproximar comecei a escutar a conversa. Escutar - não ouvir. Não gosto de ouvir a conversa dos outros. Parece que a loira era quem falava - rapidamente, mas sem perder a típica entoação feminina de contar um babado. Eu queria descer do ônibus. Estava ficando impaciente. A menina de cabelo curto ouvia atentamente com os olhos brilhando e a boca entreaberta ensaiando uma risada ou um sorriso em um momento ou outro, acompanhando a história da amiga. O ponto estava mais perto, e eu me aproximei delas. Estava tão próximo que já “ouvia” a conversa delas, com um certo desgosto, devo dizer. Não vou reproduzir aqui a conversa porque eu faço questão de omitir da minha memória qualquer tipo de conversa sobre ficantes e beijinhos em não sei quem e sobre como tal cara estava lindo naquela festa, mas que não queria namorar ele, entre outras coisas do gênero. Eu precisava descer do ônibus, e elas permaneciam na frente da porta bloqueando minha passagem como uma muralha que está ali, mas ignora o bárbaro pronto para atacá-la ferozmente. A conversa que eu continuava a ouvir parecia ter ficado mais animada, e meu humor caminhava na direção oposta ao da conversa, se transformando em algo cada vez mais escuro e sombrio.

Odeio gente que fica parada na porta do ônibus, e que não vai descer no próximo ponto. Sempre me pergunto, será que as pessoas percebem o quão inoportunas são? Ou nem mesmo suspeitam que são um obstáculo irritante entre o passageiro e seu destino? Eu acredito que existam pessoas que sabem que isto deixa muita gente chateada, e que se aproveitam deste fato de maneira lúdica e perversa. Não sei qual vantagem, prêmio ou glória poderia se alcançar nesta atividade.

Devo dizer, às custas da minha humildade, que sempre fui perspicaz para certas coisas, sou o cara chato que antes do final do livro já sabe quem é o assassino, porque percebeu como ele fez um gesto ou deixou cair uma coisa que depois acaba sendo importante. Bom, acho que captaram a idéia. Intui de alguma maneira que elas não estavam ali porque pretendiam descer no Shopping, nem depois, nem em qualquer outro lugar. Nesse momento, lembrei que elas tinham levantado logo depois do túnel e que no momento que paramos no ponto da Universidade Uninove elas já estavam ali conversando. É estranho que se fossem descer no Shopping elas tivessem levantado tão cedo, aquilo era estranho, mas eu poderia estar errado nas minhas deduções. Então, lembrei que eu não era o primeiro a estar naquela situação, vários estudantes tinham espreitado as duas amigas e se incomodado, como qualquer pessoa normal, com o obstáculo entre eles e a porta. Acredito que uma velha até resmungou alguma coisa, mas eu não estava prestando muita atenção.

Chegamos ao ponto.

E por um motivo que somente agora consigo explicar, decidi não descer. Neste momento, o leitor fica chateado comigo, porque pensou que eu iria brigar com elas, pelo menos faria um comentário, indignado, antes de tentar descer ou talvez pedisse licença dando uma ênfase sarcástica à palavra.

No entanto, ele vai me agradecer no final, e reconhecerá que se meus motivos não são exatamente nobres pelo menos são interessantes.

Não desci. Simplesmente, fiquei ali de pé. Do lado delas, não fingi que queria ouvir aquela conversa que mantinham nem nada parecido, apenas me acomodei atrás de uma delas. Fiquei ali. E as pessoas que queriam descer ficavam visivelmente irritadas com a gente. Incluo-me entre elas, pois estava de uma maneira ou outra bloqueando a porta também.

Os pontos foram passando, uma vez ou outra elas olhavam para mim como querendo ter certeza de alguma coisa. Eu fingi não perceber que me olhavam e continuei ali de pé. Era cansativo, as pernas doíam, mas eu sentia que havia algo a mais naquela tarefa, parecia haver um propósito.

Eu só não sabia qual.

Ponto final. Terminal.O cobrador anunciou que o ônibus ia para a garagem. Sem outra opção elas desceram. Eu fiz o mesmo e comecei a segui-las, mas mantendo a alguns metros de distância. Saímos do terminal. Uns dois quarteirões depois, elas pararam. Viraram-se e vieram na minha direção sem nenhuma cerimônia. Pareciam diferentes, seus rostos eram mais sérios, menos jocosos. A mesma conversa que ouvi antes no ônibus quando estava próximo a elas não combinava com aquelas duas meninas que se aproximavam. Não tive medo, mas senti um frio na barriga. Não eram as mesmas do ônibus, isso ficava mais claro a cada passo. Pensei em fugir, pensei duas vezes, e depois pensei, “Por que estou pensando em fugir delas?”, aquelas duas pessoas me amedrontavam de uma maneira que eu não compreendia.

Então, faltando alguns passos, elas pararam, e a loira perguntou:

- Por que ficou bloqueando a porta do ônibus atrás da gente? Por que você está nos seguindo? - perguntou ela com uma voz cortante e séria

Eu pensei em inventar alguma desculpa, mas não era por isso que eu tinha ficado na porta, eu sentia que havia algum segredo, havia algum porquê, algo a mais. Então, fui sincero.

- Eu percebi que vocês estavam bloqueando a porta desde o ponto da faculdade, e continuaram fazendo isso. Fizeram isso nos principais pontos – disse de uma vez só, argumentando.

- Onde descem mais pessoas – conclui

- A principio pensei que vocês não ligavam para as pessoas e apenas gostavam de ficar conversando perto da porta, mas depois percebi que não era isso. Eu as segui porque quero entender o que vocês estavam fazendo – finalizei em um tom tão sério quanto o dela.

Senti um grande alívio ao responder, e perceber que não me achavam louco. Que algo do que eu tinha dito fazia sentido. Elas se entreolharam. Murmuraram algo uma no ouvido da outra, como se conversassem normalmente, mas essa conversa não poderia ouvir. Assim fizeram até que a de cabelo castanho virou para mim, devagar, como sabendo muito bem o que iria dizer.

- Você é um bom observador – disse ela como se divertindo.

- É raro, alguém perceber. Normalmente… – quando foi interrompida

- As pessoas estão preocupadas demais ou com pressa demais para perceber – completou a loira com certa raiva

A garota de cabelo castanho olhou para a amiga que se acalmou e continuou.

- Não ficamos ali apenas por capricho, como você percebeu.

- Cumprimos uma tarefa que pode parecer loucura, mas que funciona e é importante.

- Em muitos ônibus, trens e metrôs há gente como eu e ela. Fazendo a mesma coisa. Somos muitos, mais do que você imagina. Não sei dizer quantos. O número aumenta todos os dias - contou ela, satisfeita.

- Mas por quê? Por que fazem isso? Você disse que muitas pessoas fazem isso? Não entendo – disse com sinceridade, aguardando ansioso a resposta.

- Você é feliz? Acha que está tudo bem com o mundo? – perguntou sarcástica

- A injustiça reina no mundo. Os ricos ficam mais ricos, os pobres ficam mais pobres, os políticos querendo ou não acabam reforçando esse circulo vicioso. As grandes empresas são cada vez mais poderosas, impiedosas, maiores… – disse ela com energia e desgosto, como cuspindo algo nojento.

Eu concordava com ela. Não sentia o mesmo nojo, mas como todos evitava pensar nisso porque sabia que não podia fazer nada, porque assim é o sistema. O que podemos fazer contra empresas cuja receita está nos bilhões e são amparadas pela lei, pelo governo, pelas pessoas, pelo sistema.

A loira falou calmamente:

- Alguém, não se sabe quem, começou com isso… Começou a ficar parado na frente das portas. Nos ônibus, nos metrôs, nos trens, em todo lugar que houvesse muitas pessoas. Sempre em horários de pico, sempre em lugares chave, com um objetivo… Quebrar o sistema.

- Mas como você vai quebrar o sistema fazendo só isso? Desculpa, mas parece um pouco idiota achar que você vai quebrar o sistema dessa maneira – disse com um certo medo de ofendê-la.

- Você observa, mas não entende nem escuta, né? – disse a loira com sarcasmo

- Há muitas pessoas fazendo isso. Mais pessoas do que imaginamos, talvez não só aqui, mas em outros países também. Não somos só duas – observou a garota de cabelo curto.

Eu comecei a entender. Se houvesse mil pessoas fazendo isto, todos os dias. No metrô da Sé, em Barra Funda, no Terminal Bandeira, etc. Isto poderia realmente fazer alguma diferença. A quanto tempo isto era feito. Por quantas pessoas. Não havia como saber. Não há como prendê-las, não se pode prender alguém por estar próximo à porta, não é um crime.

- Se para cada cinco pessoas que estão com pressa de chegar no trabalho, você irritar uma ou fizer com ela se atrase, em pouco tempo terá demissões, brigas, discussões, caos. Estamos corroendo o sistema aos poucos – disse, confirmando o que eu pensava.

- Se a cada dia uma pessoa, ou melhor milhares de pessoas, fazem o mesmo que nos fazemos, maior será o caos. Chegará um dia em que o estresse e o caos vão afetar de tal jeito as nossas vidas que não haverá outra opção além de mudar? - concluiu.

- Vocês sabem quantos fazem isso? Vocês se reúnem? Têm algum líder? – perguntei maravilhado pelo plano.

- Não sabemos, não e não – disse a de cabelo castanho tranqüilamente.

- Apenas temos duas regras. Nada de líder. Nada de reuniões – afirmou inflexível.

- Se você faz isso, o faz porque acredita que o mundo está errado. Que este sistema é injusto. E só. Não requer nada além disso.

- Você fará isso. Eu sei. Você é infeliz e agora que sabe que a muitos fazendo a mesma coisa, vai fazê-lo pra você e para todos – ao dizer “todos” ela sorriu, deu meia-volta e foi embora com a amiga.

Ela terminou de falar. E eu fiquei ali. Quieto, pensando. Seria verdade. Como era possível que existisse algo assim. Foi então que percebi. Não eram amigas. Provavelmente não se conheciam. Lembrei que as duas subiram no mesmo lugar e só começaram a falar quando chegaram na porta.

Elas estavam lá cumprindo com aquele propósito maior e estranho.

Não é possível. Não podia ser verdade.

Passei a manhã inteira pensando nisso, fazendo cálculos sobre pessoas e a quantidade de caos elas poderiam gerar através do simples ato de ficar perto da porta e atrapalhar uma ou outra pessoa.

No outro dia, fui trabalhar, ainda pensando nisso. Decidi pegar o metrô, em parte porque queria confirmar o que me foi revelado por aquelas desconhecidas. No começo, pareceu tudo normal, ninguém próximo à porta.

Foi então que eu o vi. Um homem, velho, bloqueando a porta. Levantei e fui até ele. Fiquei do lado dele, ele assentiu com a cabeça e começou a falar comigo sobre o Corinthians e porque ele não gostava do Roger.

21.6.08

O herói

Um conto para ser lido em cinco minutos
por Rafael "Lupo" Monteiro

O telefone tocou alto no escritório da ONG Sol Para Todos na cidade de Boa Vista. Quem atendeu foi Rodolfo, o estagiário. Carioca, há dois anos morava em Roraima por conta de seu pai, que era oficial do exército.

- Alô?

- Vocês têm cinco minutos para esvaziar o escritório, pois uma bomba vai explodir no prédio.

- Como é? Quem tá falando?

- Quatro minutos e cinqüenta segundos agora!

Rodolfo então largou o telefone fora do gancho e gritou:

- Galera, vamos embora que uma bomba vai explodir!

Seguiu-se então um pandemônio. A correria foi geral, e como os elevadores estavam todos desligados, as escadas lotaram. A locomoção no prédio, de quinze andares, ficou impraticável. Em meio à gritaria, Rodolfo decidiu sair pelo lado de fora. Com uma cadeira arrebentou o vidro da janela. Segurando-se pelas bordas, pulou para a janela do andar de baixo. Quase escorregou, o que lhe fez repensar sua estratégia.

Notou então que a janela do quarto andar estava aberta. Entrou no escritório, que aparentemente estava abandonado: não havia mesas ou cadeiras, apenas um armário aberto junto à parede esquerda. Dentro do armário, estava a bomba.

Desesperado, correu para a porta, mas estava trancada. Sem saber o que fazer, pegou o celular. Pensou em ligar para sua mãe e se despedir. No entanto, antes que pudesse discar os números, o aparelho começou a tocar.

- Alô?

- Olá, Rodolfo. Desculpe-nos por colocá-lo nesta situação.

- Quem está falando?

- Pode nos chamar de TC.

- O que quer de mim?

- Temos uma proposta de emprego.

- Estou pra ser explodido aqui, meu amigo. Que raios de emprego vou querer agora?

- Sabemos como desligar a bomba. Pode considerar um adiantamento de salário.

- Então me ajudem logo, caramba! Em um minuto o prédio vai pro espaço.

- É simples. Tá vendo um fio amarelo no canto esquerdo do contador?

- Sim!

- Desconecte-o do aparelho.

Rodolfo assim procedeu. O timer do relógio parou, faltavam 23 segundos.

- E agora?

- Agora procure o fio vermelho. Corte-o e a bomba estará desarmada.

Como não tinha tesoura, teve que cortar o fio com a boca.

- Agora você é um herói. Procure embaixo da bomba um pedaço de papel.

Rodolfo, com muito cuidado, levantou a bomba. Achou então o papel dobrado. Foi desdobrando, até ficar do tamanho de seus braços abertos. Nele, estava escrito “Fora homem branco de nossas terras”.

- Que diabos de mensagem é essa?

- É o que você, herói do dia, irá divulgar para todos. Garantimos sua presença em todas as tvs, em rede nacional, e até algumas internacionais. Só não se esqueça de mencionar “ameaça à soberania nacional”!

- Por que eu faria isso?

- R$ 500.000,00 anuais mais benefícios.

- E se eu recusar?

- Sabemos quem é e onde mora.

- Então não me resta muita opção...

- Sempre há opção!

- Bem, digamos que eu aceite. E aí?

- Você sabe desenhar mapas da Amazônia?

- Sei, claro.

- Então já teremos uma nova missão pra você!

14.6.08

Mais um homem invisível

Um novo crossover Intempol/TC por Ludimila Hashimoto

Visualize uma floresta. É enorme. Antiga, com mais de 100 milhões de anos. A multidão de árvores lembra torres majestosas percorridas pela seiva incessante. A fauna é rica, a flora se diversifica entre rios, matas alagadas e vasta terra firme.

Agora acrescente os homens e suas atividades econômicas. E os homens que temem o avanço irrefreável dessas atividades.

E não se preocupe em adicionar mitos, controvérsias e disputas internacionais. Eles se proliferam espontaneamente, mesmo quando o solo não é tão fértil.



No escritório da organização não-governamental, o movimento de transações comerciais era mais intenso que nos outros dias do mês, em que a atividade era mais discreta. Era dia de despachar um carregamento especial. Nada de madeira, minérios ou plantas medicinais. A carga a ser transportada era basicamente humana.

O assessor para assuntos estratégicos da ONG aguardava contato por celular no jardim da sede. A organização com projetos de utilização sustentável dos recursos da floresta era uma boa fachada para um projeto mais arriscado.

O grosso do trabalho incluía o envio de informações para o futuro, que auxiliariam a reprodução minuciosa, questão de uns cem anos depois, da floresta tropical.

Os assuntos mais importantes nunca eram discutidos por telefone fixo. Essa medida deveria servir para tranqüilizá-lo, mas a sensação de estar sendo monitorado o perseguia desde a noite anterior.

– Quem já não passou por isso – pensou, não em voz alta, mas com movimento labial. Desconfiar de uma mala esquecida no carro por um carona ou de um varredor de rua com um uniforme que não lhe cai nada bem.

O melhor a fazer era se concentrar na missão. Sentir que uma centena de anos no futuro estavam ao seu alcance e que seu trabalho de pesquisador era infinitamente mais valorizado em Marte terraformada que numa floresta cobiçada por muitos, superestimada por outros e vítima de jogos de interesse mesquinhos.

A paranóia foi desaparecendo à medida que ele pensava nas belas florestas do planeta já não mais vermelho, no seu laboratório bem equipado e no ótimo tratamento que recebia lá de pessoas cuja nacionalidade não era fator crucial das relações.

Tranqüilo, esqueceu em que bolso estava o celular que tocaria para marcar o encontro dos outros pesquisadores com a poderosa maquininha portátil.

Nesse momento de esquecimento reconfortante, o pesquisador sentado no jardim da sede da ONG – que, entre outras coisas, calculava o tempo entre o desaparecimento da Amazônia e a chegada das suas réplicas em Marte – levou um susto que disparou o batimento cardíaco a níveis insuportáveis.

Tiros. Dentro do escritório. Ele pensou em se esconder no jardim, mas mais parecia uma estátua.

Ele sabia. Os agentes da Intempol chegariam a ele em segundos.

Foi o que aconteceu. Em pouco tempo, o pesquisador simplesmente deixou de existir.

De um modo muito diferente dos outros funcionários lá dentro do escritório, que perderam sangue e não entenderam nada. Ele entendeu. E deveria ter ouvido a intuição.

Na madrugada anterior, a intuição lhe dizia para tomar cuidado, a razão dizia que a polícia do tempo não poderia ser tão eficiente. Especialmente quando se tratava de viajar para o futuro, coisa em que a empresa não se sentia tão à vontade.


Por isso aceitara embarcar no projeto “Amazônia: Espaço Multiplamente Conectado”.


Os cientistas e pesquisadores envolvidos até acharam que o nome do projeto revelaria uma juventude nerd radical, mas não ligaram, o mundo finalmente se ajoelharia diante deles com gratidão. No caso, pela tão sonhada salvação definitiva da floresta.


A abertura da ONG “Amazônia Conectada” no município de Jutaí facilitou o acesso dos pesquisadores clandestinos a dados sobre o bioma, o avanço do desmatamento e as possibilidades de clonagem ecológica.


Simultaneamente ao trabalho fora da Terra e fora do tempo, os poucos funcionários da ONG que não sabiam de nada calculavam burocraticamente o tempo estimado para que os ousados viajantes fossem perfeitamente bem-sucedidos. Não sabiam por que estavam calculando, mas calculavam mesmo assim. Por amor à estatística, talvez. E não desconfiavam que sua vida corria risco por isso.


Sua ignorância estava quase em pé de igualdade com a dos agentes da Intempol que, de tanto correr atrás do passado, tinham menos tempo para agarrar os criminosos no futuro.


Um ranço newtoniano sutil atingia até mesmo o escalão mais alto da empresa. Não suspeitaram que, num caminho inverso ao da maioria, os ex-nerdizinhos acabariam truncando uma linha temporal com o efeito colateral de suas ações bem-intencionadas.


Desconfortáveis com os insetos e o ar puro, os agentes já estavam em posse do celular do pesquisador agora inexistente. O cartão cronal e a máquina registradora furtados estavam bem próximos, chegando junto com o resto do carregamento de heróis inconseqüentes. Enquanto isso, trocavam gentilezas:


– Imbecil, que história é essa de sair atirando?


– Você também atirou.


– Claro. Você me fez de cúmplice com quatro testemunhas.


– Foi mal, tava ansioso. Mas se não fosse eu, não teríamos eliminado o problema tão rápido.


– Rápido? Levamos seis meses.


– Mas eu tive que ler muito pra descobrir o que tava acontecendo por aqui.


Ficou ansioso de tanto estudar?


– Não, é que o futuro me deixa mais apreensivo que o passado – filosofou o agente franco-atirador.


– Só espero que nossos superiores reconheçam que a chacina era inevitável. E o que vão dizer sobre o caso amanhã nos jornais?


– Tudo sob controle. O pessoal do Terrorismo da Conspiração tá em alerta pra escrever a matéria em primeira mão.


– Aposto que vão culpar a polícia, falar em falta de pistas pra a causa do crime...


– Ou isso, ou uma investigação da ONG por uso não-sustentável de recursos da floresta.


– Hum... Amanhã quero entrar no blog daquele menino que escreve esquisito.


– O Fabi On Eves? – perguntou o agente que andava tenso, mas tinha boa memória.


– Hã, com certeza a versão dele vai ser mais complexa e muito mais divertida.

8.6.08

Sobre a Intempol e um agradecimento

O conto abaixo ("Apagão no tempo") é uma brincadeira com o universo criado por Octavio Aragão sobre uma Polícia Internacional do Tempo; ele autorizou o uso que foi feito aqui daqueles personagens e dos conceitos por trás da série. Mais detalhes sobre a Intempol podem ser conferidos neste blog. Uma entrevista com o escritor e uma resenha do livro de sua autoria, A mão que cria, estão disponíveis neste endereço.

Quanto ao primeiro conto desta série ("A teoria na prática"), vale lembrar que ele foi publicado também no blog mantido pela escritora e tradutora Ludimila Hashimoto, motivo pelo qual registro aqui meu agradecimento.

Ah, e todos os endereços citados aqui, entre outros, aparecem também no pé deste blog, na seção "Outros conspiradores".

3.6.08

Apagão no tempo

Aparentemente, uma história sobre time travel por Romeu Martins


Este conto está disponível como ebook da Editora Estronho

Ibope